Discurso no Senado Federal

PALESTRA PROFERIDA PELO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, POR OCASIÃO DO TERMINO DO ANO LETIVO DO CURSO DE CIENCIA DA REABILITAÇÃO DO HOSPITAL SARAH KUBITSCHEK.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ADMINISTRAÇÃO FEDERAL.:
  • PALESTRA PROFERIDA PELO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, POR OCASIÃO DO TERMINO DO ANO LETIVO DO CURSO DE CIENCIA DA REABILITAÇÃO DO HOSPITAL SARAH KUBITSCHEK.
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DSF de 18/04/1998 - Página 6889
Assunto
Outros > ADMINISTRAÇÃO FEDERAL.
Indexação
  • ANALISE, CONFERENCIA, AUTORIA, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, PRONUNCIAMENTO, CONCLUSÃO, ANO LETIVO, CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO, CIENCIAS, REABILITAÇÃO, REDE NACIONAL DE HOSPITAIS DA MEDICINA DO APARELHO LOCOMOTOR, DISTRITO FEDERAL (DF).
  • APROVAÇÃO, ORADOR, FORMA, GOVERNO, PRESIDENCIA DA REPUBLICA, RESPONSABILIDADE, ETICA, GOVERNANTE, ORIENTAÇÃO, PODER PUBLICO.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, há cerca de uma semana, o Presidente Fernando Henrique Cardoso teve a oportunidade de fazer uma palestra, no final do ano letivo, para os diplomados em Ciência da Reabilitação no Hospital Sarah Kubitscheck, tendo falado mais como professor do que como Presidente.

Esse tema, embora fugidio pelo conjunto de problemas vividos pelo País a cada dia, mereceu uma reflexão de minha parte, porque é fundamental que se compreenda em profundidade o interior de um Presidente da República, sobretudo no presidencialismo brasileiro, tão marcado pelo império do Poder Executivo. É bom, portanto, constatar que o Presidente da República continua com a sua plena lucidez. E, analisando sem as paixões do pró e do contra, sem as paixões do cotidiano, é muito interessante verificar o que três anos de exercício no poder significam para um Presidente da República com o nível cultural e emocional do nosso.

Diga-se de passagem que é um privilégio para o País ter um Presidente com essa envergadura. Isso lhe traz até muita inveja e ataques, mediante os quais se busca tomar essa qualidade do Presidente como um defeito. Há como que uma tendência a se caricaturar as virtudes do governante para poder neutralizar essa capacidade. A verdade é que quando o Presidente está fora do Brasil, o País como um todo se orgulha dele. E é importante que isso ocorra: orgulharmo-nos dos feitos do nosso País sempre que são significativos. E assim se dá com todos os povos, não há novidade nisso.

Na palestra, o Presidente abordou um dos aspectos mais difíceis para o governante, qual seja, a relação entre dois pólos éticos - que se chocam não apenas em quem exerce a Presidência da República, mas em qualquer homem público -: a idéia de uma ética do seu pensamento e a idéia de uma ética da responsabilidade. Isso, nutrido no pensamento de Max Weber, citado pelo Presidente, é um dos problemas que acompanham permanentemente o homem público na sua trajetória. A verdade é que todas as vezes em que o pensamento é tornado objetivo na ação prática sofre impasses, obstáculos, impedimentos e distorções. E o grande dilema do governante é o confronto permanente entre o que deseja ser e fazer e até entre o que pensa e o que lhe põe diante da decisão: a realidade. Costumo dizer que é um conflito entre a verdade e a realidade.

É muito fácil para cada um nós brandir as próprias verdades e, oxalá, façamo-lo sempre, porque somos seres judicativos, ou seja, fomos feitos de modo a julgar o mundo; e até nos apressamos bastante, somos muitos dominados por esse mecanismo, pois julgamos o mundo, o próximo, o vizinho, o inimigo e o amigo. Há uma instância judicativa no ser humano. Portanto, é muito fácil julgar permanentemente porque somos dotados de verdades.

No entanto há uma outra instância complexa, rica, insuperável, dinâmica, chamada realidade. Até que ponto somos capazes de apor nossas verdades à realidade? Até que ponto somos servos da realidade a um tal ponto que nos esquecemos de nossa verdade? Essa é uma questão dificílima para o homem público.

O pensador e psicanalista Carl Gustav Jung, nas suas memórias, em um livro muito bonito, chamado Sonhos, Memórias e Reflexões, tem uma passagem impressionante: “Nada pode livrar-nos de um diário tormento ético”. É verdade. Estamos diariamente, como no suplício da mitologia, submetidos a tormentos éticos. Ele usa a palavra “tormento“ de maneira adequada, porque esse desafio entre a verdade e a realidade é um tormento - não é que tenha uma solução propriamente, pois a solução está na aceitação do conflito, na sua incorporação e em superações gradativas a que o ser humano é capaz de realizar passo a passo.

Imaginemos um Presidente da República, com a história e a cultura do Presidente Fernando Henrique Cardoso, com a realidade do País, com essa luta permanente entre a necessidade de ser compreendido, o que é inerente a todo político, principalmente àqueles que pleiteiam eleições, e, ao mesmo tempo, todas as distorções, às vezes fundamentadas em verdades, que fazem o grande choque da política.

Grande parte da população fica presa ao aspecto tópico, ao aspecto da disputa nesse conflito. Até mesmo o noticiário é encantado pela pequena disputa, pelo aspecto comezinho. Isso faz parte de uma outra questão, que é disputa de poder entre a mídia e a democracia representativa. Mas, num plano superior, esse conflito tem natureza profunda. O Presidente foi muito corajoso em abordar tudo isso. Interessante, Sua Excelência, como Professor, falou sobre alguns tópicos que até poderiam torná-lo vulnerável, como político, à crítica. Não por mim, que concordo em profundidade com o que diz, mas pelo fato de que um professor quando abre seu pensamento fica exclusivamente na lógica do pensamento, na lógica dos seus princípios; já o Presidente da República está constantemente na lógica da ação.

Sua Excelência diz - vejam que curioso: “Em política, quem proclama o que quer perde. Em certos momentos, o homem de Estado não deve dizer tudo o que sabe, sob pena de prejudicar o Estado, a Nação e o povo”. Vejam aí o tamanho do problema ético vivido por um Presidente lúcido. Volto rapidamente ao que falava antes: como é grande, no exercício da Presidência da República, esse conflito entre a realidade e a verdade. É o caso aqui: “Em política, quem proclama o que quer perde”. Trata-se de um pensamento muito interessante, que merece muita análise. É claro que não se pode desentranhar essa expressão do contexto em que Sua Excelência o inseriu.

Realmente, em política fica muito difícil para um governante viver exclusivamente do que quer e pretende, porque ele se depara com a realidade. Vejamos o caso brasileiro. A maior intolerância contra a ação do atual Presidente da República vem misteriosamente dos setores que se dizem de Esquerda, embora brandindo a espada da Esquerda antiga, da Esquerda estatal, da Esquerda estatizante. Vem dali. E o apoio a certas medidas de avanço vieram de setores mais progressistas do pensamento liberal. Por quê? Porque é uma questão política imbricada. Ficará muito fácil cobrar do Presidente da República questões tópicas e imediatas ao mesmo tempo em que se lhe nega uma reforma administrativa de três anos, para que possa a máquina do Estado realizar tarefas urgentes e ingentes, e superar as suas dificuldades, principalmente as decorrentes do déficit público.

Fica muito fácil, por exemplo, calar diante do esforço, o maior em nosso País, o principal do Governo Fernando Henrique, no sentido - embora isso não seja do desconhecimento de ninguém - da democratização do ensino brasileiro, do fortalecimento do ensino básico. Fica muito mais fácil calar sobre isso do que compreender a profundidade que tem essa matéria na visão progressista de democratizar o acesso à educação na base. Nunca se fez o que se está fazendo neste País, um esforço igual.

Fica mais fácil levar o movimento social aos limites da insurreição sem entrar nela, excitando pessoas sofridas, marcadas pela mágoa da injustiça, da fome. É muito mais fácil levar à insurreição, como fez - vi, li e todos vimos, mas esquecemos - o Presidente Nacional do PT há cerca de um ano: destacou, em uma de suas entrevistas, a idéia de ocupação de prédios públicos, de uma ação mais agressiva, de uma ação mais violenta. É melhor levar o País a impasses dessa ordem, que levam pensadores extremos a acreditar em medidas também extremas, com as quais pessoalmente não concordo, como colocar na ilegalidade o Movimento dos Sem-Terra e a UDR. É mais fácil excitar as polarizações do que exercer o difícil ofício de construir gradativamente com uma política persistente, difícil, penosa, mas decidida, uma reforma agrária compatível com as possibilidades do País.

É fácil tudo isso, tudo isso está no jogo político. Daí a questão lembrada muito bem pelo Presidente: “Em política quem proclama o que quer perde”. Em certos momentos, o homem de Estado não deve dizer tudo o que sabe sob pena de prejudicar o Estado, a Nação e o povo. E isso não estava isolado do que disse em seguida o Presidente da República. Significa, então, que, na ética da política, ambigüidade e mentira são partes constitutivas? Não. E vejam aqui a coragem do Presidente: “A ambigüidade talvez, a mentira não”. É o Presidente quem fala: Em uma ética de reflexão, não se pode pedir ao profeta que se preocupe com o modo de chegar aos resultados; pelo contrário, estarão o tempo todo aprisionado pelos objetivos, insistindo em valores absolutos. Não é essa a posição do homem prático, do político, do homem de Governo, nem mesmo o do estadista. O político não deve estar a cada instante no púlpito, proclamando a verdade, mas conseguir avançar o processo na direção, nos objetivos que propõe. De novo a presença do conflito entre a verdade e a realidade.

Costumo dizer que há dois tipos de políticos: os políticos polarizados e os políticos dialéticos. Poderia, valendo-me do idioma, falar em políticos transitivos e em políticos intransitivos. Os políticos polarizados são aqueles dominados por suas verdades, e essas verdades são colocadas acima de qualquer possibilidade ou, melhor dito, são colocadas acima de tudo, ainda que venham muitas vezes contrariar o êxito necessário à aplicação das verdades. Os políticos baseados mais na realidade do que na verdade, os políticos dialéticos, esses, se são dignos, não abrem mão de suas verdades, porém encontram modos de fazer com que essas verdades gradativamente passem para a população. Aqui há um dado interessantíssimo: são políticos não onipotentes. Sabem, por maturidade, ou sabedoria ancestral, ou cultura, ou por temperamento que na vida não podemos realizar a plenitude das vontades individuais. Mas, se somos fortes, seremos capazes de gradativamente fazer com que as nossas verdades, de alguma maneira, influenciem, quando não puderem ser dominantes, façam parte do processo de mudança no qual adiante, até mesmo depois de nossa vida, poderão vir a ser vigentes.

É esse o grande impulso do homem na busca, digamos, da afirmação das próprias verdades, no amor pelo que crê. O político polarizado, se tem a virtude de ser incólume na colocação de suas verdades acima de tudo, podendo até morrer com elas, ainda que elas não sejam eficazes - se essas forem verdades elevadas, é claro; há verdades que não são elevadas e que muitas vezes são brandidas por políticos polarizados -, permanece em profundidade com as próprias verdades. O político dialético é capaz, se ele é honrado, de não abrir mão das próprias verdades, mas de ajustá-las ao possível. Aqui está a importância do pensamento e, a meu juízo, das decisões do Presidente da República ao necessário.

Não nessa palestra, mas em outra, ouvi certa vez o Presidente Fernando Henrique, quando Senador, dizer exatamente o que acabei de falar. A frase é do Presidente Fernando Henrique: “A política não é a arte do possível, como se diz; é a arte da união do possível com o necessário”.

Agora, como se unem o possível e o necessário?

Se ficamos só com o possível, corremos o risco de deixar as nossas verdades diluírem-se, mas, se lutamos pelo necessário, somos capazes de trazer as nossas verdades, aplicá-las ao nosso pensamento e vê-las traduzidas na prática. Não pretendo fazer um discurso enfático, glorioso, retumbante. Parodiando o nosso hino quando fala no “brado retumbante”, a política está repleta de brados retumbantes.

Quero apenas, nesta manhã de sexta-feira, em um dia mais tranqüilo do Senado, refletir sobre o problema e, ao mesmo tempo, manifestar uma concordância profunda com a visão que o Presidente da República tem do ato de governar. Ele não é um político polarizado; é um político dialético, joga com os dados da realidade. Quem não compreendeu o Presidente da República nessa sua capacidade preferiu abandonar o barco das transformações da sociedade brasileira para permanecer na gritaria infrene, na colocação de conflitos perfeitamente superáveis - quando há vontade de resolvê-los -, na tentativa de jogar o Presidente da República nos braços da Direita. E o Presidente da República, com uma paciência infinita, exatamente por exercer essa visão pragmática, não tem cedido um milímetro na disposição de levar o País a transformações profundas em sua sociedade.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT-SP) - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Com prazer, Senador.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT-SP) - Em primeiro lugar, Senador Artur da Távola, gostaria de cumprimentá-lo pela qualidade da sua reflexão e pelo tema que traz. Considerei extremamente interessante a palestra que o Presidente Fernando Henrique proferiu na aula inaugural no Hospital Sarah Kubitschek. Na oportunidade, o Presidente, de improviso, trouxe à tona o seu profundo conhecimento de Max Weber e de outros sociólogos e filósofos, na reflexão que fez sobre a ética do poder e a ética da academia. V. Exª disse concordar inteiramente com o Presidente, mas externo a minha preocupação em relação à maneira como Sua Excelência usou o paralelo, especialmente quando parecia estar em dificuldades de revelar uma verdade muito importante ao povo brasileiro. Sua Excelência proferiu a palestra, a aula inaugural no momento em que completava a reforma ministerial, em que foram nítidas as dificuldades que teve para compor o seu governo e contentar toda a sua base de apoio. O Presidente parecia estar justificando o fato de não poder revelar toda a verdade dos fatos. Entendo que um Chefe de Estado ganha cada vez mais o respeito de seu povo quando diz a verdade e, na medida do possível, toda a verdade. Compreendo que há situações em que um Chefe de Estado não pode dizer, até para proteger o Estado, a Nação e o seu povo, tudo o que já sabe. Por exemplo, se está o Presidente considerando uma modificação na política cambial, dados os movimentos que tal medida poderia resultar de natureza especulativa, não pode dizer - esse é um caso típico - toda a verdade. Nesse sentido podemos estar de acordo com a afirmação do Presidente, mas há outras situações que me preocupam, como quando o Ministro do Trabalho, Edward Amadeo declarou, na semana em que assumiu a Pasta, que não há crise de emprego. Pareceu-me que ele estava sendo um primeiro aluno do Presidente. O Ministro do Trabalho não estava querendo dizer toda a verdade, pois estamos com uma taxa de desemprego recorde. O Presidente mencionou que, quando se proclama o que se quer, nem sempre se alcança aquilo. Ora, o Presidente, em sua despedida do Senado, em dezembro de 1994, fez um importante discurso sobre as suas aspirações, anseios e objetivos, dizendo que o Brasil tinha pressa. Pressa de quê? De alcançar a justiça. Era natural que aguardássemos, ao longo do seu governo, medidas visando a construção de uma Nação justa. Será que estamos caminhando nessa direção pretendida pelo Presidente? Será que de fato o ritmo da Reforma Agrária, mencionado por V. Exª, é o adequado? Ainda ontem apresentei um requerimento ao Ministro Extrordinário de Política Fundiária, para que S. Exª possa nos trazer dados, tendo em vista o fato de que 196 mil famílias foram assentadas durante o Governo Fernando Henrique, mas houve o deslocamento de mais de 400 mil famílias, ou pequenos agricultores, ou trabalhadores rurais do campo, em virtude da diminuição de lavouras como a do algodão e outras. Qual é o efeito na estrutura fundiária de todas essas ações? A nossa estrutura fundiária hoje tem características de maior ou menor concentração que a do início do Governo Fernando Henrique? Vou citar um outro exemplo: em resposta a informação que solicitei de como eram efetuados os desembolsos classificados por grande, média, pequena e microempresa, o BNDES informou que, em 1997, mais de 95% dos destinos de desembolso foram para médias/grandes e grandes empresas, e apenas até 2% para médias, pequenas e microempresas. Será que isso vai proporcionar maior ou menor concentração de renda? Assusta-me, por exemplo, o fato de que grupos econômicos recebem desembolsos do BNDES para adquirir o controle de empresas antes estatais. Vemos grupos que conseguem com o financiamento do BNDES adquirir uma, duas, três, quatro grandes empresas estatais. Encaminhei hoje um requerimento de informações ao Ministro do Planejamento a fim de que o BNDES venha a estimar o extraordinário grau de concentração de poder, de acumulação de patrimônio que está proporcionando num ritmo talvez inigualável na História do País. Senador Artur da Távola, será que o Presidente realmente expressa a verdade toda, aquela que deveria ser revelada ao povo brasileiro? Preocupa-me, porque, em algumas situações, penso que Sua Excelência teria maior possibilidade de defender a si próprio e a seu Governo se revelasse inteiramente as pressões exercidas, seja por partidos políticos, seja por políticos, seja por grupos econômicos. Sua Excelência teria maior resguardo e força para as transformações que se fazem necessárias em nosso País. Muito obrigado.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Obrigado, Senador Eduardo Suplicy.

Não tenho condições de responder plenamente a V. Exª, pelo conjunto de questões colocadas, que me afastariam completamente do rumo do meu discurso. Respeito a opinião de V. Exª e vejo que parece enquadrar-se dentro do espírito do discurso do Presidente da República.

Quando faz todas essas perguntas, V. Exª parece deter a verdade, conhecê-la em profundidade e tê-la como única, ou seja, a verdade do próprio pensamento como expressão da verdade geral dos fatos. Quando V. Exª enumera todos esses casos, eu poderia enumerar, uma a uma, razões contrárias. Eu poderia até concordar com V. Exª em alguns deles; em outros, discordaria frontalmente. Mas ficarmos aprisionados nas nossas verdades é justamente o que gera o problema ético de um governante.

V. Exª citou o caso do Ministério. Veja o problema: o Presidente da República não é Presidente de um partido hegemônico. A Oposição cobra do Presidente decisões do plano hegemônico, como se ele o fosse, até porque a Oposição pretende ser hegemônica no País. Recordo-me, por exemplo, de um determinado momento da vida brasileira em que o parlamentarismo foi derrotado com a mudança de posição do PT. Grande parte dos seus membros era a favor do parlamentarismo, e ouvi no debate o seguinte argumento: como Lula iria ser o Presidente da República, o presidencialismo seria um instrumento mais fácil de executar as reformas de modo mais rápido. Esse argumento levou o PT a ficar contra o parlamentarismo e ajudou a derrotá-lo, exatamente fortalecendo os aspectos imperiais do presidencialismo que hoje tanto combate. Naquele instante, ele parecia tocado pelas mesmas verdades com as quais V. Exª, hoje, critica o Presidente da República.

O Presidente disse exatamente isto no discurso:

“É claro que, na luta política, com muita freqüência se faz uma transposição indevida entre essa responsabilidade com sentido filosófico - foi a que V. Exª abordou - para uma responsabilidade pessoal, como se fosse um deslize pessoal.

Essa é a cobrança mais imediata, mais banal, a que mais apaixona e a que menos preocupa a quem tem noção das coisas. Ela não corresponde ao que se espera de quem exerce o poder, mas simplesmente deleita aqueles que não sabem, que não conhecem o processo histórico.”

E acrescentou:

“Quem não sabe não pode. E, muitas vezes, quem sabe pode tanto que se torna arriscado crer nesse saber sem controle.”

V. Exª é um exemplo, é um homem que sabe, que conhece, é um estudioso, é um scholar, inclusive desta Casa. Veja como o Presidente alerta para essa questão, que também o afeta. Repito:

“E, muitas vezes, quem sabe pode tanto que se torna arriscado crer nesse saber sem controle. De alguma maneira, houve uma sacralização do saber, na medida em que os que sabem passaram a desenvolver uma linguagem esotérica. E o controle sobre esse poder ainda está muito longe.”

Veja aqui um homem de formação nitidamente lógico-racional, como o Presidente da República, como é V. Exª, como somos nós da mesma geração. A essa altura da vida e do desenvolvimento e no final do século XX, coloca em questão esse império do saber, essa arrogância do saber que tem caracterizado predominantemente os atos da humanidade.

Um tema que é comum a nós ambos, o meio ambiente, só existe na magnanimidade, na brutalidade em que está colocado para o mundo, ou seja, a destruição do meio ambiente. O mundo foi presidido por uma lógica da industrialização, tanto no capitalismo como no socialismo, que gerou destruições dessa ordem. Era o império do saber dominando exclusivamente todos os atos e, em nome desse império do saber, por meio da lógica formal, o crescimento paralelo de antagonismos a tudo aquilo que o saber construiu.

Veja como o Presidente não estava ali fazendo um jogo de cena, mas agindo numa dimensão que, infelizmente, não é conhecida nem é tripulada neste País: a da política com pedagogia. Os nossos políticos, talvez os do mundo inteiro, perderam um pouco a noção de que a política é também uma pedagogia; ela é formadora, não é só a luta pelo poder; não é só a vitória de um sobre o outro; não é só a disputa emocionante para as manchetes dos jornais: ela representa uma pedagogia; é a mais alta forma de pedagogia, talvez, quando consegue fazer com que os cidadãos cada vez mais cresçam na sua própria condição de cidadania, até pelo debate, pela contradita, mas pela busca do conhecimento dos intrincados caminhos que a vida tem e das dificuldades que a realidade põe a cada momento.

O Presidente conclui fazendo um apelo à criatividade. Isso é muito interessante quando parte de um homem que vem da academia e, sobretudo, de uma academia tão remplie de soi-même como é a Universidade de São Paulo, que está acima do bem e do mal, por meio de todos os seus grandes luminares. Uma academia notável, sem dúvida, mas muito pretensiosa e também muito ciosa do seu saber.

Sua Excelência diz:

“A imaginação é a verdadeira chave que leva à percepção e à mudança, que permite que se avance na política, na ciência, em qualquer dos campos. Aí não há regra e é preciso ter humildade. É irracional imaginar que, com regras predeterminadas e com um conhecimento anterior do que vá acontecer e com muita análise, se vai conseguir dar o salto.” 

O Presidente coloca os elementos “acaso” e “criatividade” como elementos formadores, paralelos ao do saber, a plenitude da ação do homem de política. E, até para surpresa minha, refere-se à criatividade como um elemento fundamental, indispensável. Sua Excelência passa a idéia de que essa chispa de luz de repente é capaz de impregnar um político e o retira do próprio saber; retira-o da própria rotina do seu pensamento, porque o pensamento tende à rotina em relação às crenças que já tem e é capaz de criar um elemento novo, que será o tradutor da mudança. Nesse ponto, a política se aproxima da arte, exatamente porque a arte é a possibilidade de uma instância sempre nova dentro do mesmo.

A criatividade se põe como uma grande questão. Diz o Presidente:

“Se a pessoa, mesmo na academia e na política, tiver um conhecimento enorme, for capaz de reconhecer todas as relações entre o poder e o saber, tiver a melhor disposição e não for, em um certo momento, bafejado pelos outros - às vezes, quem sabe por Deus, por um raio que de repente lhe ocorre - nada muda.”

Esse entendimento, que vem do campo da criatividade, que vem do campo da arte, que vem do campo da intuição, traz para o debate político, a meu ver, uma linguagem nova. Cabe a um presidente da república, que vive no poder diariamente essas torturas, entre tudo o que deseja fazer, tudo o que há para fazer neste País e o tamanho da possibilidade, analisar essas questões, sobretudo quando se trata de um Governo que tem pouca visibilidade, porque está operando transformações conceituais no País. Principalmente quando há uma Oposição aguerrida e competente, que levanta os problemas tópicos - que sabe que não são culpa do Presidente, porque se acumularam ao longo dos anos, mas são gritantes. Infelizmente, a Oposição não nos ajuda a superá-los: por ela, ajudaria a mantê-los, porque quem a mantém são os problemas. Mas, quando a Oposição os aponta, ela está fazendo um apontamento de natureza tópica.

Sr. Presidente, deixo essas reflexões com a Casa, sem nenhuma pretensão de ser finalista, decisivo e de dar a última palavra sobre essa matéria. O Presidente da República abriu um debate, um belo debate de alto nível com a Nação, e não creio que o Senado possa ficar alheio a ele, devendo a tarefa de, de alguma forma, estudá-lo e fazê-lo, como tive oportunidade de tentar aqui hoje, agradecendo ao Senador Eduardo Suplicy pela colaboração sempre culta, sempre honrada e sempre idealista que trouxe.

Muito obrigado a V. Exª.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/04/1998 - Página 6889