Discurso no Senado Federal

REFLEXÃO SOBRE AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO E DA EXPLORAÇÃO DO HOMEM NO MUNDO DE HOJE.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • REFLEXÃO SOBRE AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO E DA EXPLORAÇÃO DO HOMEM NO MUNDO DE HOJE.
Publicação
Publicação no DSF de 14/05/1998 - Página 8214
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, ANALISE, SITUAÇÃO, BRASIL, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, FALTA, OPORTUNIDADE, NEGRO, EXCLUSÃO, CLASSE SOCIAL, POBREZA.
  • DENUNCIA, DISCRIMINAÇÃO, MULHER, MERCADO DE TRABALHO, EXISTENCIA, TRABALHADOR, REGIME, ESCRAVATURA, GRAVIDADE, INDICE, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, CRIANÇA.

           O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, comemora-se, neste 13 de maio, a abolição da escravatura em nosso País.

           Como subproduto da colonização, o regime escravocrata de tal forma impregnou a sociedade que se vem formando desde o Descobrimento, que até hoje, mais de um século depois da Lei Áurea, materializa-se em persistentes comportamentos e fatos sociais, quer de discriminação racial, quer de exclusão dos mais pobres.

           Não faz muito, discorrendo sobre o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, afirmamos que no Brasil os negros lutam pela igualdade não tanto de direitos, mas, principalmente, de oportunidades.

           Ademais, somos o País de maior população negra fora da África e, no entanto, a ela historicamente recusamos a afirmação de sua identidade cultural.

           Por isso, prossegue hoje a mesma luta de Zumbi dos Palmares, desaparecido em 1695, e dos povos negros do Brasil que o seguiram, pela convivência democrática e mesmos direitos para todos os homens.

           Já naquela oportunidade, reafirmávamos a denúncia de que os negros ainda são marginalizados na sociedade, juntamente com minorias raciais, como a dos indígenas, ou como as crianças pobres, as mulheres, os analfabetos e os deficientes.

           Em nosso entendimento, se pretendemos de fato construir uma nação justa, democrática e solidária, devemos garantir a real inclusão de todos os brasileiros em nosso convívio social, com igualdade de direitos e integral exercício da cidadania.

           A luta prossegue, conforme dissemos, até que se vença o racismo como prática destinada a inferiorizar parcela considerável dos brasileiros, e dela explorar a fragilidade daí conseqüente.

           Por motivação racial, e esse é um dado indesmentível, agride-se a lei e remove-se para plano secundário o cidadão negro, nos meios de comunicação social, na vida escolar e no cotidiano das ruas. Há opressão no trabalho e abuso da atividade policial, configurando violência inaceitável à dignidade humana.

           A perpetuação desse quadro põe em cheque a tese da existência plena da democracia racial no País.

           Procópio Mineiro, em estudo publicado pelos Cadernos do Terceiro Mundo, constata que a “série de exclusões, educacional, cultural, política, econômica e profissional, definiria as desvantagens seculares do negro brasileiro”, reproduzindo-se até hoje e apresentando-se sem muitas perspectivas de mudanças à frente.

           Como se isso não bastasse, devemos reconhecer a existência de novos contingentes de explorados, substituindo os escravos negros, neste País tido como civilizado e o último, em todo o planeta, a abolir, de direito, o escravismo.

           O desvirtuamento das práticas democráticas, a ausência de espírito comunitário, o vezo de promover o aviltamento do trabalho, sobretudo no aspecto de sua justa remuneração, dão validade ainda à afirmativa de Joaquim Nabuco, segundo a qual “um país de escravos é um país sem povo”.

           A mulher brasileira, constituindo a maioria da população, está longe de alcançar pelo menos a metade das vagas do mercado de trabalho, onde a carteira profissional assinada é, em geral, uma ficção, recebendo salário médio mensal de tão-somente um terço do que é pago aos homens.

           Além dessa discriminação, a existência de trabalho servil ou semi-escravo é uma realidade há muito denunciada, entre outros, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. Como nos tem revelado a Imprensa, em qualquer parte do País encontram-se homens, mulheres e crianças obrigados a trabalhar pela manhã, à tarde e à noite, em jornadas ininterruptas, quase sempre desprovidos de equipamentos de segurança e à margem do descanso obrigatório.

           Segundo nos esclarece a Comissão Pastoral da Terra - CPT, e veremos adiante, os trabalhadores são levados pelos patrões ao endividamento, pela aquisição de mercadorias a preços extorsivos ou pela retribuição de alimentos, e mantidos sob a vigilância permanente de pistoleiros que os impede de parar o serviço ou de tentar a fuga.

           Como foram recrutados de lugares muito distantes e recebem pagamento muito aquém do prometido, nunca alcançam reduzir ou eliminar a dívida obrigatoriamente assumida ou empreender a fuga, como vimos, com alguma possibilidade de êxito.

           Dessa forma, no campo, milhares de trabalhadores são compelidos a aceitar um regime de trabalho escravo, recebendo castigos físicos a cada eventual manifestação de protesto.

           Até mesmo na Capital da República, crianças foram encontradas trabalhando na produção de tijolos, operando fornos de secagem sem qualquer proteção do frágil corpo, submetendo-se a temperaturas próximas dos 40 graus centígrados.

           Infelizmente, a nossa região concentra cerca de 50% dos trabalhadores do País, com idades entre 5 e 14 anos, segundo recente reportagem do jornal O Globo.

           Meninos de não mais de 11 anos são encarregados do transporte de sal, a troco de 40 centavos a tonelada/dia. Ou, igualmente longe das escolas e de seus lares, passam o dia quebrando pedras, recebendo 60 centavos de real cada lata-medida completada.

           Indicadores do Governo e do Unicef estimam em cem mil as crianças vivendo e trabalhando nas ruas das cidades brasileiras, sendo parte delas vítimas de exploração sexual.

           Meninas ingressam na prostituição com cerca de 12 anos e os meninos, a partir dos 10 anos, são levados pelos pais para trabalhar nos teares, no corte da cana, nas salinas e em outras atividades de alto risco para a saúde.

           Nas salinas, garotos ganham 40 centavos para carregar uma tonelada do produto, desconhecendo que esse trabalho acarreta, além de problemas dermatológicos, graves danos à visão, provenientes dos “raios ultravioleta do sol escaldante refletidos nas montanhas de sal”.

           Nos teares, encarregando-se da produção de redes, convivem com o barulho ensurdecedor e com o pó que se desprende do algodão cardado, que acarretam lesões de esforço repetitivo, seqüelas respiratórias e acidentes na operação das máquinas.

           O sempre lido Roberto Pompeu de Toledo noticiou, em recente edição de Veja, que, aqui tão próximo, “homens maltrapilhos, cobertos de fuligem”, trabalham em fornos de uma carvoaria, onde, três vezes por dia, “são contemplados com o prêmio de dois terços de um copo de cachaça”.

           São trabalhadores recrutados de cidades de Minas Gerais, há mais de mil quilômetros de distância, que, sob a promessa de pagamento de uma diária de 5 reais, estão submetidos a trabalho escravo.

           Na carvoaria flagrada em Jataí, Estado de Goiás, nem um só desses trabalhadores, na verdade, consegue alcançar a retribuição em espécie de seu esforço, porquanto, na contabilidade dos seus patrões, todos são devedores das despesas de transporte, da alimentação, das roupas, dos calçados e das calorias que consomem, em forma de aguardente.

           Em débito, para sempre, os que ousam reclamar ou ameaçam abandonar o serviço são impiedosamente surrados, “ora de cinta, ora de vara”.

           Sem alternativa, deixam-se ficar, obedecendo a uma jornada de trabalho de 16 horas diárias, dormindo em camas beliche de imundas barracas de lona, sem água e sem banheiros, e alimentando-se de uma ração diária e invariável de arroz, abóbora e toicinho.

           Nesse verdadeiro inferno, não há um dia sequer de descanso, servindo as doses homeopáticas de cachaça “para criar o vício, sem tirar o ânimo para o trabalho”.

           Daí concluir o notável ensaísta que, se “a escravidão hoje choca, há 100 anos era normal e legal no Brasil”, o que nos leva a acreditar “no progresso da humanidade”. Mas, ante “a enormidade dos fatos”, é preferível “desistir de conclusões”.

           Parece-nos inquestionável, Srs. Senadores, o acerto desse raciocínio. Num misto de estupefação e revolta, devemos reconhecer que esses problemas se impõem à reflexão de todos os brasileiros, e os convocam à participação imediata, integral e permanente no duro combate a todas as formas de discriminação, à odiosa exploração do homem pelo homem, que é a síntese mesmo das múltiplas faces da escravidão.

           Conclusivamente, não se há de duvidar que os relatados acontecimentos são a clara demonstração da continuidade das práticas escravagistas na sociedade brasileira.

           Lembra, a respeito, o Professor Walter Costa Porto, da Universidade de Brasília, que o referenciado Joaquim Nabuco, corretamente avaliado por Gilberto Freyre, foi “um desertor de sua casta, de sua classe, de sua raça e cujos privilégios combateu com vigor e desassombro”.

           Nabuco enfatizava, costumeiramente, que não basta acabar com a escravidão; é preciso, em definitivo, “destruir a obra da escravidão”.

           Era o que eu tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/05/1998 - Página 8214