Discurso no Senado Federal

A QUESTÃO DA SAUDE NO BRASIL E SUAS RELAÇÕES COM A NOVA ORDEM ECONOMICA MUNDIAL, A GLOBALIZAÇÃO E SUA VERSÃO TRANSNACIONAL DO TRABALHO.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SAUDE.:
  • A QUESTÃO DA SAUDE NO BRASIL E SUAS RELAÇÕES COM A NOVA ORDEM ECONOMICA MUNDIAL, A GLOBALIZAÇÃO E SUA VERSÃO TRANSNACIONAL DO TRABALHO.
Publicação
Publicação no DSF de 16/05/1998 - Página 8547
Assunto
Outros > SAUDE.
Indexação
  • CRITICA, GLOBALIZAÇÃO, ECONOMIA NACIONAL, CONCENTRAÇÃO DE RENDA, ANALISE, ALTERAÇÃO, SITUAÇÃO, TRABALHADOR, EFEITO, AUMENTO, DESEMPREGO, PRECARIEDADE, CONDIÇÕES DE TRABALHO.
  • ANALISE, AUMENTO, DOENÇA, TRABALHADOR, INFORMAÇÃO, SUPERIORIDADE, INCIDENCIA, MULHER.
  • CRITICA, INDUSTRIA, COMPUTADOR, FALTA, UTILIZAÇÃO, PESQUISA CIENTIFICA E TECNOLOGICA, BENEFICIO, SAUDE, TRABALHADOR.
  • CRITICA, PRECARIEDADE, SISTEMA UNICO DE SAUDE (SUS), SAUDE PUBLICA, BRASIL.

      A SRª. BENEDITA DA SILVA (Bloco/PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, o tema “globalização” já virou assunto sensacionalista nas rodas do poder e do saber no Brasil. Trivializa-se sua acepção mais verdadeira. Banalizam-se os efeitos sobre a formulação de políticas públicas no País, bem como escamoteiam-se suas implicações sobre a educação, o transporte e a saúde de um povo. No lugar, glamoriza-se sua aparência de valor moderno, de civilização hegemônica, de unanimidade ideológica. Não há contestação ou crítica suficientemente lúcida que ouse revelar, para além do pragmatismo na economia política, sua face ideológica, sua face inescrupulosamente oculta, a do antagonismo perverso entre concentração de renda de alguns e exclusão sociocultural de muitos outros.

      Para alguns teóricos, enquanto o termo “globalização” deveria ser mais associado ao caráter ideológico dessa nova etapa de desenvolvimento do capitalismo, “transnacionalismo” serviria mais adequadamente para explicar o aspecto mais pragmático e político do fenômeno. Nessa linha, globalização funcionaria como vetor de persuasão do discurso, ao passo que transnacionalismo atuaria no universo dinamicamente material da produção e das trocas. Diante desse breve esclarecimento, proponho trazer à baila assunto que há tempos merece um entendimento menos obscuro. Trata-se da questão da saúde no Brasil e suas relações com a nova ordem econômica mundial, a globalização e sua versão transnacional do trabalho.

      Como havia anteriormente mencionado, o transnacionalismo compreenderia o conjunto de ações econômico-financeiras dos agentes do novo capitalismo mundial, que estariam envolvidos na orquestração de um novo processo de produção, circulação e consumo de capital, mercadorias e trabalho. O neoliberalismo econômico constitui sua inspiração mais legítima e determina seus objetivos mais contundentes: minimização do Estado e supremacia da lógica de mercado. Além disso, nada faria sentido no transnacionalismo se não houvesse a participação fundamental do desenvolvimento tecnológico como alavanca do modo capitalista de produção. Se, de um lado, a alta tecnologia responde pela extraordinária transformação e agilidade do capital industrial e financeiro, de outro, coube à mesma tecnologia regular, acomodar e reprimir a expansão do valor trabalho.

      Por outro lado, a transnacionalização do mercado de trabalho significa que a vida dos trabalhadores ao redor do mundo está se tornando cada vez mais entrelaçada e injustamente desigual. Para se ter uma idéia da situação, a força de trabalho mundial hoje é de cerca de 2,5 bilhões, 15% dos quais na faixa dos altos salários dos países industrializados e 85% na dos baixos e médios salários dos países em desenvolvimento. Mesmo entre os trabalhadores, a disparidade de salários, rendas e condições de vida só se fez intensificar.

      Sem dúvida, estamos situados dentro de uma nova organização social do trabalho, cuja característica mais grave consiste na expulsão dos operários das fábricas e na mobilização de grandes fluxos transnacionais de mão de obra barata. Governo, mídia e mercado alardeiam, persistentemente, que as fronteiras do capital foram sumariamente riscadas do novo mapa geoeconômico do planeta, sem que se diga nada sobre novas formas de acumulação de riqueza e novas estratégias de perpetuação de miséria. No mesmo ritmo instantâneo em que se movem os investimentos financeiros, também se deslocam turbilhões de indivíduos em busca de alguma prosperidade em grandes metrópoles do hemisfério norte.

      Além do capital volátil, essa nova fase do capitalismo transnacional pressupõe e implica mudanças na esfera do trabalho. Talvez a mais profunda, a nova dinâmica da divisão internacional do trabalho impõe drástica substituição do trabalho humano pela racionalidade programada da automação. Ao trabalhador braçal, ou destituído de um especialização profissional, sobra-lhe o espaço do alcunhado “desemprego estrutural”. Enganam-se, no entanto, aqueles que, precipitadamente, julgam destino menos cruel aos segmentos mais tecnicamente preparados da população economicamente ativa dos países. Pois, mesmo ao trabalhador especializado, a sorte também não lhe sorri com muita generosidade no universo transnacional da produção industrial e comercial.

      Nessas circunstâncias, em virtude da acelerada invasão das máquinas computacionais nos ambientes de trabalho, homens e mulheres estão sujeitos a formas “cibernéticas” de patologia. Trata-se da proliferação de doenças relacionadas à execução de tarefas excessivamente rotineiras e repetitivas, mecanicamente alienantes, levando músculos e mentes ao estado agonizante da atrofia ou da hipertrofia. Dentre as dezenas de novas doenças, faço questão de destacar os casos de LER (lesão por esforço repetitivo) que, hoje, mais do que nunca, assolam os grandes centros metropolitanos do Brasil. Já classificada como epidemia, a LER se caracteriza pelo acometimento de nervos, sinóvias, fáscias, tendões, ligamentos, músculos, em conseqüência de distúrbios funcionais ou orgânicos resultantes de fadiga localizada. Tal enfermidade atinge com intensidade trabalhadores, direta ou indiretamente, dependentes de máquinas robotizadas ou semi-robotizadas para execução de seus serviços. 

      Podemos afirmar com segurança que os casos de LER continuarão a aparecer enquanto os conteúdos do trabalho não foram revistos de forma democrática e com a participação de todos os atores sociais. Tendo em conta as repercussões das LER no cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras, devemos compreender o novo adoecer como reflexo das mudanças na organização do trabalho, que instituiu novas características à relação capital-trabalho - como flexibilidade, polifuncionalidade, visão sistêmica do processo, qualificação e rotação de tarefas, associados a novas formas de gestão. Longe de uma consciência administrativa que contemple um equilíbrio justo entre trabalho e saúde, os programas de eficiência organizacional nas empresas têm obcecação por formas desumanamente competitivas e destruidoras de interação humana.

      Em princípio, poder-se-ia deduzir que o surgimento da LER e seu crescimento exponencial não incidiria necessariamente na questão de gênero e na divisão sexual do trabalho no mundo globalizado. Ledo engano. O caso da LER e sua recorrência entre as mulheres causam espécie. Segundo estudos conduzidos no Brasil e no exterior, as mulheres compõem o grupo mais afetado pela disseminação da LER, seja em números relativos, seja em números absolutos. Isso se justifica na medida em que o contingente de trabalhadoras no mercado de trabalho se expandiu consideravelmente nas últimas décadas. Mais do que isso, a grande maioria ocupa hoje as posições menos favorecidas da estrutura produtiva, o que significa, no caso do mercado da informática, as posições equivalentes a digitadora e funções afins.

      Na verdade, são posições que exigem uma carga de esforço físico e mental drasticamente desproporcional ao valor da recompensa monetária e profissional correspondente. Por causa dessa condição desfavorável no processo de produção, o sexo feminino tem sentido com mais crueldade o impacto violento, ainda que inquietantemente invisível, dos microcomputadores sobre o corpo e a mente humana. Sem a menor preocupação dos fabricantes com fatores relacionados à anatomia peculiar das mãos, da coluna e da cabeça, os micros e seus “teclados assassinos” se tornaram grandes vilões da saúde da trabalhadora nos escritórios e nas firmas do mundo inteiro.

      Mesmo com todo o recente avanço científico verificado nas pesquisas ergonômicas, nada - ou quase nada - tem sido revertido para a saúde da trabalhadora como requisito legalmente necessário para o desempenho das tarefas. Com a ergonomia relegada às margens da indiferença no processo de produção computacional, tanto a trabalhadora quanto o trabalhador padecem de um irresponsabilidade inadmissível por parte de seus empregadores e da sociedade que lhes nega apoio e voz de contestação. Condições mínimas de trabalho deixam de ser direito adquirido e passam a ser, lamentavelmente, prerrogativas de alguns, de acordo com critérios absolutamente discricionários, para não dizer “darwinistas”.

      No caso específico das mulheres, além dos efeitos perversos - e às vezes irreversíveis - da máquina sobre seu corpo, pesquisas demonstram que há uma acentuada busca de trabalhadoras por assistência médica no domínio da psicopatologia do trabalho. Em seus consultórios, médicos e psicólogos avaliam o impacto das relações de trabalho na construção da subjetividade feminina, bem como diagnosticam distúrbios de ordem emocional e mental, a partir das relações de prazer e sofrimento no exercício das atividades do trabalho e na percepção dos riscos envolvidos.

      Não restam dúvidas de que as mulheres ainda atravessam longos e dolorosos períodos de humilhação e de discriminação no exercício de suas profissões, que as conduzem, inexoravelmente, a reprimir seus impulsos legítimos por libertação e igualdade. Isso, necessariamente, desencadeia processos complexos de alteração emocional e mental na vida das milhares de trabalhadoras brasileiras. Acontece que nem sempre os diagnósticos são fáceis de se apontar. Pior ainda, a invisibilidade das doenças laborais do mundo contemporâneo não significa que elas não disponham de uma complexidade terapêutica de difícil compreensão.

      Em 1990, mais de 23 milhões de trabalhadoras passaram a constituir cerca de 40% do conjunto da força de trabalho brasileira. Projeta-se para o ano 2000 um percentual acima do 50%, o que se traduz na configuração de um quadro inédito e bastante interessante para a balança de poder entre homens e mulheres na história brasileira. Apesar disso, quando se observa, hoje, quão desigual ainda permanecem as condições de trabalho para homens e mulheres, a impressão que se tem é que não há nada o que comemorar.

      Por mais que a globalização venda a imagem de que a modernidade instaurou de vez o princípio da igualdade na oportunidade de trabalho entre os sexos, na prática, a realidade é bem diferente. A competição tem sido desleal e francamente a favor da hegemonia masculina, o que acaba por consumir doses enormes de energia, nervos e paciência das mulheres. Como se não bastasse, outra fonte de estresse para a saúde das mulheres é o abuso sexual no trabalho, além da preocupação com os afazeres domésticos e o cuidado com os filhos menores. Tudo a merecer o cuidado, a atenção e a responsabilidade de quem tem que manter a saúde em dia e em ordem.

      Mas, naturalmente, esses processos patológicos não se confinam às minorias de gênero. Pelo contrário, o capitalismo global insiste em estender as diferenças e as discrepâncias econômicas aos outros contextos da interação social, seja de raça, de etnia, de idade ou de classe. De qualquer modo, por força da persistente estratificação de gênero, social, étnica e racial, a dificuldade ou impossibilidade de realização dessa experiência subjetiva emancipadora do trabalho para as a mulheres, os negros, os índios e as camadas populares revela a marca persistente da divisão segregadora na sociedade contemporânea globalmente capitalista. Tal segregação, por sua vez, produz repercussão negativa no processo de identidade e de equilíbrio na sociedade e no indivíduo.

      No caso do Brasil, o panorama da saúde ainda se torna mais cruel se levarmos em conta o sucateamento a que se reduziu a estrutura do SUS. Além de não contar com uma legislação trabalhista e uma política econômica que lhe proporcione condições mínimas de vida, o cidadão brasileiro não dispõe de um sistema público de saúde que atenda à demanda por uma assistência médica disponível e competente. Como se não bastasse, o Governo atual pratica uma política suicida na área da saúde, cujo maior fiasco fica por conta da instituição da CPMF, que já disse a que veio: servir de caixa rápido para os desvios de gastos da Administração Federal. Nessas horas, os ideais globalizantes do FMI, do Banco Mundial e da Bolsa de Nova Iorque deixam de ditar um moralidade mínima em suas cartilhas de conduta nacional. 

      A globalização das idéias e dos costumes e a transnacionalização da economia têm forçado a restruturação dos meios de produção e, com isso, mais uma vez a classe trabalhadora tem sido penalizada com o desemprego e a precarização das condições de trabalho. Isso tem como conseqüência imediata os acidentes de trabalho e, em nível mediato, as doenças profissionais, cuja invisibilidade nas estatísticas oficiais de nosso País aumenta a cada dia, em função, principalmente, da informalidade e precariedade dos vínculos empregatícios. Mesmo assim, buscar a conquista da qualidade de vida numa era marcada pelo fenômeno da globalização, com profundas mudanças no mercado de trabalho e com o desemprego sendo realidade mundial, é o desafio posto para a sociedade atual e futura. Temos que juntos rearticular um ideário político que proponha, imediatamente, uma reformulação da sociedade para o bem comum. Em síntese, forjar nossa sociedade e os novos meios de produção que permitam o desenvolvimento das potencialidades das pessoas em suas comunidades se apresenta como o grande desafio para o século XXI que se anuncia. 

      Era o que eu tinha a dizer.

      Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/05/1998 - Página 8547