Discurso no Senado Federal

REFLEXÃO SOBRE AS DATAS RELEVANTES PARA O PAIS, COMEMORADAS NO MES DE ABRIL: DESCOBRIMENTO DO BRASIL, INCONFIDENCIA MINEIRA, ANIVERSARIO DE BRASILIA E O DIA DOS METALURGICOS.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • REFLEXÃO SOBRE AS DATAS RELEVANTES PARA O PAIS, COMEMORADAS NO MES DE ABRIL: DESCOBRIMENTO DO BRASIL, INCONFIDENCIA MINEIRA, ANIVERSARIO DE BRASILIA E O DIA DOS METALURGICOS.
Publicação
Publicação no DSF de 12/05/1998 - Página 7912
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, COMEMORAÇÃO, DESCOBERTA, BRASIL, ANIVERSARIO DE MORTE, JOAQUIM JOSE DA SILVA XAVIER, VULTO HISTORICO, ANIVERSARIO DE FUNDAÇÃO, BRASILIA (DF), DISTRITO FEDERAL (DF), DIA, METALURGICO.

A SRª. BENEDITA DA SILVA (Bloco/PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, gostaria de ter feito este pronunciamento no dia 21 de abril. Como isso não foi possível, entendendo que me debrucei a refletir sobre tal data, faço-o no dia de hoje.

Em abril, o povo brasileiro não teve, em princípio, muito o que comemorar em praça pública, dado o agravamento atual das condições de vida e do desemprego no País. No entanto, contra a resignação apática, resta-nos ainda a esperança de sempre buscar alguma luz histórica que seja capaz de nos resgatar das trevas do obscurantismo político vigente. Investida dessa determinação, convoco amistosamente todos a um ligeiro passeio pelos fatos históricos que cercaram esse heróico dia 21 de abril.

Nessa data, o Brasil tradicionalmente interrompe sua árdua caminhada quotidiana e dedica sua memória afetiva e sua formação cívica a quatro marcos históricos de sua trajetória. Refiro-me ao 22 de abril do descobrimento de nossa terra, ao 21 de abril de Tiradentes, ao 21 de abril de Brasília e, finalmente, ao 21 de abril dos metalúrgicos. Trata-se de quatro eventos cuja afinidade entre si transpõe à racionalidade rasa de nossa moderna contemporaneidade. São quatro homenagens que se distinguem no tempo histórico da Nação, mas se identificam no espaço sociopolítico de nossas vidas.

Meu desafio aqui se resumiria, então, à tarefa de trazer à nossa consciência social o fio condutor de nossa existência nacional mediante o entrelaçamento desses quatro marcos históricos no imaginário do País. Sob essa perspectiva, arrisco alinhavar uma interpretação possível de nossa história, por meio da qual a gênese e a dinâmica brasileira podem vir a ser coerentemente descritas, dentro de uma linha narrativa contínua em direção a um desfecho teleologicamente próspero e libertador.

É preciso reconhecer que a matéria exigirá uma alta dose discursiva, pois, como bem sabemos, nem a lógica linear nem a obediência ao princípio da contradição constituem normas preferenciais do pensamento brasileiro. Aliás, a ambigüidade nas idéias e na prática, conforme as sábias anotações de Sérgio Buarque de Holanda, configura a estrutura mínima da cultura nacional. Neste contexto, não há como reconstruir nossa trajetória histórica sem a consciência plena do jogo dialético a que estão sujeitas nossas ações e suas sucessivas interpretações e reinterpretações, seja na ocasião, seja no ambiente onde venham a ocorrer.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, o Brasil se descobre e se redescobre a cada momento, mesmo desde épocas que antecedem o domínio dos portugueses, sem que se possa, com precisão, definir o autêntico início de tudo. Apesar disso, as convenções e classificações históricas existem para pontuar a sacralidade existencial de um povo e apagar eventuais turbulências interpretativas de sua vocação épica. Ao se optar por uma determinada versão hegemônica, a História necessariamente reprime outras politicamente menos convincentes. E mais: no Ocidente, a linearidade das convenções do entendimento se fundamentaria na crença ideológica de que os fatos históricos não se explicam por contradições e paradoxos de seus agentes. Ao contrário disso, segundo a lógica ocidental, a supremacia da razão imporia a objetividade atemporal da causalidade dos fenômenos. Porém, será que, no Brasil, tal sistema poderia ser inteiramente adotado e aplicado sem distorções graves em nosso modelo explicativo da história nacional? Afinal de contas, o descobrimento do Brasil em 1500 finca o nascimento de uma nova sociedade, mas, ao mesmo tempo, determina, inegavelmente, o fim de outras, como bem nos advertem os antropólogos.

Portugueses e espanhóis invadiram territórios do então Novo Mundo movidos pelo interesse da exploração econômica, simultaneamente inspirados pelo impulso renascentista da descoberta, do conhecimento laico, da imposição da ordem humana sobre a divina. Pedro Álvares Cabral e suas caravelas aportaram em Porto Seguro e lá parece terem sido bem recebidos pelos silvícolas de nossas praias. Para além das diferenças no domínio das visões do mundo, portugueses e tupis mantiveram, até certo ponto, equilibradas relações de cordialidade.

Pelo menos, é essa a impressão que temos, quando apreciamos a magnífica pintura de Vítor Meireles, retratando, para a eternidade do belo, o instante da realização da primeira missa em solo brasileiro. Tal imagem, que hoje compõe o acervo permanente do Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro, provoca comoção na alma nacional, porque sua plasticidade nos remete, necessariamente, a uma idéia de batismo coletivo, de instalação original de nosso sagrado pacto social. Em suma, sela de vez nosso compromisso com os valores que celebrem a harmonia, a cordialidade e a prosperidade coletiva.

Emociona-nos, ademais, o significado potencial de uma promessa messiânica rumo à construção de uma nova civilização. Desse modo, por mais ingênuo e ideologicamente romântico que possa vir a ser acusado, o quadro de Vítor Meireles não deixa de bem representar um ideal de união nacional, de identidade coletiva e de convívio pluriétnico.

Evidentemente, do ponto de vista estritamente histórico e objetivamente factual, o descobrimento não ocorreu de forma pacífica nem suscitou de imediato algum sentimento de humanismo transatlântico. Pelo contrário, tudo indica que os interesses econômicos prevaleceram sobre os demais de maneira avassaladora, vigorando o mais absoluto regime de terror por onde os portugueses vivenciavam experiências de contato com os nativos. De um sebastianismo nada fácil de ser superado, a coroa e os portugueses mal podiam distinguir os dois planos da conquista: o plano secular da invasão como ato de guerra e o plano metafísico de um projeto de redenção religiosa.

Aliás, graças à ganância de Dom Manuel I e de seus leais súditos mercantis, o nascimento do Brasil também pode ser, apropriadamente, associado à metáfora do filho bastardo, fruto de aborto malsucedido, cujos pais se recusam a ter que sustentar rebento tão selvagem e primitivo. Nessa concepção, toda a tese que sustenta nosso orgulho nacional cai por terra. Em vez dela, predominaria, no fundo de nossa consciência, um certo sentimento de vergonha e repúdio. Prevaleceria a concepção de uma terra maldita, fadada, desde seu início, ao fracasso, ao vício e à fatalidade do caos. De qualquer forma, a ambivalência do descobrimento perdura no imaginário de nossa gente.

Diante desse quadro melancólico, incomoda-nos a tese quase dogmática que se difunde freqüentemente no País, segundo a qual a vocação da Terra de Santa Cruz seria a prosperidade, o progresso e o desenvolvimento - como se todos esses predicamentos fossem algo de caráter naturalmente “essencialista” e imanentemente relacionado com o destino da Nação.

Ora, se assim o fosse, Tiradentes seria poupado de tanto sofrimento e injustiça quando se imbuiu do dever cívico de lutar pelos ideais de liberdade e igualdade no final do século XVIII. Na verdade, Tiradentes e seus bravos companheiros de Vila Rica não hesitaram em combater a tirania e o autoritarismo da coroa portuguesa por meio da força e das armas, seguindo assim o exemplo revolucionário patrocinado por seus pares simétricos nos Estados Unidos e na França.

A Inconfidência Mineira de 1792 teve como objetivo primordial arrancar o Brasil-Colônia das garras afiadas e predatórias da metrópole lusitana. Seus mentores comungavam de um ideal de liberdade que, a seu modo, restituísse um sentido mais digno de pátria, que ampliasse e enobrecesse o significado de “descoberta” do Brasil.

À luz dos valores proclamados pelo movimento iluminista europeu, o alferes Joaquim José da Silva Xavier e seus companheiros ensaiaram implantar aqui uma nova concepção de poder e política que promovesse, antes de tudo, justiça social e uma nova ordem na distribuição da riqueza local. No entanto, ao contrário do que se poderia esperar a essa altura dos acontecimentos liberais no resto do mundo, a conspiração foi denunciada às autoridades portuguesas e rapidamente sufocada.

Seguindo a função ambivalente de nossos marcos históricos, por mais bem-intencionado que pudesse ter sido, o movimento insurreto da Inconfidência não contemplava em seus planos a extensão do direito de liberdade a toda a comunidade negra escrava da colônia. Não que os conspiradores de Minas fossem indiferentes à causa da abolição, mas, por força de uma conjuntura histórica totalmente adversa à possibilidade de sequer conceber o irmão negro como “humano”, os diversos processos de libertação em curso ao final do século XVIII preferiram relegar o negro a uma categoria secundária no leque das reivindicações políticas. Alegava-se, igualmente, que a estrutura econômica da época não suportaria golpes abruptos em seu funcionamento produtivo.

Portanto, se de um lado a Inconfidência acelerou o processo de independência do País, de outro, desconsiderou toda a situação de humilhação e desumanidade a que estava submetida a população negra do Brasil. Enquanto os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade do Iluminismo serviram ao continente americano e a suas colônias como inspiração no processo de emancipação política, a mesma filosofia liberal serviu, ainda que veladamente, como artifício para promover o exato contrário no continente africano.

Em nome do liberalismo econômico, a África não somente foi obrigada a desterrar seus filhos, como também foi desapropriada de sua soberania, de sua autodeterminação, de sua liberdade. Portanto, se de um lado a inconfidência se prestou a iluminar os diversos processos de independência política das colônias na América, de outro, obscureceu, ainda que temporariamente, as barbáries cometidas contra o povo africano em todo o Ocidente. De fato, a “descoberta” brasileira oficial em torno da importância da raça negra só aconteceu bem mais tarde quando da abolição da escravatura no final do século XIX.

Sr. Presidente, de lá até os anos 50 de nosso século, o Brasil continuou a se esconder por tantas vezes, mas também se descobriu em tantas outras. Sem sombra de dúvida, Brasília se enquadra no grupo das grandes descobertas, ou melhor, das grandes invenções brasileiras do século.

Inaugurada em 21 de abril de 1960, a atual Capital federal completou mais um ano de existência exibindo uma maturidade administrativa jamais vista, ou sequer imaginada dentro do Planalto Central. Projetada para desempenhar papel centralizador na diversificada geografia política do País, Brasília cumpre hoje a contento sua função de unir as diferenças nacionais - sejam de classe, sejam de etnia, sejam de região, e sejam de riqueza.

Todavia, nem sempre à Capital foi consignado espaço político para desenvolver sua vocação para o equilíbrio na ocupação urbana e para o fornecimento de condições básicas de vida e trabalho à população. Isso pôde ser claramente comprovado ao longo da vigência da ditadura militar e nos anos que se seguiram, até a realização das primeiras eleições diretas na Cidade. Por isso, não é inteiramente descabida a suspeita dos demais membros da Federação de que Brasília opera, escandalosamente, como um local de perverso trânsito político, onde a corrupção e o fisiologismo prevalecem em detrimento da vontade coletiva e do respeito à ordem democrática das leis.

Para o Governo atual do Distrito Federal, isso somente se justifica quando desconsideramos, por ignorância e preconceito, a rica experiência cultural que Brasília abriga e promove, ao acomodar brasileiros de todas as regiões do País em suas quadras e em seu cerrado multicultural. Sem abandonar seu ideal originário que propunha romper com as disparidades econômicas e as estratificações sociais do Brasil, Brasília funciona atualmente como um modelo organizacional de rara competência, sob a firme batuta do Partido dos Trabalhadores, a partir do qual centenas de outras administrações municipais passaram a delinear seus projetos de governo.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, há quatro anos que a Capital tenta recompor seu estatuto de cidade séria, moderna, inteligente, justa, bela e administrativamente ágil. Não tem sido fácil atender aos compromissos inadiáveis de tal tarefa, mas a determinação e a honestidade no trato público têm feito do PT do Distrito Federal um exemplo de aplicação dos ideais de justiça social no mundo real das relações humanas. Com muito orgulho, Brasília já pode gabar-se dos projetos de caráter socioeconômico, implementados no início da gestão Cristovam Buarque, que ora prosperam com muita eficácia.

O projeto de renda mínima na educação, bem como o projeto “Saúde em Casa” já podem ser considerados trabalhos impecáveis do exercício do Poder Público verdadeiramente comprometido com causas relacionadas à justiça social. Isso sem mencionar, evidentemente, o sucesso nacional que se registrou quando se lançou em Brasília a campanha de paz no trânsito, cuja iniciativa implicou a mobilização de toda a população local em uma efervescente reeducação coletiva. Em suma, apesar de todos os percalços e de todos os equívocos publicamente reconhecidos, não há como negar que o PT de Brasília estabeleceu um marco civilizatório de difícil contestação. Trabalhadores públicos e privados da capital, a quem no fundo deve-se atribuir a responsabilidade pelo imenso salto qualitativo que houve no processo de conscientização pública e social em Brasília, merecem nosso reconhecimento e nosso aplauso.

Na mesma linha, não podemos hoje deixar de, igualmente, homenagear a categoria dos bravos trabalhadores metalúrgicos, que andam, e sempre andaram, na vanguarda do movimento sindical brasileiro. Ao comemorarem hoje sua data máxima, os metalúrgicos de todo o Brasil aguardam de todos nós o devido reconhecimento pelo papel que exerceram, e exercem, na construção de nosso País. Seja na resistência à ditadura militar em que se engajaram, seja no exemplar modelo mobilizador que difundiram, os metalúrgicos brasileiros nunca compactuaram com os desmandos do Estado, tampouco se submeteram à arrogância colonizadora das indústrias multinacionais.

Pelo contrário, historicamente sempre se comportaram como uma das mais dinâmicas e heróicas categorias da classe trabalhadora brasileira. Nesse sentido, plantaram aqui um novo descobrimento brasileiro ao proclamarem a existência de uma nova consciência, a consciência revolucionária no meio operário das grandes cidades. Num quadro emblemático de lutas e conquistas, tanto o Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro quanto o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC representam duas forças de relevante destaque na defesa de uma legislação trabalhista mais justa e democrática. Não é à toa, portanto, que lideranças notáveis, como são os casos dos companheiros Lula, Meneguelli e Vicentinho, despontaram do meio metalúrgico para o cenário político nacional.

Embora em tempos neoliberais de agora a indústria metalúrgica tenha irresponsavelmente recorrido a demissões em massa no Brasil, os operários metalúrgicos tradicionalmente não se têm sujeitado a concessões que arranhem sua renomada reputação de guardiães da conquista do direito trabalhista. Por isso e muito mais, merecem de todos nós o apreço e a gratidão.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, diante dessa longa exposição, cabe a nós agora rever nossos parâmetros de julgamento da história nacional e, então, propor uma leitura menos maniqueísta dos fatos que marcaram e marcam nossa identidade coletiva. Mais do que isso, a metáfora da descoberta deve servir como um útil orientador de nossas ações e reflexões nesta data que quase abre as portas para o novo milênio. Devemos, por fim, celebrar nossas datas nacionais dentro do espírito da dinâmica interpretativa de nossa história, com o firme propósito de, assim, despertar novos encontros de descoberta coletiva, cujo melhor produto será, certamente, a passagem de uma maior conscientização crítica de nosso passado para a formação próspera de nosso futuro.

Muito obrigada, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/05/1998 - Página 7912