Discurso no Senado Federal

HISTORICO DA ESTRUTURA ESCRAVOCRATA NO BRASIL, POR OCASIÃO DAS COMEMORAÇÕES DO 13 DE MAIO, DIA DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • HISTORICO DA ESTRUTURA ESCRAVOCRATA NO BRASIL, POR OCASIÃO DAS COMEMORAÇÕES DO 13 DE MAIO, DIA DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA.
Publicação
Publicação no DSF de 14/05/1998 - Página 8177
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, OPORTUNIDADE, COMENTARIO, HISTORIA, SITUAÇÃO, NEGRO, PAIS, MANUTENÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
  • DEFESA, IMPORTANCIA, COMPROMETIMENTO, CONGRESSO NACIONAL, RESGATE, CIDADANIA, NEGRO.

A SRª BENEDITA DA SILVA (Bloco/PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, em primeiro lugar, quero agradecer ao Senador Casildo Maldaner por ter permutado comigo, dando-me a oportunidade de falar, nesta tarde, também a respeito do 13 de Maio.

Liberto oficialmente da escravidão, há mais de cem anos, o negro brasileiro ainda continua em situação precária no País. Na verdade, a Abolição da Escravatura foi apenas um dos muitos atos oficiais da elite brasileira, que não mais necessitava do sistema escravista para impor o seu domínio sobre a maioria da população. O negro foi dispensado de um tipo de trabalho que entrou em desuso, mas a liberdade concedida não veio acompanhada de outras medidas necessárias para inseri-lo de fato nos novos tempos.

Analisar a situação da exclusão social e econômica dos afro-descendentes nos dias de hoje, em nosso País, exige um breve olhar sobre as contingências históricas que fermentaram os conflitos do presente e que não podem ser esquecidas em qualquer projeto de resgate da cidadania negra. Embora sem a pretensão de resumir a história da escravidão no Brasil, não se pode omitir um fenômeno de quatro séculos que nasceu, prosperou e entrou em declínio em função da estrutura econômica e social do regime colonial, cuja natureza contraditória forneceu as matrizes da situação do negro no País. A estrutura escravocrata da economia brasileira, não obstante a sua importância interna, começa a sofrer pressão de fora desde o século XVIII, pois não se compatibilizava mais com as novas idéias e concepções acerca do trabalho. A Revolução Industrial se expandia no mundo, desvinculada do escravismo, em oposição a ele em muitos aspectos, sobretudo no que se refere ao alargamento dos mercados consumidores e à concorrência de produtos obtidos sem o trabalho escravo.

O golpe mais profundo e o mais conseqüente viria em, 1808, do Reino Unido: o tráfico foi declarado ilegal para os ingleses. O comércio inglês, então senhor da metade do montante do comércio mundial, depois de se haver aproveitado largamente dos lucros do tráfico, sentia-se superior aos interesses do setor escravocrata, motivado pelo propósito de penetrar na África, vendendo manufaturados e comprando matérias-primas.

Portugal era, na época, o país mais profundamente envolvido no comércio de escravos. Seria, por conseqüência, um dos alvos, senão o principal, das medidas antitráfico. Mediante compensação econômica, a coroa portuguesa concordou em declarar ilegal o tráfico, na linha proposta pelos ingleses, permanecendo aberto o comércio entre a África e o Brasil, da Bahia para o sul. Portugal comprometia-se, além disso, a promover a gradual cessação do comércio de escravos em todos os seus domínios.

Com a separação do Brasil de Portugal, os estadistas ingleses entenderam que o tráfico se tornara, de fato, ilegal. Segundo o tratado firmado, a licitude se limitava às possessões portuguesas. Deixando o Brasil de pertencer à coroa portuguesa, a cláusula geral abrangeria o novo país soberano, o que admitiam as autoridades portuguesas, interessadas em frustrar a independência.

Finalmente, em 1825, o Brasil se comprometia a pôr fim ao tráfico. Dessa orientação, originou-se a lei de 7 de novembro de 1831, declarando, no art. 1º, que todos os escravos que entrassem no território ou portos do Brasil vindos do exterior seriam livres.

A abolição do tráfico, que se alheara da emancipação do escravo, suscita a discussão sobre os fundamentos do sistema. Os fazendeiros estavam persuadidos de que, a longo prazo, seria impossível manter o regime escravocrata, ferido pelas idéias dominantes no mundo.

Assim, por meio da Lei nº 3.353, de 13 de maio, a Lei Áurea, extinguiu-se, secamente, num simples artigo, o regime do trabalho escravo, sem indenização e sem qualquer compensação aos proprietários.

Embora não tenha desarticulado a economia, como era previsto, a abolição trouxe conseqüências na vida do País. Sob o aspecto político, acreditaram os monarquistas que a abolição, gerando descontentamentos, teria precipitado a República. O 13 de Maio provocou o 15 de Novembro.

A abolição gerou um quadro social que persistiu longamente no País. Libertou-se o escravo sem que se lhe dessem meios para sua emancipação econômica. À abolição não se seguiu o parcelamento da propriedade com entrega de terras aos escravos lavradores, nem se providenciaram escolas de artífices e de educação primária. Substituiu-se, apenas, o escravo pelo assalariado, com a permanência dos mesmos hábitos.

Como se vê, a abolição não foi para os negros o ato generoso que os livros didáticos mencionam. Os ex-escravos, libertos em 13 de maio de 1888, e a imensa massa que já era livre antes dessa data foram alijados do mercado de trabalho ou ficaram relegados a um segundo e terceiro planos. Sofrendo a concorrência de trabalhadores nacionais e estrangeiros, o ex-escravo é marginalizado pelo sistema econômico vigente, situação reforçada pelos estereótipos que o marcavam desde o tempo da escravidão. Os poucos que possuíam um ofício - alfaiates, sapateiros, ferreiros, marceneiros -, mantiveram suas ocupações. Os que deixavam as zonas rurais sofriam o impacto da adaptação à realidade urbana, passando a formar o exército de desempregados ou engrossando o contingente de pessoas em ocupações que exigiam pouca qualificação - carregadores e vendedores ambulantes. A mulher negra passou a atuar numa versão atualizada da mucama ou da mãe preta: empregada na prestação de serviços domésticos.

O deslocamento de ex-escravos para ocupações marginais ao sistema de produção agravou-se, ainda mais, diante de fluxo da imigração européia, que se acelera na década de 1880. A imigração européia foi, de fato, uma política de Estado formulada não como resposta a necessidades de natureza exclusivamente econômica, mas atendendo a interesses de um certo projeto de nação que tentava combinar progresso econômico com “branqueamento” da sociedade brasileira. É curioso notar o fato de que os europeus que imigravam para o Brasil vinham de zonas economicamente decadentes e traziam como única bagagem técnica a experiência do trabalho rural, ou seja, a mesma do ex-escravo negro.

O Censo de 1920 registrou, na capital de São Paulo, um total de 104.758 pessoas empregadas na indústria, das quais 50,5% eram estrangeiras. Os imigrantes formavam mais da metade do número de empregados nas indústrias metalúrgicas, de alimentação e construção civil, da mesma forma que nos setores de transportes e comércio.

Seja porque competiu em desvantagem com os imigrantes nas regiões industrialmente mais avançadas, seja porque ficou mais concentrada nas regiões economicamente menos dinâmicas, a verdade é que a população negra, nas décadas posteriores à abolição, incorporou-se de maneira tardia e subordinada ao mundo urbano-industrial em desenvolvimento.

Durante os anos 40, o setor industrial gerou 831.000 empregos, dos quais 247.000, ou 29,8%, foram ocupados por pretos e pardos. Levando-se em conta que a proporção de não-brancos economicamente ativos, durante esse período, permaneceu estável, em torno de 36% a 37%, conclui-se que, no conjunto do País, esse grupo teve desvantagem na ocupação dos novos postos de trabalho abertos na indústria.

A partir dos últimos anos da década de 1970, a pesquisa possibilitada pela análise dos dados originais do PNAD de 1976 e do próprio Censo de 1980 mudou os rumos dos estudos sobre raça no Brasil. O quadro que emerge depois de mais de quatro décadas de rápido crescimento econômico é de acentuadas desigualdades econômicas e sociais entre brasileiros brancos e não-brancos. A partir dessa constatação desabam, definitivamente, as imagens sobre relações raciais no País vinculadas à noção de “democracia racial”. Caem por terra, também, as teorias que postulam uma diluição das diferenciações raciais como efeito do desenvolvimento e da modernização.

Hoje há motivo para comemoração? Alterou-se, substancialmente, a situação dos afro-descendentes em nossa sociedade?

A população negra do Brasil corresponde a 44,3% do total da população nacional, segundo o PNAD. Os movimentos negros consideram - tendo por base a conceituação da UNESCO - que 70% da população brasileira é negra ou mestiça, com algum grau de ascendência africana. No entanto, nas universidades públicas não chega a 2,3% a percentagem dos negros; 81,4% dos empresários, administradores e profissionais de nível superior são brancos; os brancos ocupam, ainda, 75% do mercado profissional de nível médio e têm as melhores posições e salários na indústria, na agricultura e no setor de prestação de serviços. Em todas as categorias profissionais estudadas, o negro ocupa posição inferior ao branco; na categoria “ocupações de nível superior, empresários e administradores” é onde existem maiores desigualdades, com os pretos e pardos ganhando, respectivamente, 36,9% e 49,6% do rendimento médio dos brancos; nas ocupações manuais urbanas, a relação de anos médios de estudo entre brancos e negros é sempre menor que a relação encontrada entre rendimentos médios, o que significa a pior remuneração da força de trabalho negra, mesmo quando essa possui nível educacional igual ou superior ao da força de trabalho branca.

A maior parte do rendimento fica nas mãos dos brancos, independentemente das categorias ocupacionais em que estejam. Os brancos detêm 85,4% dos rendimentos dos trabalhadores não-manuais, 65,8% dos rendimentos dos trabalhadores manuais urbanos; e 57% dos rendimentos dos trabalhadores manuais rurais. A desproporção de rendimento tende a se acentuar nas ocupações que exigem maior qualificação, habilidade ou mesmo a propriedade de alguns instrumentos de trabalho para desempenho de atividades autônomas.

Concluindo, pode-se afirmar, sem receio de incorrer em injustiça, que, após 110 anos da abolição da escravidão, as desigualdades raciais continuam sendo um traço marcante da sociedade brasileira. No plano da realidade, o fator racial aparece como elemento diferencial na distribuição de oportunidades educacionais, econômicas, sociais e políticas. Mesmo considerando a concentração da população negra nas regiões mais pobres do País e a visível desvantagem educacional que atinge o povo negro, as estatísticas revelam uma discriminação específica que viola direitos básicos dos descendentes de africanos. No cotidiano, os meios de comunicação, o currículo escolar e a publicidade veiculam, sistematicamente, estereótipos que reproduzem o preconceito e legitimam as práticas discriminatórias.

Contra esse estado de coisas, Srªs. e Srs. Senadores, o Congresso Nacional tem sido tímido em iniciativas destinadas a resgatar a cidadania no negro brasileiro.

Somente a partir da Constituição de 1988 que, do ponto de vista institucional, a questão racial ganha um novo enfoque na sociedade brasileira. O Texto Constitucional promulgado traz uma série de dispositivos antidiscriminatórios, dentre os quais a criminalização do racismo e o direito à propriedade das terras das comunidades remanescentes dos quilombos. Mas é necessário um enorme esforço de caráter educacional, que envolve alterações curriculares e práticas pedagógicas, para o resgate da representação que o brasileiro negro faz de si mesmo.

O Congresso Nacional, entretanto, pode funcionar como a vanguarda de um movimento anti-racista organizado, com crescente capacidade de intervenção social, plural e politicamente capaz de alterar a realidade que cerca o povo negro. Para tanto, é fundamental o comprometimento com a transformação das condições do povo deste País. O resgate da cidadania dos afro-brasileiros não se fará sem o resgate da cidadania indígena, sem a distribuição justa da terra, sem a implantação de níveis aceitáveis de renda e de emprego. O resgate da cidadania dos afro-descendentes é parte do resgate da cidadania brasileira.

Vale lembrar aqui o oportuno e recente pronunciamento do Presidente Fernando Henrique Cardoso, já citado pelo Senador Abdias Nascimento, que foi matéria da revista Veja.

Com muita propriedade, o movimento negro brasileiro tem enfrentado, questionado as desigualdades raciais. Se é bem verdade que muitas conquistas já foram obtidas, também é verdade que ainda existe um longo caminho a percorrer e muito ainda a conquistar, alcançar, conseguir, obter.

Existem projetos em tramitação no Congresso Nacional, de minha autoria e de tantos outros, que gostaríamos de ver aprovados como ações afirmativas e como comprometimento no combate a todo tipo de discriminação que sofremos em nosso País.

Quero ainda dizer que o fato de pedirmos cotas - foi também ressaltado pelo Senador -, como fizemos para as mulheres, significa apenas oportunidade igual para o exercício de nossa capacidade intelectual, porque ela existe. A maioria dos brasileiros é pobre e não pode freqüentar universidades. Pesquisas revelam que os afro-descendentes não chegam ao Terceiro Grau porque não podem pagar as mensalidades e não por falta de capacidade. Pobre e negro não pode ser a equação da ignorância.

Por tudo isso, como diz a letra da música dos Titãs: “a gente quer inteiro, e não pela metade”. Queremos uma cidadania e um espaço conquistados por inteiro, e não pela metade. Reafirmo, neste 13 de maio, que esta é a cidadania que esperamos, uma cidadania sem limites.

Muito obrigada, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/05/1998 - Página 8177