Discurso no Senado Federal

ANALISE DO CICLO DA SECA NORDESTINA E SUAS CONSEQUENCIAS PARA A POPULAÇÃO DAQUELA REGIÃO. ENFASE NA QUESTÃO ESTRATEGICA DA DISPONIBILIZAÇÃO DE RECURSOS HIDRICOS PARA O PAIS, EM ESPECIAL PARA O NORDESTE.

Autor
Roberto Freire (PPS - CIDADANIA/PE)
Nome completo: Roberto João Pereira Freire
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DESENVOLVIMENTO REGIONAL.:
  • ANALISE DO CICLO DA SECA NORDESTINA E SUAS CONSEQUENCIAS PARA A POPULAÇÃO DAQUELA REGIÃO. ENFASE NA QUESTÃO ESTRATEGICA DA DISPONIBILIZAÇÃO DE RECURSOS HIDRICOS PARA O PAIS, EM ESPECIAL PARA O NORDESTE.
Publicação
Publicação no DSF de 28/05/1998 - Página 9391
Assunto
Outros > DESENVOLVIMENTO REGIONAL.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, PROCESSO, SECA, REGIÃO NORDESTE, FALTA, INICIATIVA, GOVERNO, EMPENHO, SOLUÇÃO, PROBLEMA, MOTIVO, MANUTENÇÃO, CLASSE POLITICA, PODER, REGIÃO.
  • DEFESA, APLICAÇÃO, GOVERNO, RECURSOS, IMPLANTAÇÃO, REGIÃO NORDESTE, RECURSOS FINANCEIROS, OBRA PUBLICA, TRANSPOSIÇÃO, AGUA, RIO SÃO FRANCISCO, MELHORIA, APROVEITAMENTO, RECURSOS HIDRICOS, REGIÃO, FORMA, BUSCA, SOLUÇÃO, PROBLEMA, SECA, REGIÃO SEMI ARIDA.

      O SR. ROBERTO FREIRE (Bloco/PPS-PE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, em 1877, solenemente e com certo ar humanista, o Imperador Dom Pedro II, derramando lágrimas, garantiu que seu governo combateria a pesada seca que se abatia sobre o Nordeste, mesmo que fosse preciso vender a última jóia da coroa. Naquela época, sendo a mais rigorosa de toda a história conhecida do Brasil, a seca ceifou, segundo estimativas, a vida de 50 mil nordestinos, mas não mereceu nenhuma grande ação do poder público - aliás, produziu-se um pequeno açude e só ficou nisso.

      Poucos anos depois, a ousadia da competência técnica dos brasileiros se fez presente e elaboraram-se estudos de engenharia visando a transposição de água de grandes rios para beneficiar vários estados nordestinos. Entretanto, a coragem técnica não conseguiu ultrapassar a barreira da insensibilidade política. Da iniciativa ficou apenas a idéia, hoje fervilhando novamente nas pranchetas da República.

      De 1877 até os nossos dias, tal como Dom Pedro II, muitos outros governantes derramaram suas lágrimas ante o drama da seca, as quais, se não foram suficientes para levar água à região, serviram para umedecer os interesses de coronéis e grupos econômicos que sempre lucraram com o fenômeno. O Nordeste não precisa de mais lágrimas de nossos homens públicos; bastam as dos próprios nordestinos, essas vertidas anonimamente e sempre acompanhadas de muito sofrimento e dor. Clama, isto sim, por ação.

      É revoltante analisar o ciclo da seca e suas conseqüências. Ela, há mais de 100 anos, é conhecida, já mereceu debates intermináveis, estudos voltados para a sua solução foram realizados em grande quantidade, até a capacidade de ser prevista hoje é imensamente maior que em décadas anteriores. Portanto, não se apresenta com qualquer aspecto de surpresa a não ser pelo seu grau de intensidade. Se ela explode, e é transformada em espetáculo pela mídia, é por absoluta irresponsabilidade e inoperância do poder público, em todos os seus níveis, obviamente recaindo mais fortemente sobre o governo federal.

      O próprio sertanejo tem consciência de que a seca obedece a ciclos previsíveis. Em outubro do ano passado, só para ficarmos no drama que ora se desenrola, técnicos do INPE chamavam a atenção do governo FHC para o assunto. Mas o governo preferiu cuidar de coisas menores como a reeleição e, como não poderia ser diferente, sempre apoiado pelos beneficiários da aridez, muitos deles também áridos, mesquinhos e sórdidos.

      A seca nordestina, desde o Império, tornou-se um grande negócio. Ela garante o enriquecimento parasitário de elites da região e fortalece o seu poder político, pois são elas que lideram os rotineiros programas de distribuição de alimentos e de frentes de trabalho. Lembremos dos açudes e de alguns programas hídricos que acabaram por beneficiar mais diretamente os grandes proprietários de terra, quase todos eles políticos de prestígio e circundantes dos poderes estadual e nacional.

      Por várias ocasiões viemos a esta tribuna reclamar do governo políticas públicas para o Nordeste, acopladas a um programa sólido de desenvolvimento regional integrado. Tal aspecto, definido na Constituição, tem sido ignorado pelo conjunto das gestões que se sucedem no Palácio do Planalto, e com FHC não é diferente. Para os homens do poder parece que desenvolvimento constitui privilégio do Centro-Sul, cabendo aos nordestinos o papel coadjuvante de párias da nação. Ora, o Nordeste é o berço cultural do Brasil e não é problema para o seu futuro; pode ser solução.

      Como costumo afirmar, o Nordeste não aceita mais políticas compensatórias. Ele quer e lutará para estar à frente do desenvolvimento, pois reúne todos os elementos para assim se colocar: tem mercado, inteligência, criatividade e coragem para investir e trabalhar.

      Porém, quando o Nordeste reivindica o seu lugar no concerto da nação ele tem consciência que necessita enfrentar o seu drama hídrico, menos por escassez e falta de água , o que é real, e mais por problemas de planejamento e manejo. Disponibilizar recursos hídricos é uma questão estratégica para o Nordeste e, consequentemente, para o Brasil.

      Os números amparam a nossa análise. Recente levantamento efetuado pela Comunidade Solidária, por exemplo, aponta para a existência em todo o Brasil de uma população indigente de aproximadamente 6 milhões de pessoas. Em números absolutos ela se concentra em municípios no Centro-Sul, porém no Nordeste se apresenta de forma cruel. Enquanto os indigentes, nas cidades catalogadas do Centro-Sul, representam cerca de 25 por cento da população em média, nos Municípios do Nordeste a sua participação sobe a até 70 por cento.

      Por conta desses números nordestinos, instalada a seca os efeitos são devastadores e a fome na área rural e em algumas cidades passa a ser uma conseqüência imediata. O resultado de todo esse descalabro pode ser observado - e cito por ser emblemático - nos parâmetros da mortalidade infantil. Mesmo estando em queda, ela no Nordeste encontra-se em torno de 60 por cada 1000 crianças nascidas, contra 25 no Sudeste e 45 para o Brasil como um todo.

      Enfrentar o drama da seca, como todos sabemos, não pode ser obra da demagogia e nem terá solução a curto prazo. Para se implantar projetos definitivos de reestruturação de recursos hídricos no Nordeste serão necessários vários anos de investimentos contínuos e bom gerenciamento. Em outras palavras, necessita-se de um pacto que não sofra descontinuidade em razão da alteração do comando na política nacional. Só com essa determinação poderemos destruir os pilares da indústria da seca, abrindo uma nova era de prosperidade para os mais de 40 milhões de nordestinos.

      Mais que em qualquer outra região brasileira, os recursos hídricos devem ser tratados como um bem escasso. Pelos parâmetros da Organização Mundial de Saúde, que estima como ideal a relação de 2.000 metros cúbicos de água por habitante, no Nordeste só ficariam acima desta classificação os estados do Maranhão, Ceará, Piauí e Bahia. Abaixo, estariam Rio Grande do Norte (1781), Alagoas (1751), Sergipe (1743), Paraíba (1437) e Pernambuco (1320). Como se vê, a equalização dos recursos hídricos no Nordeste deve envolver todos os estados e não apenas alguns deles.

      A nosso ver, o principal projeto para consolidar uma eficiente política de recursos hídricos no Nordeste passa pela idéia da transposição de águas de grandes rios, entre eles o São Francisco. Com a iniciativa, a uma vazão de 70 metros cúbicos por segundo, segundo informações técnicas, podemos perenizar mais de 2100 quilômetros de rios de leito seco, possibilitando a criação de novos reservatórios e a adoção de outros procedimentos de estocagem de água, beneficiando diretamente cerca de 6 milhões de pessoas.

      E mais: a transposição, na forma como está sendo imaginada, seria suficiente para irrigar mais de 330 mil hectares, gerando só na agricultura aproximadamente 1,2 milhão de novos empregos. As obras, que se arrastariam pelo menos até 2004, demandariam outros 50 mil postos de trabalho.

      Conforme antecipou a Folha de S. Paulo, técnicos envolvidos na discussão estimam que a transposição das águas do São Francisco custaria no máximo 2 bilhões de dólares, uma quantia irrisória quando se leva em consideração que somente com Itaipu foram gastos 18 bilhões e que por causa da seca o governo desembolsa com programas emergenciais cerca de 1 bilhão de reais por ano. Dados indicam que de 75 a 97 o poder público federal, só com frentes de trabalho nos estados onde a Codevasf atua, investiu 10 bilhões de reais.

      É importante acentuar que com a captação de 70 metros cúbicos por segundo, apenas 3 por cento da vazão do São Francisco seriam deslocados, com impacto inexpressivo na geração de energia pelas hidrelétricas existentes, um argumento muito utilizado pelos opositores da idéia.

      A transposição de águas, se na época de Dom Pedro era quimera de engenheiros criativos, hoje é uma possibilidade à altura de qualquer nação com grau razoável de desenvolvimento. Foi por este expediente que a Califórnia se transformou em grande produtor americano e que Israel, retirando água do Lago de Tiberíades, assombrou o mundo com suas realizações. E lembremos de um fato: na Califórnia há uma precipitação de 220 milímetros de água/ano, contra 600 no Nordeste.

      Se defendemos a transposição, também exigimos que ela só se realize após profundos estudos técnicos e uma rigorosa análise do impacto ambiental. Afinal, temos inteligência, informações e aparato tecnológico para impedir que uma iniciativa de tal envergadura se transforme em desastre ecológico, comprometendo interesses de gerações vindouras. A transposição, no futuro também podendo acessar águas do Tocantins, deve ser o resultado de uma ação séria, politica e tecnicamente.

      Além da transposição, outras iniciativas devem ser colocadas em prática, de forma ampla, como os processos de dessalinização dos nossos inúmeros açudes para utilização na agricultura irrigada, no consumo animal e no abastecimento de água para as cidades, e de obtenção de água subterrânea, sobretudo onde os lençóis freáticos são abundantes.

      A par de tudo isso, torna-se necessária uma política rigorosa de gerenciamento das águas acumuladas, hoje voltadas para atender grandes pecuaristas da região, portanto subtraídas da maioria da população.

      Além da questão hídrica, convém ressaltar que o uso de tecnologias desenvolvidas pelo nosso instituto de pesquisa Embrapa se sobressai para a agropecuária no semi-árido, menosprezado pela falta de apoio e de políticas de extensão. Acresce ainda a discriminação que sempre houve nos financiamentos públicos para a agricultura e a pecuária da região e que em momentos como esse se tornam até criminosos: o exemplo gritante é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF -, quando destina mais de dois terços dos recursos previstos para as regiões Sul e Sudeste. Parece óbvio que isso é fruto da maior organização e poder de pressão dos produtores dessas regiões, mas também da visão tecnocrática e meramente mercadológica, predominante no governo federal, equivocada sempre e, nesse momento, repito, até criminosa.

      Aqueles que sempre se beneficiaram do sofrimento do povo nordestino certamente estão à espreita para tirar proveito de qualquer projeto que se queira duradouro para a região. Nesse sentido, o planejamento de recursos hídricos que propomos, e que inclui a transposição, deve incorporar preocupações também de ordem fundiária. Há que se proceder a uma profunda reestruturação fundiária, desapropriando com base no valor de declaração para fins de cobrança do ITR todas as áreas contíguas aos leitos dos rios sob intervenção e adjacências dos atuais e de futuros açudes e reservatórios. Se o governo não adotar tal procedimento, a especulação na região será avassaladora, resultando em dificuldades ainda maiores para a maioria da população.

      Por irresponsabilidade do poder público, mais uma vez acompanhamos o sofrimento dos nordestinos. Segundo dados publicados pela revista VEJA, ela atinge 1209 municípios e 18 milhões de pessoas, das quais 10 milhões na zona rural. Os números são ainda mais catastróficos: a seca assola uma área superior a três vezes o estado de São Paulo, destruiu até agora 57 por cento da safra, gerando prejuízos de quase 5 bilhões, equivalendo 5 por cento do PIB regional. Como 8 milhões de pessoas têm renda de no máximo meio salário mínimo (e muitos não têm renda nenhuma), já dá para analisar a dimensão da tragédia social da seca de 1998, cujos efeitos, na melhor das hipóteses, só seriam superados a partir de julho do próximo ano, isto se chover no período janeiro-fevereiro próximo.

      Conforme acentuou a própria revista, a fome nordestina não assume o caráter de uma Biafra. Entretanto, a fome campeia na região, tornando-se um escândalo para um país que fala em ocupar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU e que é detentor de tantos recursos naturais e tecnológicos.

      Nesse ponto, gostaríamos de analisar o fenômeno dos saques. Infelizmente, eles foram politizados pelo presidente da República e iniciativas desesperadoras, mesmo que também utilizadas equivocadamente por alguns movimentos de esquerda, estão sendo transformadas pelo governo como caso de polícia quando é eminentemente social. Não se resolve o drama da seca com saques, até porque em algumas situações podem descambar para o mais mesquinho banditismo, mas para uma grande maioria dos que passam fome é a única alternativa disponível. Aliás, alternativa a que recorrem há décadas e que nunca antes foi tratada como caso de polícia.

      Não desconhecemos algumas medidas adotadas pelo governo e que guardam relação com soluções emergenciais para a problemática da seca e, entre elas, está a ação da Comunidade Solidária. Aliás, instalado o drama da seca, seria inimaginável não se adotar medidas emergenciais ou paliativas. Mas como sempre, no fundamental, as iniciativas do governo não conseguiram sair do velho esquema tão do agrado dos coronéis nordestinos. Grande parte dos quase 3 bilhões que o governo gastou com obras de combate a seca certamente contribuiu para a continuidade do mando político das velhas oligarquias, quando não para engordar, e muito, as contas daqueles que sempre lucram com a miséria dos outros.

      Está na hora de parar de culpar a natureza pelo drama da seca no Nordeste. Vamos deixar em paz o El Niño, hoje tão satanizado, e agir mudando as estruturas da região como homens públicos que sonham com uma nação mais próspera. No lugar das lágrimas fingidas dos homens do poder, o Nordeste quer simplesmente manejar e usufruir da água que tem, da que cai, se deposita e corre sobre o seu solo. 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/05/1998 - Página 9391