Pronunciamento de Marluce Pinto em 24/03/1998
Discurso no Senado Federal
RELATORIO DAS DILIGENCIAS REALIZADAS NO ESTADO DO CEARA PELA CPI, QUE INVESTIGA AS DENUNCIAS SOBRE O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL.
- Autor
- Marluce Pinto (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RR)
- Nome completo: Maria Marluce Moreira Pinto
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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POLITICA SOCIAL.:
- RELATORIO DAS DILIGENCIAS REALIZADAS NO ESTADO DO CEARA PELA CPI, QUE INVESTIGA AS DENUNCIAS SOBRE O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO BRASIL.
- Publicação
- Publicação no DSF de 25/03/1998 - Página 4924
- Assunto
- Outros > POLITICA SOCIAL.
- Indexação
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- RELATORIO, VISITA OFICIAL, COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), RESPONSABILIDADE, INVESTIGAÇÃO, OCORRENCIA, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, CRIANÇA, ADOLESCENTE, MUNICIPIO, FORTALEZA (CE), ESTADO DO CEARA (CE), APURAÇÃO, VERACIDADE, DENUNCIA, IRREGULARIDADE, UTILIZAÇÃO, MENOR, CENTRAIS DE ABASTECIMENTO (CEASA), RESULTADO, INEXISTENCIA, COMPROVAÇÃO, ILEGALIDADE, ATIVIDADE, NATUREZA TRABALHISTA, REGIÃO.
- REGISTRO, PARTICIPAÇÃO, ORADOR, AUDIENCIA, TASSO JEREISSATI, GOVERNADOR, ESTADO DO CEARA (CE), APRESENTAÇÃO, MEMBROS, COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), RELATORIO, PROGRAMA, INICIATIVA, GOVERNO ESTADUAL, FAVORECIMENTO, TRABALHO, JUVENTUDE, CRIANÇA, ADOLESCENTE, REGIÃO.
- COMENTARIO, VISITA OFICIAL, ORADOR, MEMBROS, COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), ASSEMBLEIA LEGISLATIVA, ESTADO DO CEARA (CE), DEPOIMENTO, VEREADOR, REFERENCIA, TRABALHO, CRIANÇA, ADOLESCENTE, MUNICIPIO, FORTALEZA (CE), RELATORIO, COMPROVAÇÃO, PROSTITUIÇÃO, VIOLENCIA, JUVENTUDE, MENOR.
A SRª MARLUCE PINTO (PMDB-RR. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, assomo à tribuna para fazer um relato dos trabalhos que nós, membros da CPI que investiga o trabalho infantil neste País, realizamos na cidade de Fortaleza, Capital cearense, nos dias 16 e 17 passados.
Para lá nos dirigimos, as Senadoras Emilia Fernandes, Benedita da Silva e eu própria, o Deputado Alceste Madeira e a Relatora, Deputada Célia Mendes, acompanhados de dois assessores, atendendo a convite formulado pela Assembléia Legislativa do Ceará, que aprovou requerimento do Deputado Estadual Arthur Bruno.
Dois fatos justificaram o convite: graves denúncias de exploração da mão-de-obra infanto-juvenil em diversos setores da economia local, além da abominável denúncia de prostituição infantil, que afirma que crianças a partir dos 12 anos de idade iniciam essa sórdida “profissão”, inclusive para alimentar o chamado pornoturismo.
No dia 16 de março, segunda-feira, às 5 horas da manhã, fizemos nossa primeira diligência. Pessoalmente, todos nós, membros e assessores da Comissão, fomos até a Ceasa, centro abastecedor de alimentos da Capital, para verificar a procedência das informações de que crianças estariam sendo exploradas nas muitas atividades do setor, seja no descarregamento dos caminhões, na distribuição dos produtos nos boxes ou mesmo na venda direta ao consumidor.
Munidos de câmeras fotográficas e percorrendo, palmo a palmo, os diversos setores do local, sem dúvida encontramos menores, não em número expressivo - é preciso que se diga -, nem tampouco em situação que poderíamos afirmar “caso flagrante” que caracterizasse exploração de mão-de-obra infanto-juvenil.
Num universo grandioso de trabalhadores, onde um verdadeiro formigueiro humano se faz, num vai-e-vem desenfreado, em que vendedores e compradores integram um mesmo ambiente, no qual todos falam ao mesmo tempo - acredito que a maioria dos Colegas conhece de perto esse ambiente e sabe a que me refiro -, a bem da verdade, repito, é preciso que se diga que os menores que lá encontramos realmente não nos pareceram, numa primeira análise, trabalhadores explorados.
Talvez, em virtude do horário em que lá chegamos, às 5 horas da manhã - e todos sabemos que os trabalhos nas Ceasas se iniciam bem mais cedo -, o fato é que o número de menores que encontramos ativamente trabalhando ficou aquém da expectativa.
De concreto e objetivo, o que verificamos foi a presença de menores que ajudavam seus pais ou parentes em tarefas leves, e até mesmo criancinhas de 3 e 4 anos de idade, ainda sonolentas e intranqüilas, pelo motivo óbvio, trazidas para o local com a explicação dos pais de que não poderiam ser deixadas sozinhas em casa.
Neste particular, considerando a situação e as condições limitadas desses pais em todos os sentidos, principalmente suas limitações cultural e social, percebemos que temos pela frente uma árdua batalha para atingir nosso ideal, isto é, a conscientização plena desses pais de que o futuro de suas crianças está nos bancos das escolas, no á-bê-cê, que, além de abrir seus cérebros para o conhecimento, também lhes abrirão as portas de um futuro mais promissor.
Repetindo um velho chavão, aliás, mais um desses chavões que parecem enraizados na alma da cultura brasileira e que deveriam ser extirpados de nosso convívio, pois que só desservem, por alimentar velho e retrógrado costume, a frase “melhor trabalhando do que mendigando” foi a mais ouvida, fato que bem reflete a ignorância dos que teimam em não enxergar além da esquina e insistem em permanecer a reboque do processo evolutivo. A frase, às vezes, é diferenciada na forma, mas o conteúdo é sempre o mesmo.
Minha avaliação, portanto, neste particular, e considerando apenas a curta visita que fizemos à Ceasa, é a mais transparente possível e absolutamente não isenta a Ceasa do Ceará do uso, ou não, da mão-de-obra infanto-juvenil. Realmente, lá observei algumas crianças. Eu as vi dentro e fora dos boxes, separando frutas e legumes, lavando vasilhames, sentadas ou dormindo em carrocerias de caminhões. Vi também criancinhas, quase bebês, sentadas ao longo de meios-fios, próximas às suas mães ou a irmãos maiores, que as vigiavam, em plena madrugada, alimentando-se de frutas e hortaliças, muitas das quais retiradas dos lixões próximos. Crianças, enfim, que para lá foram levadas por um parente ou pelos próprios pais, que, como disse, alegaram não as poderem deixar sozinhas em casa e que diziam ser “melhor para elas trabalhar do que aprender as ruindades da rua”, eterno ciclo vicioso que serve de justificativa para não estudarem e que cria o adulto sem qualificação.
É essa a complexidade com a qual nos deparamos e que cabe a cada um de nós, membros dessa mesma sociedade, resolver.
Após essa primeira diligência, Sr. Presidente, às 12 horas, dirigimo-nos ao Palácio Cambeba, sede do Governo local, onde fomos recebidos pelo Exmº Sr. Governador Tasso Jereissati, numa audiência que durou mais de 50 minutos, na qual S. Exª, após ouvir as colocações dos membros da CPI, fez um breve mas substancial relato dos programas e trabalhos que seu Governo vem desenvolvendo em prol das crianças, dos jovens e até mesmo dos adultos carentes do Estado. Na ocasião, colaborando na entrevista que nos deu S. Exª, estava presente o Dr. José Rosa de Abreu Vale, Secretário do Trabalho e Ação Social, que aprofundou detalhes dos programas a que se referiu o Governador. Dentre os muitos programas citados por S. Exª, além daqueles que dão incentivo à cultura e ao esporte, destaco o que proporciona ajuda financeira às famílias que mantêm os filhos na escola, um programa nos moldes do “Bolsa-Escola” implantado pelo Governo do Distrito Federal, e outro elaborado em parceria com a atividade privada. Sem nenhum desembolso do Governo, salvo o acompanhamento do pessoal qualificado ligado às secretarias afins, esse programa proporciona a contratação, pelos grandes magazines e supermercados, de jovens na faixa etária dos 14 aos 18 anos, pelo tempo determinado de seis meses, com o objetivo de ensinar a esses jovens um ofício. Após esse tempo, faz-se um rodízio, de forma que outros menores também tenham a chance de aprender um ofício. Constatou-se que muitas empresas, após o período de aprendizado, manifestam interesse em contratar esse ou aquele jovem, que segue então carreira nos quadros da empresa, sem prejudicar os outros que aguardam pelo rodízio.
Encerrada a audiência com o Governador, dirigimo-nos à Assembléia Legislativa, onde fomos recebidos pelo Presidente da Casa, Deputado Luiz Alberto Pontes, e o autor do requerimento, o Deputado Arthur Bruno. Às 15 horas, demos início à fase dos depoimentos. Nesse dia, foram ouvidos os seguintes depoimentos:
- Vereador Duval Ferraz, Relator de uma CPI que investigou casos de prostituição infantil no Ceará;
- Dr. Paulo Afonso de Paiva Cavalcante, Presidente do Conselho Tutelar de Itaitinga, cidade onde existem inúmeras pedreiras;
- D. Geralda Felix de Menezes e dois de seus netos menores, Edinho e Jeovani, ex-trabalhadores das pedreiras;
- Drª Neiara de Morais, advogada do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente;
- Drª Leinad Carbogin, representante do UNICEF do Ceará; e
- Drª Fernanda Uchôa de Albuquerque, Procuradora do Trabalho no Ceará.
Nesse dia, encerramos os trabalhos às 17 horas e 50 minutos.
Os depoimentos, todos de importância vital para o nosso relatório final, foram devidamente gravados, trazidos para Brasília e já encaminhados, para degravação, à Subsecretaria de Taquigrafia do Senado Federal. Em breve, espero, estarão à disposição dos nobres colegas Senadores.
No dia seguinte, às 10 horas, reiniciamos os trabalhos na Assembléia Legislativa.
Pela ordem, foram ouvidos:
- Dr. Odilon Silveira de Aguiar Neto, Coordenador do Centro de Apoio às Promotorias da Infância e da Juventude;
- Dr. Antenor Manoel Naspoline, Secretário de Educação Básica do Ceará;
- Dr. José Rosa de Abreu Vale, Secretário do Trabalho e Ação Social;
- Drª Ana Lourdes Nogueira de Almeida, Delegada Regional do Trabalho;
- Dr. José Herman Normando Almeida, da OAB, representante da Comissão da Criança e do Adolescente;
- Dr. Silas Umguba, médico, pesquisador e filantropo, que, sozinho, mantém uma casa que cuida de jovens toxicômanos;
- Drª Tânia Maciel, do Núcleo de Iniciação ao Trabalho Educativo;
- Drª Walhirdes Frota Albuquerque, da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor; e
Drª Rejane Vasconcelos, do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas.
Reservadamente, a pedido de representantes do SOS Criança, nesse dia também foi ouvida a menor Antônia Paula Rodrigues da Silva, de 16 anos, que relatou espancamentos sofridos na residência em que trabalha como doméstica.
Sobre as denúncias de existência de prostituição infantil, farto material, inclusive fitas gravadas e depoimentos sérios de pessoas altamente credenciadas, nos foi entregue, além dos depoimentos prestados sob juramento, que nos deixaram perplexos.
Os fatos relatados, Sr. Presidente, e o lastro dos envolvimentos denunciados nos põem frente a uma verdadeira máfia dos horrores. Em nós, mães e pais de família, que temos nossos filhos e filhas e deles cuidamos com amor e o máximo de atenção e carinho, essa situação dói no mais profundo de nossas almas e dilacera nossos corações: nossas meninas, em síntese, se prostituem pela sobrevivência. Por migalhas.
E não nos é permitido ser brandos com quaisquer argumentos que porventura tentem justificar essa situação, que, no mínimo, considero uma monstruosidade. Que não nos venha, quem quer que seja, com tratados de psicologia ou outros títulos que sirvam para suavizar esse drama. Nada, absolutamente nada justifica meninas de 10, 11, 12, 13 e 14 anos estarem se prostituindo em troca, não raras vezes, de um prato de comida. Nem serão alguns “culpados” que diminuirão nossa verdadeira culpa, nossa velada conivência com essa desgraça. Pois “culpados” não são apenas os que usam essas crianças nem são os turistas degenerados que as buscam para sua satisfação mais vil. Se a complexidade do tema exige estudos, paralelamente a eles urge também uma ação enérgica, rápida e eficaz, que extirpe de nossa sociedade esse horror que não encontro palavras para qualificar.
E o problema, Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, não existe apenas no Ceará ou no Nordeste. Já foi detectado em todo o País, com repercussões maiores nas cidades praianas. Em Manaus, por exemplo, em plena selva amazônica, há denúncias estarrecedoras, inclusive com filmagens que comprovam a existência de locais exclusivamente preparados para esse fim. São Paulo não escapa dessa situação e até mesmo aqui, na Capital da República, fatos foram levantados, denunciados e comprovados.
A ação dos governantes, que pôs a polícia nas ruas, em verdade apenas inibiu a prática escancarada, mas nós sabemos que ela continua, com a proteção de paredes e a conivência dos mesmos bandidos e cafetões de ontem.
Mas nossas ações continuam, Sr. Presidente. Nada nos intimidará. Daremos continuidade a esse trabalho. Propusemo-nos fazer um trabalho sério e, tenho certeza, levaremos às últimas conseqüências todas as denúncias que tenham consistência, que apontem para um mal consumado ou que possam trazer prejuízos aos que, hoje jovens, amanhã dirigirão nossos destinos.
Todos esses males, traduzidos num relatório que elaboraremos num futuro não muito distante - e queira Deus enuncie todas as mazelas que, de norte a sul, de leste a oeste, prejudicam nossas crianças -, faremos que cheguem às mãos de cada autoridade deste País.
É preciso, urgentemente, que uma corrente de forças se faça e se materialize diante dessa escalada de violência que avilta a dignidade daqueles que, muito mais que nossa atenção, merecem nosso respeito e nossa mais ardorosa solidariedade: nossas crianças, nosso futuro.
Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente.
Muito obrigada.