Discurso no Senado Federal

A DISCRIMINAÇÃO RACIAL COMO FORMA DE ALIJAMENTO E EXCLUSÃO DOS CIDADÃOS AFRO-BRASILEIROS DO MERCADO DE TRABALHO.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL. POLITICA DE EMPREGO.:
  • A DISCRIMINAÇÃO RACIAL COMO FORMA DE ALIJAMENTO E EXCLUSÃO DOS CIDADÃOS AFRO-BRASILEIROS DO MERCADO DE TRABALHO.
Publicação
Publicação no DSF de 29/05/1998 - Página 9422
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL. POLITICA DE EMPREGO.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, ORIGEM, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, PROVOCAÇÃO, EXCLUSÃO, NEGRO, MERCADO DE TRABALHO, BRASIL, RESULTADO, AGRAVAÇÃO, PROBLEMA, SISTEMA FUNDIARIO, AUMENTO, NUMERO, FAVELA, VIOLENCIA, ZONA URBANA, ABANDONO, MENOR, CIDADE, PAIS.
  • ANALISE, DADOS, ESTATISTICA, INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA (IBGE), RELATORIO, ORGANISMO INTERNACIONAL, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA), COMPROVAÇÃO, EXISTENCIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, BRASIL, PROVOCAÇÃO, EXCLUSÃO, NEGRO, MERCADO DE TRABALHO.
  • COMENTARIO, DENUNCIA, ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT), DESCUMPRIMENTO, BRASIL, CONVENÇÃO INTERNACIONAL, REFERENCIA, DISCRIMINAÇÃO, EMPREGO, PROFISSÃO.
  • REGISTRO, EMPENHO, SINDICATO, LUTA, FAVORECIMENTO, EXTINÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, EMPREGO, MERCADO DE TRABALHO, BRASIL.
  • ANALISE, ARTIGO DE IMPRENSA, AUTORIA, VICENTE PAULO DA SILVA, PRESIDENTE, SINDICATO, PUBLICAÇÃO, JORNAL, FOLHA DE S.PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), REFERENCIA, UTILIZAÇÃO, MEIOS DE COMUNICAÇÃO, PALAVRA, OFENSA, NEGRO, CARACTERIZAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, BRASIL.
  • ANALISE, DADOS, ESTATISTICA, DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATISTICA E ESTUDOS SOCIO ECONOMICOS (DIEESE), COMPROVAÇÃO, DISPARIDADE, INDICE, ANALFABETISMO, ESCOLARIDADE, NEGRO, COMPARAÇÃO, POPULAÇÃO, BRASIL.
  • COMENTARIO, CRIAÇÃO, SINDICATO, RESULTADO, UNIÃO, CENTRAL UNICA DOS TRABALHADORES (CUT), CENTRAL GERAL DOS TRABALHADORES (CGT), ORGANISMO INTERNACIONAL, CONTINENTE, AMERICA LATINA, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), OBJETIVO, PROMOÇÃO, IGUALDADE, DIREITOS, OPORTUNIDADE, RELAÇÃO DE EMPREGO, BRASIL.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

Um dos legados mais terríveis da abolição da escravatura no Brasil - que, como não cansamos de repetir, fez-se por motivos econômicos pouco ou nada relacionados a motivações humanitárias - foi confinar a população afro-brasileira aos estratos inferiores de nossa força de trabalho, quando não excluí-la, pura e simplesmente. Transformados de uma hora para outra, como num passe de mágica, em trabalhadores supostamente livres, os antigos escravos, passada a breve euforia da libertação, acordaram para a dura realidade de um mercado de trabalho em que o único patrimônio de que dispunham, a força de seus braços, estava agora longe de ser valioso. Sem uma reforma agrária, rejeitada pelos abolicionistas de conveniência, não tinham como trabalhar a terra em proveito de sua subsistência. Mais do que isso, foram obrigados a enfrentar a desigual competição com trabalhadores brancos, cuja vinda para o Brasil era estimulada e, por vezes, subsidiada tanto pelos países de origem, às voltas com problemas de superpopulação, quanto pelo próprio Brasil, empenhado, segundo afirmam candidamente documentos da época, em “branquear” sua população. É no mínimo curioso ver, hoje em dia, descendentes desses imigrantes e, portanto, herdeiros dos benefícios a eles concedidos opondo-se tenazmente à adoção de políticas públicas para compensar os afro-brasileiros pelos efeitos acumulados da discriminação de que são vítimas. Para não falarmos no confisco do produto do seu trabalho secular.

Longe de constituir uma exceção ou de ter sido superado com a modernização da economia brasileira, como previam alguns estudiosos, o processo de alijamento e exclusão sofrido pelos afro-brasileiros no mercado de trabalho tem tido, ao longo do tempo, a função perversa de constituir um exército de reserva de mão-de-obra barata, à disposição de um empresariado ávido de lucros e totalmente divorciado de sua responsabilidade social. Encontra-se aí a principal fonte dos graves problemas que atualmente afligem a sociedade brasileira, como a questão fundiária, as favelas, os meninos de rua e a violência urbana. Todos eles relacionados, de uma forma ou de outra, ao racismo e à discriminação racial, embora comumente desprezados nas doutas análises produzidas por uma academia que costuma disfarçar seu viés eurocêntrico sob a capa do “universalismo”. Trata-se, na verdade, de uma cortina de fumaça que impede os brasileiros de enxergar a raiz de suas vicissitudes, ao mesmo tempo em que se satisfazem acreditando ser este o paraíso das relações raciais.

Como, porém, é impossível enganar todo o mundo ao mesmo tempo e o tempo todo, o problema racial brasileiro começa a ser identificado e denunciado no plano internacional, principalmente por obra das organizações negras, cada vez mais alertas e atuantes, revelando ao mundo a verdadeira face de um País erigido sob um modelo extraordinariamente eficaz de supremacia branca. Uma após outra, entidades como as Nações Unidas, a Organização dos Estados Americanos, a America’s Watch e outras têm divulgado relatórios sombrios a respeito da situação dos afro-descendentes no Brasil. Utilizando estatísticas de instituições oficiais brasileiras, como o IBGE, juntamente com o resultado da observação de técnicos por elas enviados, essas organizações estão pondo a nu as desigualdades raciais no Brasil, por longo tempo considerado um exemplo para o mundo, graças, em grande parte, à rede de desinformação montada pelo Governo brasileiro, com o apoio de seus aliados na arena intelectual.

Essas estatísticas mostram, por exemplo, com a fria e inconstestável evidência dos números, a gritante discriminação de que são vítimas os afro-brasileiros no mercado de trabalho, onde estes ganham, em média, 50% dos salários pagos aos brancos. Essa diferença se mantém, com poucas variações, mesmo quando negros e brancos apresentam o que os especialistas chamam de “igual investimento em capital humano”, ou seja, o mesmo nível de escolaridade e experiência profissional. Da mesma forma, é maior o percentual de afro-brasileiros no setor informal da economia, em que não existe a proteção oferecida pela legislação trabalhista. Tal situação se repete em todas as regiões brasileiras, embora as desigualdades sejam mais gritantes no Nordeste - exatamente a região que apresenta maior percentual de afro-descendentes. Não por acaso, a cidade de Salvador - considerada uma espécie de África no Brasil - é, dentre as capitais brasileiras, aquela em que é maior a diferença de salários entre negros e brancos. Mas em toda a parte são as mulheres negras as mais prejudicadas pela discriminação, acumulando os prejuízos de raça e de gênero.

Do ponto de vista do mercado de trabalho, é relevante ressaltar o fato de o Brasil ter sido recentemente denunciado pela OIT - Organização Internacional do Trabalho, entidade vinculada às Nações Unidas, por estar descumprindo a famosa Convenção 111, que trata da discriminação em matéria de emprego e profissão. A denúncia se deve ao fato de que, apesar de ser signatário dessa convenção desde 1964, o Brasil jamais se deu ao luxo de implementar as ações previstas em alguns de seus artigos. Em especial, o artigo 2º, que reza o seguinte:

“Qualquer membro para o qual a presente convenção se encontre em vigor compromete-se a formular e aplicar uma política nacional que tenha por fim promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria.”

Já o art. 3º obriga os Estados-Membros a:

“a) Esforçar-se por obter a colaboração das organizações de empregadores e trabalhadores e de outros organismos apropriados, com o fim de favorecer a aceitação e aplicação desta política;

b) promulgar leis e encorajar os programas de educação próprios a assegurar esta aceitação e esta aplicação;

c) revogar todas as disposições ou práticas administrativas que sejam incompatíveis com a referida política;

d) seguir a referida política no que diz respeito a empregos dependentes do controle direto de uma autoridade nacional;

e) assegurar a aplicação da referida política nas atividades dos serviços de orientação profissional, formação profissional e colocação de dependentes do controle de uma autoridade nacional;

f) indicar, nos seus relatórios anuais sobre a aplicação da convenção, as medidas tomadas em conformidade com esta política e os resultados obtidos”.

Apesar de não ter cumprido nenhuma das obrigações assumidas ao assinar a Convenção 111, o Brasil não deixou de enviar anualmente à Organização Internacional do Trabalho relatórios evasivos ou sem base na realidade. Um exemplo é aquele a cuja apresentação tive oportunidade de assistir ano passado, na 52ª Assembléia-Geral da ONU, referente à Convenção Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, no qual o Brasil se mostrava como um verdadeiro campeão da igualdade racial, e as tímidas e hesitantes iniciativas do Governo nessa área eram descritas em tom grandiloqüente, como se fossem capazes de resolver todos os problemas.

Tem havido, contudo, algumas novidades alvissareiras nesse terreno. Uma delas é o engajamento do setor sindical na luta contra a discriminação no emprego. Por muito tempo, os líderes sindicais, inclusive os de origem africana, mantiveram-se apegados à tese da luta de classes como panacéia universal para os males sociais, inclusive a questão racial. Segundo essa visão distorcida, originária de um marxismo frívolo, mobilizar os negros na defesa de seus direitos significava “dividir a classe operária”. O remédio era esperar a revolução socialista, que, junto com todos os problemas, também esse resolveria. Felizmente, a análise da experiência histórica dos países multirraciais que adotaram esse regime, bem como o contato com o sindicalismo praticado em outras regiões do mundo, sobretudo nos Estados Unidos, acabou renovando o pensamento da liderança trabalhadora, abrindo espaço a novas perspectivas na área racial. Exemplo disso é o artigo “União contra o racismo”, de autoria do sindicalista afro-brasileiro Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, publicado dia 13 de maio último no Jornal Folha de S. Paulo, cuja íntegra reproduzo a seguir.

      “União contra o Racismo.

      Tem-nos indignado e incomodado profundamente a utilização cada vez maior de expressões que sempre relacionam os negros a situações e momentos ruins. Não podemos aceitar textos e discursos (até na imprensa) com termos como “lista negra”, “a coisa está preta”, “denegrir”, e outros.

      Essas expressões, na verdade, dão a entender subjetivamente que “negro” é algo negativo, inferior e mau. Não basta dizer que não há intenção ou preconceito. Quem bate esquece. Quem apanha nunca esquece.”

O poder dessas frases e expressões é tão grande quanto o do termo “judiar”, infeliz referência aos judeus, definidos como povo que “maltrata” seus semelhantes. Além das piadas racistas e/ou machistas. É uma postura nada adequada para quem quer construir uma sociedade de iguais. Nós, negros, temos de combater intransigentemente qualquer tipo de preconceito.

No que se refere ao aspecto profissional, os negros também têm sofrido com preconceito e perseguições.

Dados de pesquisa Dieese/Seade, de 1994, indicam que, na região metropolitana de São Paulo, 62,7% das mulheres negras não terminam o curso primário, e o analfabetismo entre elas é o dobro do registrado entre as mulheres brancas. A renda média das negras é de 1,9 salário mínimo e a dos homens negros, de 2,4 mínimos; a renda das mulheres brancas é de 3,9 mínimos e a dos homens brancos, de 4,2 mínimos.

Em quase quatro décadas, desde que a discriminação racial passou a ser infração penal, ninguém nunca cumpriu pena de prisão por crime de racismo.

Outros dados nos indignam. Apenas 1% da população negra consegue chegar aos cursos superiores. A taxa de analfabetismo dos negros, comparada à dos brancos, é o dobro: 40% contra 20%, respectivamente.

Agora mesmo, em Belo Horizonte, está sendo julgado processo movido por Vicente Batista de Souza, professor do Centro Automotivo do Senai. Vicente, 36 anos, pai de quatro filhos, foi perseguido, vigiado e caluniado várias vezes por ser negro. Aconteceram outras demonstrações de racismo.

Não suportando a pressão, Vicente deu a volta por cima e entrou na Justiça contra os que o caluniavam. O Senai instaurou sindicância e as denúncias de Vicente ficaram comprovadas, mas ele não foi reintegrado ao emprego. O processo continua correndo, inclusive no Tribunal Superior do Trabalho.

Obtivemos algumas conquistas graças à luta corajosa de mulheres e homens negros brasileiros. Comemoramos, em 1998, vinte anos do Movimento Negro Unificado. Várias organizações lutam contra a discriminação racial, como o Conselho Nacional de Entidades Negras e os Agentes de Pastoral Negros, entre outras entidades.

Nessas circunstâncias, surgiu o Inspir (Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial), criado por três centrais sindicais brasileiras (CGT, CUT e Força Sindical) e centrais da América Latina e dos Estados Unidos da América. O Inspir visa promover a igualdade de direitos e oportunidades nas relações de trabalho.

Mais do que nunca, nós, negros e negras, precisamos de unidade. São muitos os que nos combatem. Esses ataques partem de todas as classes, embasados sempre num preconceito retrógrado, absurdo e criminoso. Em nome dele, milhares de irmãs e irmãos negros foram mortos barbaramente. Em nome desse racismo maldito, somos relegados a segundo plano na sociedade.

Por isso, nossa luta deve ser solidária, tolerante e aberta a todos os que combatem a discriminação e o racismo. Invariavelmente, encontramos companheiros brancos e negros nessa mesma batalha. Nós não queremos construir uma sociedade de negros contra brancos, ou vice-versa, mas sim de todos.

Assistimos, com muita alegria, à Igreja Católica se manifestar pedindo perdão aos judeus. Não seria uma boa oportunidade para que ela fizesse o mesmo em relação ao povo negro?

Neste 13 de maio, que consideramos dia nacional de luta contra o racismo, façamos uma séria reflexão sobre a luta dos negros e a esperança de construirmos uma sociedade na qual a alegria e o respeito não deixem espaço para nenhum tipo de discriminação.”

Axé, Vicentinho!

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/05/1998 - Página 9422