Discurso no Senado Federal

REFLEXÃO SOBRE O MASSACRE DOS SEM-TERRA, EM ELDORADO DOS CARAJAS, NO SUL DO ESTADO DO PARA, QUE COMPLETOU DOIS ANOS NO ULTIMO DIA 17.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • REFLEXÃO SOBRE O MASSACRE DOS SEM-TERRA, EM ELDORADO DOS CARAJAS, NO SUL DO ESTADO DO PARA, QUE COMPLETOU DOIS ANOS NO ULTIMO DIA 17.
Publicação
Publicação no DSF de 21/04/1998 - Página 6926
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, ANALISE, ANIVERSARIO, MORTE, SEM-TERRA, CONFLITO, POSSE, TERRAS, RESPONSABILIDADE, POLICIAL MILITAR, MUNICIPIO, ELDORADO DOS CARAJAS (PA), ESTADO DO PARA (PA), IMPUNIDADE, POLICIA MILITAR, RECUSA, GOVERNO, INDENIZAÇÃO, VITIMA, RESULTADO, ESTRUTURAÇÃO, NATUREZA SOCIAL, SOCIEDADE, BRASIL, DESIGUALDADE SOCIAL, EXCLUSÃO, POPULAÇÃO CARENTE, DISTRIBUIÇÃO DE RENDA, EXPLORAÇÃO, CLASSE EMPRESARIAL, TRABALHADOR.

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, eu deveria ter falado, na semana passada, sobre os dois anos transcorridos do massacre de Eldorado dos Carajás. No entanto, infelizmente, não tive oportunidade de fazê-lo, mas faço agora.

Temos, mais uma vez, uma triste motivação para ocupar esta tribuna. Na história dos povos, alguns acontecimentos condensam, em sua intensidade e, em alguns casos, em sua crueldade, as principais características que definem as sociedades em que ocorrem. Alguns estudiosos, como Marcel Mauss, antropólogo francês da escola de Durkheim, dá a esses fenômenos o nome de fatos sociais totais. Que natureza de fenômenos poderia, no Brasil, assumir tal denominação? Que acontecimentos, na história recente de nosso País, poderiam sintetizar a exploração e a evisceração a que estão submetidas as classes trabalhadoras brasileiras?

Se o trabalho assalariado, nas condições estabelecidas no sistema capitalista, representa a forma mais desenvolvida de exploração do homem e de sua capacidade de criar e produzir riquezas, não seria, no entanto, suficiente esse fenômeno para dar um retrato fiel de nossa sociedade. A desigualdade social no Brasil não se esgota na exploração do trabalhador através do trabalho, conforme ocorre nos países onde o capitalismo, segundo alguns, se “civilizou”. Não basta às nossas classes dominantes explorar: é preciso exterminar e demonstrar exemplarmente que a morte pode ser o fim dos que levantam a voz para contestar a condição a que estão submetidos.

O massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no dia 17 de abril de 1996, em que 19 trabalhadores foram brutalmente assassinados e 51 foram feridos, representou uma triste síntese do Brasil. Podemos, então, identificar ali um fato social total, agrupando as principais características que definem a sociedade brasileira: desigualdade, exclusão, exploração, um Estado a serviço das classes dominantes e impunidade. Mas, por outro lado, em sua complexidade, esse fato social revela também outra face do Brasil: a face daqueles que resistem, com o custo da própria vida, a essa estrutura social desumana.

As 69 pessoas feridas no massacre de Eldorado dos Carajás ainda não foram sequer indenizadas.

Datam de muito tempo a luta e os conflitos pela terra no Brasil. Parece até que a nossa densidade democrática é muito alta e que o Brasil, ao invés de 8 milhões e 500 mil quilômetros de extensão, é um País de terras escassas. Nem a população é muito numerosa e muito menos as terras são estreitas, restritas, limitadas. Portanto, o conflito não é um conflito populacional, um conflito demográfico, mas um conflito social.

Não há dúvida alguma de que o que se verifica no Brasil, ao contrário do que ocorreu em outros países como os Estados Unidos, o Japão, a Suécia, a Alemanha, é a formação de uma cultura em que o homem é alijado, expulso das condições de trabalho. O homem é marginalizado, é “sucateado” prematuramente, envelhecido e lançado nas “Santas Genovevas” e nos “Caruarus” da vida.

Agora, verifica-se no Brasil essa nova onda de promessas de que uma reforma agrária será realizada, talvez de forma semelhante àquela que, desde os meados do século passado, num processo continuado, foi feita nos Estados Unidos, país em que, por meio da lei Home Stead, qualquer imigrante recebia 170 acres de terra, onde podia trabalhar com sua família. Só entre 1900 e 1910, 90% das terras que constituem o centro-oeste norte-americano foram ocupadas, neste processo que deu aos trabalhadores acesso à terra.

Na Suécia, dizia, ainda nos anos 60, Gunnar Myrdal, um economista preocupado com os problemas sociais, que, no século passado, pelo menos, oito reformas agrárias mais profundas do que as cogitadas no Brasil, naquela ocasião, haviam sido realizadas. No Japão, em média, o módulo fundiário é de apenas 8.000m2. São exemplos muito diferentes do que ocorre hoje nas relações no campo no Brasil com os trabalhadores sem terra desejosos de ter acesso às condições de trabalho.

Aqueles que acham que os trabalhadores sem terra são muito violentos esquecem-se que mais de 1.800 trabalhadores sem terra morreram no mesmo período em que cerca de 5 ou 6 fazendeiros, capangas e protetores armados da propriedade privada faleceram.

Violência mesmo ocorreu no México, por exemplo, onde milhares de pessoas perderam a vida quando a revolução que tinha por objetivo a reforma agrária - que foi realizada - de Pancho Villa pagou o preço com o sangue do povo mexicano.

A minha preocupação com o problema rural, com a propriedade da terra vem de longa data. Em 1958, estudei, participei, observei e fiz pesquisas a respeito do processo de reforma agrária capitaneado pelos Svimes, Cassa per il Sviluppo del Mezzogiorno. Na Itália, dezoito enti di riforma, criados para levar a reforma agrária às suas regiões mais pobres, realmente constituíram a expressão de uma vontade política de realizar uma reforma agrária.

Para mim, como para Jeremy Bentham, para Adam Smith e para outros que consideram o trabalho humano a maior e mais essencial manifestação do homem, a propriedade privada real, a verdadeira escritura é aquela lavrada pelo trabalho humano. Todavia, vemos aqui, no Brasil, pessoas que nunca trabalharam nem exploraram terra constituírem, por meio da propriedade cartorial, por meio da grilagem, uma propriedade sobre outra propriedade; propriedades fictícias, propriedades ladravazes, propriedades que não apenas desrespeitam os trabalhadores, mas também impedem que o trabalho humano seja executado no processo de transformação do mundo e do homem.

No entanto, terra não falta neste País, ao que parece, porque, além das terras devolutas, uma pletora de terras abandonadas deveriam ser destinadas aos trabalhadores - ao lado daquelas que o Exército, em boa hora, cedeu ao processo de reforma agrária - para que o acesso à terra fosse, embora tardiamente, conseguido por aqueles que não a têm.

Nos Estados Unidos, 2,7% da população economicamente ativa está ocupada no campo, 2,7% apenas. Pode acabar acontecendo com a reforma agrária no Brasil o que aconteceu com a Lei do Divórcio: quando ela chegar, pode ser que a população brasileira esteja, como a americana, 2,7% no campo e a reforma agrária, então, será inútil, como foi inútil a Lei do Divórcio em um país em que as pessoas, cansadas de esperar uma solução jurídica formal, resolveram na prática seus conflitos, sua vontade de encontrar a felicidade em outra união conjugal.

Há 2 anos, 19 trabalhadores receberam seu quinhão de terra, o espaço de seu túmulo. Dois anos de impunidades que demonstram que o Poder Executivo Estadual e o Federal, por ação ou por omissão, são responsáveis pelo crime e por sua repetição. A Justiça paralisada, tardia e preguiçosa é uma Justiça que favorece o crime ao adiar o apenamento dos criminosos, principalmente os do colarinho branco e os da classe dominante.

Não perguntem o que lamentamos, não perguntem por quem choramos, não perguntem por quem nos solidarizamos. Fazemo-lo por todos os massacrados, marginalizados, decaídos, caídos, mortos e esquecidos.

Lamentamos e nos emocionamos pelos heróis tombados na luta de Eldorado dos Carajás. Por eles os sinos dobram, dobram por todos nós, órfãos da justiça, órfãos da eqüidade, órfãos da proteção social e igualitária do direito à vida, ao trabalho, à terra, à casa, à saúde e ao ensino.

Os sinos dobram pelos esquecidos de Eldorado de Carajás, pelos 1.844 mortos na mesma luta. Os sinos dobram também por todos nós, pelo nosso silêncio conivente, pela nossa falta de solidariedade.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/04/1998 - Página 6926