Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DO DEPUTADO FEDERAL LUIS EDUARDO MAGALHÃES.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DO DEPUTADO FEDERAL LUIS EDUARDO MAGALHÃES.
Publicação
Publicação no DSF de 24/04/1998 - Página 6963
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, LUIS EDUARDO MAGALHÃES, DEPUTADO FEDERAL, ESTADO DA BAHIA (BA), EX PRESIDENTE, CAMARA DOS DEPUTADOS.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Para encaminhar a votação. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Sr. Presidente em exercício da Câmara dos Deputados, que nos honra com sua presença, Srªs. e Srs. Senadores, dentre aquilo que para nós parece crueldade, a morte tem porém um dom contraditório especial: revela, num segundo, o sentido de uma vida. Quanto de um ser humano não compreendido, incompreendido ou desconhecido ao longo de uma vida, no instante seguinte ao de sua morte, torna-se de imediato revelado, claro. É um mistério que acompanha a humanidade chorar de dor a perda e, ao mesmo tempo, acompanhar o mistério dos desígnios. A morte sempre revelou, em profundidade, o sentido de uma vida.

O que aconteceu neste País com algumas mortes? A morte de Tancredo subitamente envolveu o Brasil numa onda de compreensão profunda do que fora a vida de Tancredo, do que é a política e do que foi, é e será a atividade de um homem público de honra. A morte de Juscelino também traduziu, com a imagem tão bela, citada pelo Senador Hugo Napoleão, da estrela que surge, o sentido daquela vida.

Fui jovem ao tempo de Juscelino Presidente, mas sei o que se disse de Juscelino neste País e sei também o quanto a história não reservou espaço para os que dele disseram, reservando-lhe, ao contrário, um espaço de glória. Sua vida ficou clara em poucos segundos. Ainda recordo o enterro de Juscelino; aquela bandeira brasileira, ainda ao tempo da ditadura, sendo levada pelo povo de Brasília, na cidade em que ele idealizou, construiu e amou, e, graças aos meios de comunicação, o Brasil inteiro voltado para aquele instante.

A morte de Ulysses revelou com muita clareza o sentido de sua vida. A morte dos que padeceram torturas, dos que morreram na luta armada que uma parte do Brasil realizou de lado a lado. Enfim, nos consideramos muito pequenos para a compreensão funda desses desígnios.

Fico a pensar no sentido dessas duas mortes recentes: a de Sérgio Motta, sobre a qual falei aqui, na sessão de segunda-feira, e a de Luís Eduardo. Não estaria por dentro dos desígnios revelar ao País a consciência do que é a política e seus valores mais altos? Creio que sim. A política é uma atividade incompreensível, senão para quem a faz. É a impressão que tenho ao longo de todos esses anos. Somente quem a faz é capaz de compreendê-la. E nós não temos no Brasil, infelizmente, condições para que a política seja considerada no seu verdadeiro sentido, na sua verdadeira importância.

É curioso! Fala-se tanto dos políticos e, no entanto, dois políticos morrem e a Nação os reverencia, porque descobre a existência ali de valores altos, correspondentes ao que deve ser a política de um país. Estaria ali uma lição de compreensão da importância não de ser conivente com os erros da política, mas de ser compreensivo com os seus caminhos?

Tenho uma convicção na qual eu sou muito solitário, também não tenho nenhuma pretensão de convencer ninguém (aliás, tenho certeza de que não convencerei ninguém com essa convicção): a de que os países que valorizaram a política são aqueles que conseguiram estabelecer democracias estáveis no século XX. É muito curioso! A Alemanha sai do nazi-fascismo e organiza um sistema inteiramente montado na política, a tal ponto que financia as campanhas eleitorais. A Itália sai do fascismo, arrebentada da guerra, leva quase três anos para fazer uma constituição, que é massacrada pelo imprensa, pelo povo, por tudo mundo, porque fora uma constituição de conciliação, para que se terminasse o processo constitucional, e de lá até cá a Itália é uma das democracias mais estáveis do mundo. A pequena Suíça é um exemplo interessantíssimo de organização democrática, apesar de todo o caráter elitista e hierático do comportamento suíço - ainda outro dia o novo Embaixador nos dava uma aula sobre este país. A Suíça é inteiramente montada na predominância da atividade política, uma atividade política que se expressa através da democracia direta, tanto quanto da democracia representativa.

Luís Eduardo revela ao País, na sua história, no seu exemplo, na tragédia de sua morte, como é possível e como existem políticos qualificados neste País. Interessante que, ao mesmo tempo em que, semanas antes, vozes restritivas tanto falavam mal das articulações feitas para que houvesse condições de avanço nas matérias constitucionais, essas vozes ficam obrigadas a reconhecer que os artífices da articulação necessárias às reformas eram dois homens de bem, dois homens qualificados. Não estará aí também uma outra lição a emergir da dor da morte, a de que é possível conciliação, a de que é possível entendimento? Creio que sim.

Há um outro ponto ideológico que me parece muito importante. Há muito pouca compreensão no Brasil sobre o que é um liberal moderno, até porque o pensamento liberal foi, em certo momento, apropriado pelos setores mais reacionários do País. Um liberal moderno não é o reacionário do meu tempo, nem o capitalista selvagem que aprendi a conhecer e a combater nos anos passados do Brasil. O liberal moderno é um homem que vem através da compreensão das regras do mercado para uma atitude social compatível com as circunstâncias brasileiras. Um liberal moderno é um homem capaz de compreender a importância de alianças, na profundidade do fenômeno político, como base indispensável ao avanço.

Luís Eduardo era um liberal moderno, como liberais modernos há vários em seu Partido, e que hoje são grandes artífices de uma mudança que muitos dos que se dizem progressistas - e o são, na vontade - não conseguem sê-lo na prática, porque se atrelam a posições antigas, cediças, ultrapassadas, de uma predominância absoluta do Estado benefactor, do Estado paternalista, do Estado todo-poderoso. Ilusões da minha juventude, é certo. Aceito. Mas os liberais modernos são capazes de dar-nos essa lição, e de entender em profundidade como é possível essa aliança se dar com outros setores da vida como socialdemocratas e até como socialistas democráticos para a pavimentação de um caminho de avanço. Essa lição também ficou.

Quando se alude àquele grupo que, desde à Constituinte, se unia, juntando pessoas do PT, do PDT, do PMDB, Luís Eduardo, ali estava um exemplo de que é possível.

Há mais, a política, dentre as suas qualidades, tem uma muito pouco observada. A política ensina a cordialidade. Claro que, de vez em quando, alguns políticos se engalfinham, mas, em geral, a atividade política ensina a cordialidade - outro aspecto muito pouco compreendido da política. Constantemente diz-se: “ah, vocês se ofendem ali, atacam-se da tribuna e saem abraçados.” É verdade. E é uma qualidade, uma virtude. Não digo a ofensa, mas a luta tenaz pelas idéias, quando não envolve a questão pessoal, é um exemplo de pedagogia política.

Pouca gente sabe por que os Deputados e Senadores são obrigados a tratarem-se por V. Exª. É porque a posição desse chamamento inicial impõe a necessidade de uma compostura no exercício do debate de idéias. Sábios foram aqueles que, no passado, encontraram essa forma de manter incólume a compostura, o respeito necessário à troca violenta de idéias. Até porque, se assim não fosse, justamente o organismo encarregado pela sociedade de executar o metabolismo das idéias em confronto não funcionaria devidamente e, fracassando ele, fracassariam o próprio sistema e o próprio País.

Reparem que, até nisso, a lição de Luís Eduardo é interessante. Aquele sorriso, aquela alegria, tudo isso vem à tona no momento de sua morte e se torna, nesse mistério da morte, como reveladora de um sentido de uma vida: virtude, qualidade exaltada, aliás, por todos os noticiários, por todos os discursos.

Ainda nos últimos momentos de Luís Eduardo, tive oportunidade - hoje, para mim, inapagável da memória - de vivenciar a cordialidade. Cruzei com ele poucas horas antes de ele ter o insulto cardíaco, quando caminhava na mesma superquadra, e ele passou por mim numa velocidade muito grande, andando. E, com muita simpatia - os nordestinos me chamam de Artu, sem “r”, e gosto muito de ouvir esse som simpático - ele disse: “Oi Artu!” E passou rápido. E até comentei com a minha mulher, com quem caminhava: “Mas ele está caminhando muito rápido”. E ela falou: ”Mas ele é jovem, está habituado.” E eu ainda me voltei, porque quis acompanhar com o olhar a caminhada dele, porque me pareceu assim que ele estava muito rápido. Ele estava no afã, me disse o pai, lá no hospital, de perder uns quilos. E guardei ainda esse último aceno, assim tão carinhoso, carinho aliás que ele mantinha em todos os momentos das nossas pequenas e rápidas convivências. Essa cordialidade - cordis, que é coração, no latim - que vem do traço do coração.

Um outro ponto interessante: como é ser filho de Antonio Carlos Magalhães? Como é ser filho de uma estrela fulgurante, de um vulcão, como quiserem chamar? Como Luís Eduardo soube unificar dois aspectos tão lindos da vida: ser filho de um homem de personalidade, que ocupa o espaço seu e de tudo que faz, amar esse pai em profundidade, ser por ele amado e ter luz própria. Caminho seu, temperamento seu, modo de agir seu, jamais repetição do estilo do pai, e de um pai a quem sempre amou em profundidade.

As emissoras de televisão estão a passar aí momentos dos dois. Vale a pena a atenção no olhar do Antonio Carlos quando o Luís Eduardo está perto. Fixei-me nisso várias vezes. O olhar de pai quando o filho está perto é um olhar tocado por magia, por encanto, é indefinível. Esse olhar é que pavimentou a certeza de que aquela união era muito sólida. Ora, o sentimento de amor filial é ou não algo que a nossa sociedade, na perda de valores, hoje quase que desdenha? Aí está outra lição dessa vida.

Enfim, perdemos precocemente uma grande possibilidade de prosseguimento da atividade política nos níveis em que todos os homens de bem deste País sonham e planejam.

A política tem algumas regras. Costumo dizer que a principal delas é a lealdade. Inteligência é importante? É, mas só a inteligência não faz um político. Esperteza - que, aliás, é uma forma menor de inteligência, mas é algo importante na vida política - é importante? É, mas só com esperteza não se faz política. Dignidade é importante? Claro! É fundamento, não é nem finalidade da ação política. Faz-se política por ser digno e não para ser digno. Mas não é também a única finalidade da ação política. Estou convencido, nesses anos, que a regra básica da política é a lealdade, porque esta, quando está ausente, todas as demais características positivas desaparecem. O político desleal, ou seja, que não é capaz de cumprir a sua palavra, aquele que assume compromissos e não os revela, aquele que, em nome de seus interesses, passa por cima de valores, de promessas, o político desleal pode até ter pequenas vitórias, porém não dura. E quem é político sabe que o segredo dessa atividade nem é nela entrar, é nela permanecer, porque é uma atividade de extrema dificuldade. A cada quatro anos voltada a uma atitude de humildade, de retornar à sociedade para pedir o voto e, quando ele é negado, as carreiras políticas são interrompidas, às vezes com injustiça. Portanto a permanência tem um segredo e, às vezes, em nome da permanência, o conceito da lealdade vai se embora. Por isso, ele, a meu juízo, é o conceito básico da ação política. Ele foi um exemplo de lealdade, dito pelos seus adversários políticos, aliás Antonio Carlos é assim também. A lealdade é um traço que o marca nos seus acertos e nos seus erros, na sua formidável capacidade de compreensão e nos seus destemperos. Do pai ele herdou também essa característica. Lealdade, franqueza, coragem, trabalho e caráter são alguns aspectos que vão ficar como lição de vida desse menino que partiu tão cedo.

Quando Luís Eduardo morreu, estávamos no hospital, assistimos e vivemos com profundidade a dor do pai. Recordei-me de algo que foi muito comum à minha infância. Meu pai perdera uma filha, a minha irmã; tinha cinco anos quando eu nasci. E meu pai se aferrou a um poema de Fagundes Varela - grande poeta brasileiro do século passado, que perdera um filho - chamado Cântico do Calvário. É um dos mais belos poemas e talvez dos menos conhecidos, embora esteja em algumas antologias permanentemente. É um discurso na linha das exaltações verbais da poesia do século passado, de maravilhosa penetração, e só ele, até hoje na literatura portuguesa, vi contar o que é a dor de um pai. 

Não terei tempo para ler o poema, porque ele é extenso, porém lerei a sua primeira parte com a qual concluo essa fala de homenagem, de saudade, pensando no Sérgio, pensando no Luís Eduardo, pensando nos que ficaram, na família de cada um deles, pensando em Antonio Carlos Magalhães e em todos que aqui hoje, com tanta sinceridade, com tanta emoção, com tanta beleza de alma, traduziram dores passadas de suas vidas.

CÂNTICO DO CALVÁRIO

À MEMÓRIA DE MEU FILHO MORTO A 11 DE DEZEMBRO DE 1863

Eras na vida a pomba predileta

Que sobre um mar de angústias conduzia

O ramo da esperança. Eras a estrela

Que entre as névoas do inverno cintilava

Apontando o caminho ao pegureiro.

Eras a messe de um dourado estio.

Eras o idílio de um amor sublime

Eras a glória, a inspiração, a pátria,

O porvir de teu pai! - Ah! No entanto,

Pomba, - varou-te a flecha do destino!

Astro, - enguliu-te o temporal do norte!

Teto, - caíste! - Crença, já não vives!

Correi, Correi, oh! Lágrimas saudosas,

Legado acerbo da ventura extinta,

Dúbios archotes que a tremer clareiam

A lousa fria de um sonhar que é morto!

Correi! Um dia vos verei mais belas

Que os diamantes de Ofir e de Golgonda

Fulgurar na coroa de martírios

Que me circunda a fronte cismadora!

São mortos para mim da noite os fachos,

Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,

E à vossa luz caminharei nos ermos!

Estrelas do sofrer, gotas de mágoa,

Brando orvalho do céu! Sêde benditas!

Oh! Filho de minh’alma! Última rosa

Que neste solo ingrato vicejava!

Minha esperança amargamente doce!”

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/04/1998 - Página 6963