Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM AO DIA DO INDIO, TRANSCORRIDO NO ULTIMO DIA 19 DO CORRENTE MES.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM AO DIA DO INDIO, TRANSCORRIDO NO ULTIMO DIA 19 DO CORRENTE MES.
Publicação
Publicação no DSF de 01/05/1998 - Página 7316
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, INDIO, COMENTARIO, HISTORIA, BRASIL, VIOLENCIA, AMEAÇA, CULTURA, TRIBO, MOTIVO, MINERAÇÃO, REGISTRO, LUTA, DEMARCAÇÃO, RESERVA INDIGENA.
  • HOMENAGEM POSTUMA, GALDINO JESUS DOS SANTOS, INDIO, VITIMA, HOMICIDIO, CAPITAL FEDERAL.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT-SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, hoje faço um pronunciamento em homenagem ao índio, uma vez que dia 19 de abril último, Dia do Índio, foi um domingo.

Quando os conquistadores europeus desembarcaram em terras americanas e estabeleceram os pequenos contatos com as populações existentes, logo se perguntaram se aquela gente tão estranha possuía ou não alma. Foi preciso esperar mais de 40 anos para que o Papa Paulo III, em 1537, declarasse, numa Bula, que os índios eram seres humanos como os brancos, tinham alma e eram também descendentes de Adão e Eva. Daí para frente, apesar de terem sido reconhecidos pela Santa Igreja Católica como “filhos de Deus”, os índios começaram a ser caçados e abatidos implacavelmente pelos mosquetes, pelas lâminas das espadas, pelas doenças trazidas pelos descobridores, pela aculturação forçada e pelo avanço feroz do colonizador em suas terras. Assim, empunhando arcos e flechas contra armas de fogo, os povos indígenas foram covardemente assassinados no maior genocídio da humanidade. Em pouco mais de 500 anos, das pradarias da América do Norte ao extremo sul do continente, a história americana foi escrita com o sangue de milhões e milhões de autóctones.

No Brasil, passados quase 500 anos da chegada das Caravelas de Pedro Álvares Cabral, não sabemos precisar exatamente quantos são os sobreviventes do massacre americano. Infelizmente, o conhecimento de nossa diversidade sociocultural restringe-se aos ambientes universitários e aos círculos acadêmicos especializados, dedicados ao estudo das sociedades indígenas.

O repúdio de uma cultura sobre a outra, a discriminação dos costumes ou a não-aceitação de uma raça, principalmente quando uma delas se sente superior, é uma atitude enraizada nos seres humanos. Em relação aos índios, esse etnocentrismo era patente por parte dos conquistadores que os definia como indolentes, primitivos, selvagens e bárbaros.

Calcula-se que a população indígena existente hoje no Brasil não ultrapassa os 100 mil indivíduos. Eles compreendem cerca de 143 grupos tribais. Mais da metade está localizada na Amazônia e no Maranhão, que abrigam 94 grupos. No Centro-Oeste, encontramos 34 grupos.

Desses 143 grupos, 33 ainda vivem isolados, ou seja, mantêm apenas contatos esporádicos com o homem branco e, mesmo assim, já são vítimas das chamadas moléstias da “civilização”.

Como já dissemos anteriormente, da mesma maneira com aconteceu na América do Norte, a conquista do Brasil, desde os primeiros momentos até os dias de hoje, foi realizada a ferro e a fogo. O avanço para abrir o território e tomar posse da hinterlândia habitada pelos aborígenes aconteceu de maneira feroz e cruel, sob a égide da violência, da impunidade, da proteção da metrópole e da Igreja. Assim, com uma espada ou um mosquete e um documento real de posse no bolso, o conquistador branco promoveu uma verdadeira carnificina no território brasileiro.

Para termos uma idéia do tamanho do genocídio e da luta desigual que foi travada em nosso solo e que continua até hoje entre brancos e índios, basta avivarmos um pouco a nossa memória, regredirmos no tempo e recordarmos todos os passos que foram dados até este momento para a construção da sociedade brasileira.

Sem dúvida nenhuma, a primeira preocupação deve ser a de saber como era o mapa do Brasil nos primeiros momentos do descobrimento. Alguns estudiosos admitem que, por volta dos primeiros anos de 1500, a nação indígena brasileira era representada por cerca de 6 milhões de pessoas, enquanto Portugal tinha apenas 1,5 milhão de habitantes.

Nos primeiros 100 anos de nossa formação, mais precisamente no século XVI, os índios, habitantes do litoral leste de sudeste, membros da nação Tupi, foram passados nas armas. Os que conseguiram escapar tiveram de entregar suas terras, morreram vitimados pelas doenças ou viraram escravos nas mãos dos senhores da guerra. É justamente nessa época que acontece a varredura e a limpeza do litoral brasileiro, onde pouco depois surgiriam os primeiros núcleos habitacionais. Em primeiro lugar, as capitanias; em seguida, os povoados e os vilarejos; mais adiante, as vilas; depois, as cidades e, por fim, nos dias atuais, as grandes metrópoles litorâneas.

           Hoje, apenas alguns remanescentes da outrora orgulhosa nação Potiguara, tronco do grupo Tupi no litoral da Paraíba, abandonados à sua própria sorte, analfabetos, doentes, prostituídos, perambulando e esmolando nas feiras do interior, servindo como motivo de graça e piada para os turistas nacionais e estrangeiros ávidos por uma fotografia exótica, são os únicos sobreviventes, as únicas testemunhas que sobraram para contar a história dessa tragédia americana que eles sabem que existiu um dia e que vitimou em massa os seus antepassados.

           No século seguinte, o XVII, foi a vez das nações que habitavam o Maranhão e o Pará. Os conquistadores tinham ordens para expandir a lavoura, garantir o desempenho da indústria da cana-de-açúcar em plena efervescência e conquistar novos pastos para o gado. Assim, em nome do “progresso desejado”, o Governo português, mais uma vez, colocou suas tropas em ação de combate efetivo, que atingiu também o resto do Nordeste e a região do rio São Francisco.

           No século XVIII, um novo interesse estava em jogo e o ouro passou a ser a grande obsessão da metrópole portuguesa, comprometida até o “pescoço” com as dívidas que precisavam ser saldadas com a Inglaterra. Para isto, era preciso matar mais índios e desta vez liberar as Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Foi assim que os Kayapo começaram a desaparecer em Goiás e no Triângulo Mineiro e os Timbiras pagaram muito caro no Maranhão.

           Os grandes massacres continuaram no século XIX com o avanço acelerado das pastagens no centro do Brasil e com a presença do gado. Os Xavantes são caçados e mais uma vez os Kayapo.

           O povo indígena Yanomami, o maior das Américas que ainda mantém praticamente intactas as tradições culturais de seus antepassados, vive na Amazônia, na fronteira do Brasil com a Venezuela, numa área de florestas tropicais, lagos e montanhas que é uma das maiores reservas ecológicas do mundo. No entanto, a partir dos anos 70, essas tradições estiveram sob a ameaça de desaparecer, por força da expansão maciça da fronteira econômica da mineração.

           Com a desenfreada corrida ao ouro e a outros minérios do subsolo amazônico, os Yanomami - um dos mais numerosos povos indígenas brasileiros - ficaram encurralados e ameaçados de genocídio. Dia após dia viram-se violentados na sua cultura milenar, submetidos à manipulação pelo Estado e cooptados pelos invasores, vítimas do avanço incontido de uma inquestionável “civilização” e de um duvidoso “desenvolvimento econômico”, sinônimos de morte, de extermínio de um povo.

           A delimitação oficial de seu território, em 1992, representou para as novas gerações Yanomami um novo alento na defesa e preservação de sua herança histórica e ecológica. Cabe agora à sociedade brasileira ajudá-los a responder ao duplo desafio de reconstruir sua sustentabilidade socioecológica e cultural após o contato predatório das décadas de 70 a 90, adaptando-se à conjuntura em que suas vidas se vêem inseridas mas resguardando sua capacidade de transmitir suas tradições enquanto pesam os novos parâmetros de sua realidade social.

No século XX, e até agora às vésperas da comemoração dos nossos 500 anos de descobrimento, o genocídio continua e encontra a proteção da impunidade. Tenho certeza de que é realmente chocante para os verdadeiros cidadãos deste País, Sr. Presidente Lúcio Alcântara, saberem que, no século das grandes tecnologias, ao mesmo tempo em que um foguete é lançado ao espaço, em que um minúsculo chip de um computador é capaz de armazenar milhões de informações, em que um satélite varre o espaço à procura de novas vidas e de novas realidades e um robot realiza com perfeição as tarefas de muitos operários ao mesmo tempo, um pobre índio, de madrugada, numa parada de ônibus, em plena capital do Brasil, tenha sido queimado vivo por um bando de jovens de classe média alta da nossa sociedade.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, infelizmente é este o saldo de nossa evolução histórica, pautada pelo crime, pela destruição e pelo saque. Dessa maneira, não há motivos para comemorações neste “dia do índio”. Deve ser, sim, um dia de tristeza, de luto e de perguntas sérias sobre os destinos da raça humana. É mais uma oportunidade que teremos para fazer uma reflexão sobre o tamanho da maldade, da perversidade e da monstruosidade que ainda existem em muitas cabeças.

Termino este pronunciamento pedindo justiça para quase 6 milhões de índios que foram exterminados pelos conquistadores brancos ao longo de toda a nossa história. Além disso, nunca podemos esquecer que o saldo desse genocídio envergonha os habitantes do mundo civilizado.

O índio Galdino merece hoje a nossa homenagem póstuma.

Era o que eu tinha a dizer.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/05/1998 - Página 7316