Discurso no Senado Federal

POSSE DE S.EXA. NA ACADEMIA DE LETRAS DO NOROESTE DE MINAS, EM PARACATU, NA CADEIRA BERNARDO ELIS.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ATUAÇÃO PARLAMENTAR.:
  • POSSE DE S.EXA. NA ACADEMIA DE LETRAS DO NOROESTE DE MINAS, EM PARACATU, NA CADEIRA BERNARDO ELIS.
Publicação
Publicação no DSF de 30/05/1998 - Página 9552
Assunto
Outros > ATUAÇÃO PARLAMENTAR.
Indexação
  • PRONUNCIAMENTO, DISCURSO, POSSE, ORADOR, ACADEMIA DE LETRAS, REGIÃO NOROESTE, ESTADO DE MINAS GERAIS (MG), MUNICIPIO, PARACATU (MG).

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Exmº Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, inicio pedindo desculpas àqueles que me trouxeram para este plenário para cumprir as palavras de campanha - nunca promessas, porque nunca prometi nada -, que eram as que sempre proferi ao longo de minha vida, na defesa intransigente do povo brasileiro, vítima das agruras do sofrimento, da exclusão, da exploração.

Neste momento em que o Presidente da República reconhece que se encontra num inferno zodiacal, com menos de 30% na última pesquisa de opinião, peço desculpas para fazer este ato e nele introduzir a calma do pronunciamento que fiz, há poucos dias, ao tomar posse na cadeira Bernardo Élis, da Academia de Letras do Noroeste de Minas, em Paracatu.

Naquela ocasião, prometi aos meus companheiros que faria esta anotação e, agora, então, estou cumprindo a promessa.

Quando a lembrança amiga e carinhosa de ilustres colegas descobriu meu modesto nome para fazer incidir sobre ele a luz focal da escolha que o alçou à altura privilegiada em que se reúne este sodalício, senti-me pequeno, desamparado e só, diante da dimensão da homenagem e do brilho ofuscante da cerimônia que hoje toma corpo.

Sou um ser dual, cindido por ambigüidades, por dúvidas e pelas incertezas que compõem as bases de meus frágeis e humanos alicerces. Desafiados pelas circunstâncias, agindo e reagindo diante do mundo de que somos parte, pulsionados pelo inconformismo e pela angústia que a crise da sociedade capitalista fazem introjetar na consciência crítica, aprendi que aprender é conscientizar-se e que o desenvolvimento de nossa consciência social é o acréscimo de esperanças angustiantes, que o prazer do aprendizado se mescla com a dureza de uma realidade social triste e desesperada que se incorpora e constrói a consciência do mundo e da vida.

As dualidades, as dúvidas e ambivalências movem minha inquietude, meu ser inconformado e irrequieto diante da incompletude e das contradições de nossa sociedade.

Paracatu me liga à minha história de vida, é parte de minha ontogênese e, portanto, a cidade, Paracatu, atualiza e cristaliza as bases passadas de meu vir a ser, de minha constante transformação. Paracatu é o elo que me prende ao passado, que docemente me amarra à tradição. Sinto-me como se fosse um diminuto Prometeu acorrentado, castigado por ter roubado o fogo dos céus, para que, com ele, o trabalho dos homens fundisse os instrumentos potencializadores da força de trabalho, de transformação do mundo e de construção da independência e da libertação do homem. Se, por um lado, me prosterno, venero e beijo as cadeias que me prendem ao passado, à tradição avoenga e paralisante, por outro lado reconheço que é o excomungado monte caucasiano que trago preso às minhas costas que me fornece o ponto de apoio que me permite ampliar as forças de luta, o impulso vital que conduz na direção do inconformismo e da rebeldia, cuja expressão mais quente é a rebelião que se incendeia diante das correntes que nos prendem ao imobilismo, ao conservantismo reacionário, à indiferença diante do drama e da dor que se aprofundam na sociedade de nosso tempo. A rebeldia que é a manifestação da inquietação que move o homem no processo de construção da história se agiganta em imperativo categórico quando a vida social se sente ameaçada pela violência de que a voracidade espoliativa se vale para manter o domínio das coisas, do capital, do dinheiro sobre as pessoas, sobre a vida social ameaçada. Saber entender as forças da tradição criticamente, tirar da história de Paracatu as lições da inevitabilidade da mudança renovadora, de que só é eterna a lei do movimento segundo a qual tudo muda, é saber posicionar-se diante da positividade das transformações que exigem e impõem a negação, a superação do conteúdo negativo que foi se acumulando como dejeto indesejável ao longo de uma era e que não pode sobreviver nunca numa sociedade realmente democrática, socialmente justa e respeitadora da vida, da cultura e das interações do homem com a natureza de que é parte.

As crises econômicas, políticas e sociais vão rasgando os andrajos de velhas instituições que sobrevivem como elos enferrujados de cadeias, de velhos troncos e pelourinhos, de instrumentos jurídicos e religiosos de tortura e de opressão postos a serviço da exploração, da evisceração dos dominados pelos dominadores. Eric Fromm, em seu livro Medo à Liberdade mostra que as relações sadomasoquistas não se processam apenas entre indivíduos, mas entre classes sociais, quando uma espezinha a outra, explora, retira-lhe a essência, eviscera e despreza a classe dominada.

São essas forças do passado que dominam o presente que devem ser superadas e que as crises sociais desnudam. O capital egoísta, acumulado e concentrado a ponto de os trezentos e cinqüenta e oito homens mais ricos do mundo terem se apossado de riquezas equivalentes às apropriadas de dois bilhões e meio de seres humanos, quase a metade da humanidade, acaba por esmagar a sociedade humana, por tornar impossível a continuidade do genocídio, a irrigação do capital apropriado, em grande parte refugiado na especulação perdulária, obrigando a que “tudo que é sólido se desmanche no ar”. Ninguém quis abrir mão de um palmo de terra para fazer a reforma distributiva das terras, mas a crise impôs sua violenta e inútil distribuirão fundiária ao desvalorizar a terra e os resultados da produção agropecuária, uma desvalorização de cerca de 70%. A deusa grega da justiça distributiva é a mesma deusa da destruição. Façamos, pois, a justiça social antes que a crise e a destruição a façam.

Escolhi Bernardo Élis Fleury de Campos Curado para patrono da cadeira que agora ocupo na Academia de Letras do Noroeste de Minas por ter com sua obra e sua vida grandes e profundas afinidades. Não seria difícil encontrar na história cultural de Paracatu figuras admiráveis capazes de engrandecer o assento que hoje ocupo. De início, é preciso repetir o óbvio: a produção cultural é muito mais rica e ampla do que a sua manifestação literária. Os gestos através dos quais o homem manifesta sua inquietude rompem a cada momento os clichês culturais que tentam organizar os padrões de expressão do homem como ser produtor de cultura. O mundo moderno, sedento de encontrar emprego para as energias desempregadas e desativadas pelo capitalismo e por sua lógica metálica e desumana, transforma cada gesto, cada expressão da vida humana em uma profissão. A dança, o canto, a música, a ginástica, as línguas estrangeiras, a massagem, a natação, a fala e suas imperfeições, a decoração, a respiração, a alimentação, etc. se transformam em objeto de trabalho de profissionais preparados por especialistas mais treinados. Será que o Dr. Joaquim Brochado, meu tio avô, por ter sido uma figura como que retirada da fantasia, um personagem que a Literatura procura reinventar, não teria escrito com seu sonho, com seu desvelo para com os clientes, com seu sorriso balsâmico, com seus passos dados por essas estradas de chão, pelos caminhos impérvios das gerais entrecruzados de perigos tantos, uma obra de arte que o habilitaria a ocupar por exemplo, o meu lugar, com maiores méritos do que os que aqui me conduziram? Quantos poetas perderam em verbalizações maravilhosas, em noites de alegria e inspirações, suas criações, seus versos, suas músicas? Quantos debates levaram para a desmemória que acompanha a produção cultural espontânea, pensamentos, assertivas e formulações que mereceriam eternizar-se? Que romance épico daria a vida de meu bisavô e de seu pai, Antônio e Alexandre Loreiro Gomes, que, à frente de trezentos homens, saíram de Paracatu, em 1843, para fortalecer as tropas de Duque de Caxias, que estavam sendo derrotadas em Santa Luzia, e com ele seguiram para o Rio de Janeiro, onde o pai do meu bisavô, Alexandre Loreiro Gomes, morreu vítima da febre bubônica.

Meu irmão Álvaro Campos, primogênito, valeu-se da precedência nesta Academia para batizar a cadeira que ocupa. Assim, fiquei impossibilitado de homenagear Carlos Campos, que foi meu Mestre maior, meu pai, meu inspirador. Paracatu foi o berço de muitos vultos, como Afonso Arinos de Mello Franco, o velho autor de O Buriti Perdido; de Maria da Conceição Adjuto Botelho, a nossa prima Dondona, de sua filha Branca, poeta de rara sensibilidade, e tantos outros.

Não posso negar que me sinto orgulhoso e envaidecido por ser parte de uma saga, que, partindo do outro lado do Atlântico, de Portugal, dos Açores, da Espanha, fez de sua bússola o cheiro do ouro, alimentou-se com sua auri sacra fammes, mas que transformou essa parte do mundo, objetificou seu trabalho, sua inquietação nos produtos que compõem a cultura e a história das Minas Gerais, inventou expressões, formas de vida, modos de organização e de estruturação da sociedade.

Se um lado de mim se orgulha das raízes do passado, o outro lado de minha dualidade despreza os privilégios e os valores que são ligados à tradição, à herança, naquilo que elas possam significar a fruição preguiçosa e inoperante de bens, de riquezas, de status que não tenham sido obtidos com o trabalho. Nascer não pode ser mérito algum. Pelo simples e natural fato de ter nascido, ninguém poderia ter assegurado o pódio da riqueza, do poder, da fama. A herança desiguala as oportunidades, emascula a concorrência, desmoraliza o mercado que pretende estimular. Quem nasce, na verdade, é nascido, na voz passiva que o inglês explicita: em inglês, nascer é be born, ser parido, ser o objeto de uma ação, situa-se na voz passiva.

Bernardo Élis é o produto intelectual e humano da mesma geografia social, das mesmas relações econômicas e de padrões culturais semelhantes, compostas pelos ingredientes históricos que ambientam a psicologia e que, por isso, compõem os personagens que encenam os dramas que habitam a literatura de Minas Gerais e de Goiás. Bernardo Élis é o parteiro de gente, de nossa terra, que renasce de sua pena encantada; Élis é o escultor que eterniza na matéria dos acontecimentos históricos o acontecer que seriam efêmeros, passageiros e fugazes se não fossem trabalhados no mármore da grandeza literária pelo buril de sua sensibilidade. Bernardo Élis eleva os fatos particulares, os episódios ocorridos no Arraial do Duro, a universalidade das relações humanas, das relações políticas de dominação, das relações jurídicas de justificação e consagração de revoltantes injustiças, que são ocorrências distendidas até a violência da revolução, que escancara o sadomasoquismo presente nas relações entre as classes sociais em luta.

Em seu conto A Enxada, Bernardo Élis como que registra o nascimento do capital, ao flagrar o processo de transformação do mais simples instrumento de trabalho - uma enxada - em violento e invencível instrumento de opressão social, de exclusão do trabalhador, de sofrimento e de morte do pobre, do honesto Piano.

O drama do trabalhador para conquistar a posse da enxada é, no particular, a luta universal dos trabalhadores dominados pelo capital excludente e rapace.

Dado como pagamento de uma dívida de seu antigo patrão ao delegado desalmado, Piano recebeu deste a tarefa de plantar, com prazo curto e fatal, algumas sacas de arroz. Com prazo fatal...

Submisso, fiel aos senhores-patrões, Piano não tinha uma enxada para trabalhar. O delegado, desconfiado de que o negro fosse fujão, não quis confiar-lhe o instrumento de trabalho, a forma simples e embrionária do capital - a enxada.

Piano, sem dinheiro e sem comida, embrenhou-se por este mundão velho sem porteira à procura de uma enxada emprestada. ”Não precisava de ser daquelas de duas libras e meia”, podia ser alguma encostada, aposentada, sem serventia para quem não tivesse com tanta necessidade dela, como era o caso de Piano. Para o lavrador negro, a enxada não era um capital, algo que servisse para conseguir uma boa colheita para o patrão-delegado.

Era mais, muito mais do que isto: era, mais do que um instrumento de trabalho, uma arma capaz de permitir-lhe salvar a honra, cumprir o compromisso assumido com o delegado desconfiado e feroz.

Sipriano procurou pra tudo quanto era banda, caçou com os amigos, bateu na porta da Igreja, onde o padre o enviou para o sacristão, que não deu a menor atenção ao pobre e desesperado Piano. Faminto, maltrapilho, preocupava-se com a mulher, que arrastava as duas pernas esquecidas e atrofiadas, e com seu filho surdo, mudo e abestado. “Eu não tenho, mas meu cunhado, que mora ali, na dobra da estrada, tem um bocado de enxadas. É como certo que ele te arranja uma véia emprestada”. Quando Sipriano se aproximava da dita casa salvadora, onde finalmente arranjaria a enxada, escutou o tropel de dois cavalos e se encostou de lado para dar passagem aos cavaleiros. Eles refrearam os animais, saltaram em cima dele, machucaram o infeliz, ataram-lhe as mãos e o levaram arrastado para a cadeia; os dois soldados vieram, por mando do seu patrão - o delegado - deter o “fujão” e castigá-lo exemplarmente.

A fome e o desespero cresciam com o galope do tempo em direção ao prazo fatal.

Na noite da véspera de findar o prazo, Piano, nome que sobrou do roubo de suas outras letras, que lhe deram no batismo - letras em demasia para um negro pobre, honesto e respeitador da palavra dada -, o velho Sipriano assusta sua mulher, rastejante e doente. Pega dois sacos de sementes de arroz e sai para o campo. Sem enxada, sem tudo, sem nada, o trabalhador usa suas mãos como se fossem uma enxada. Fura com elas as covas onde sua alucinação lança uns grãos de arroz. À medida que fura o chão, este esfola, fere, sangra e devora a enxada viva, as mãos corroídas e rotas.

O sangue coagulado marca pelo chão o preço do empenho da palavra dada, a honra de um homem sério, honesto e trabalhador. Piano, por certo, não serviria para Presidente da República, não por tudo que não sabia, mas pelas qualidades que o diferenciavam de um mentiroso, de um enganador, de um sociólogo do cinismo necessário e imprescindível para exercer os desmandos do governo.

Os dois soldados chegaram ao seu rancho, assustando sua mulher desvalida das pernas e seu filho abestado. Informados, tomaram o rumo do campo, onde lutava a alucinação de Piano, que via em seus tocos de mãos destruídas a reluzente enxada de duas libras e meia. A alucinação de Piano enxergava o arroz já crescido e verde, e breve poderia entregar o cereal para o seu patrão-delegado, quem sabe, pagar a tal dívida, em cujo nome ele foi passado das garras do antigo para as do novo patrão.

Piano nunca foi fujão, nem matreiro. “Não sei adonde que Piano aprendeu tanto preceito”, pensava dona Alice, sua ex-patroa, de acordo com a frase que abre o conto.

Piano não sabia que naquele momento ele era o Brasil, repetia a história geral da civilização brasileira. Quando o antigo dono, Portugal, pretendeu alforriar a colônia, o Brasil-Sipriano teve de pagar 5 milhões de libras para a Inglaterra. Como os pais e avós de Piano, também o Brasil trabalha, trabalha e paga as dívidas que crescem e se agigantam como fantasmas insaciáveis, vampiros que chupam delicada, normal e insentidamente o sangue de Piano, digo, do Brasil.

Ali, naquela roça goiana, vizinha em tudo da geografia social e da história de Paracatu, a dívida, isto é, o capital, não na forma de enxada, mas na forma de dinheiro, dinheiro emprestado, mostrava que o particular, o pobre Piano é apenas o portador individual de uma história geral, universal, dramática e invencível.

Como ocorreu no Egito, sob Said Pacha e como se repete no Brasil e no mundo desde sempre dominados pelos banqueiros e agiotas; como se deu no México, sob o Imperador Massiminiano; tal como na Argentina, em 1890, e se repete no Brasil e no mundo, desde sempre dominados pelos banqueiros e agiotas, os homens da lei, os soldados que vieram trazer sua ordem e sua justiça raivosa disparam oficiosamente seus fuzis. O estampido ecoa pelos campos gerais e seus finalmente já não são ouvidos pelo justo e correto Sipriano, justiçado pelas leis e pelos costumes.

Bernardo Élis não precisaria ter escrito nada mais. Somente A Enxada seria o suficiente para elevá-lo à Academia Brasileira de Letras, que ele deixou há pouco tempo, ao adentrar a eternidade verdadeira e silenciosa.

Mas ele escreveu, desenhou, esculpiu com a pena outros personagens, outras tramas, onde o drama das relações sociais perversas seguem o enredo que se desenvolve magicamente conduzido por sua pena certeira, firme e sensível, pena rebelde e inconformada, “sem perder a ternura”.

A palavra e a ação, o verbo e o trabalho produziram o homem, este ser inquieto, em perpétua transformação. Jesus Cristo, Maomé, Buda, Confúcio se utilizaram do poder do verbo para incendiar o mundo, erigindo a esperança numa chama revolucionadora.

Prometeu, que Hegel considera ter sido um ser humano, histórico, real, forneceu aos homens o fogo roubado dos céus para potencializar o trabalho social. Através do trabalho, os homens se redimiram da condenação que Zeus lançara sobre nossa espécie, revolucionando a terra e superando suas imperfeições. O trabalho e o verbo se associaram, habitaram entre nós e nos transformam continuamente, impulsionam o nosso vir a ser, que é a nossa essência, essencialmente inquieta e mutante.

Quando o verbo se deteriora em mentira, quando a mídia retira dos indivíduos o poder da fala e o monopoliza nos meios de comunicação, o homem se transforma num espectador mudo, passivo, sentado e impotente.

Quando os instrumentos de trabalho, a enxada, desesperadamente e alucinadamente desejada pelos Siprianos, se transformam em capital, instrumento de exploração, de danação e de sujeição do homem, e o verbo, a palavra lhe é roubada, a essência humana, o trabalho e o verbo se voltam contra a criatura, o ser humano, autoproduzido por aqueles ingredientes essenciais.

Os tiros que os agentes do governo, do leviatã insaciável, da violência, da permanência e da submissão despejaram contra Piano atingiram já um cadáver, um não-ser, sem enxada e sem palavra, sem verbo e sem trabalho.

Na vida exemplar de Piano se manifestam os arquétipos que moveram Prometeu, o acorrentado no monte de Cáucaso, Cristo, o profeta do verbo, crucificado no Monte das Oliveiras.

As forças tanáticas, letais, que se opõem à realização do homem, à sua entificação como ser livre, ao livre uso do verbo e ao emprego dos instrumentos e produtos de seu trabalho se eriçam nas indústrias bélicas, nos fornos crematórios que destroem o esforço humano, parte de suas forças produtivas, vitais, eróticas. O objetivo envergonhado de uma sociedade que acendeu o estopim do lucro, a fim de transformar as forças eróticas da transformação do homem em seu oposto, em potências destrutivas e pulsões tanáticas, é garantir o imobilismo, a permanência de relações sociais, de formas de poder, de instrumentos de dominação a fim de anular a inquietude humana, o inconformismo erotizante, impondo a força reacionária da tradição pela tradição, da tradição como broquel de privilégios odiosos e arcaicos.

Infelizmente, quando o novo, o moderno emerge, o neo, o globalizante é apenas a expressão de novas formas do velho poder oligárquico, de desemprego que afasta o trabalhador de sua enxada, de novas formas de desrespeito. O neo-saque transforma o verbo em mentira oficial, repetida pela mídia repetitiva, arauto do engodo e da mediocridade empenachada.

Quando o peruano Vargas Llosa se apropriou do episódio histórico de Canudos, que Euclides da Cunha, o jornalista revolucionador, correspondente no front da guerra, eternizara em seus Sertões, senti que algo tinha sido roubado ao Brasil. A Guerra do Fim do Mundo deveria e poderia ter sido escrita por Bernardo Élis, lamentei ao ler o livro de Llosa. Élis, o autor de O Tronco, seria o autor certo e superior da trama de Canudos.

Conheci Bernardo Élis quando ele ainda não era membro da Academia Brasileira de Letras. Foi Semeão, filho do imortal goiano, quem me apresentou ao pai, homem desempenado, de olhos claros e feições tranqüilas. Ofereceu-me ele, na ocasião, vários exemplares de sua obra - um deles com uma dedicatória anteriormente feita à sua mãe, preciosidade que guardo com carinho.

Há poucos meses, Bernardo Élis seguiu viagem, deixou vaga sua cadeira na Academia e um oco enorme no coração de seus leitores, amigos e admiradores.

Élis não teria sido um paracatuense ao lado de lá do rio São Marcos se não tivesse lavrado o registro de seu nascimento nos livros que falam nossa linguagem, que riem nossos risos e que padecem nossas agruras. Ele expressou as mesmas relações sociais, econômicas e culturais de que são portadores os seres que habitam as obras de Guimarães Rosa, de Mário Palmério e outros. Somos os personagens ativos e transformadores deste panorama, que não assistimos ao renascer de nossas vidas individuais por meio do parto espiritual que eles, os literatos, padeceram e que os engrandeceu; nós somos todos Siprianos, coronel Elpídio, jagunços, soldados, cantadores e menestréis, os autores do real, os co-autores do renascimento de nossas histórias que aquelas obras partejam, pintam, esculpem e retratam com as cores das sensibilidades de nossos literatos e artistas maiores, mais sensíveis.

Bernardo Élis publicou seu primeiro livro de contos, Ermos e Gerais, em 1944, dois anos antes de ter vindo à luz Sagarana, de Guimarães Rosa. Mas toda sua capacidade criativa só se manifestou em O Tronco - romance, epopéia e registro de um acontecimento que, a partir de conflitos, ambições, relações políticas, chicanas jurídicas e desmandos de coronéis e policiais, emblematicamente erige em objeto sociológico, psicológico e político não esquematizado, não ressecado e dissecado pela frieza dos métodos das ciências sociais, mas emocionalmente transposto para o papel com o calor, a vida, a grandeza dos fatos vivenciados. Assim como a enxada foi o símbolo emblemático do capital, que Bernardo Élis soube tão maravilhosamente expressar em seu conto A Enxada, O Tronco é o resultado de uma pesquisa feita sobre um acontecimento ocorrido no norte de Goiás, que começou em torno de um inventário.

O Arraial do Duro, no antigo norte goiano, foi o palco onde se passaram os acontecimentos acontecidos. Tudo começou quando o Coronel Pedro de Melo olhou, com os olhos gordos da ambição, o rol dos bens a serem partilhados. Tramou deixar de fora do espólio uma fazenda, que ele, em conluio com gente do cartório, legalizaria em seu nome. Vicente Lemes, em que o Coronel confiava para coadjuvar seus despropósitos, se opôs ao trambique. O juiz de direito, prevendo as dimensões políticas do caso, vendo que as coisas iriam esquentar, recordando as conseqüências arrasadoras de episódios semelhantes ocorridos na região, fugiu pela tangente de uma remoção amedrontada.

O novo juiz, depois de meses de estrada, chega ao fim do mundo, a sede do município, ao Duro. Pensava usar a elegância, a força e a disciplina para sair-se airosamente e, sanado o feito e silenciada a população, garantir uma promoção para a Capital.

Mas o causo cresceu como se fosse uma jibóia que engolira um bezerro, alargou-se, desembestou e enturbilhonou-se como um rio subitamente engrossado pelo aguaceiro vindo de suas cabeceiras.

A tropa de soldados ajagunçados que acompanhou o juiz Carvalho alimentava a sede de poder que cresceu como um monstro desajuizado.

Ao lado do inventário e da partilha violentados pelo poder do Coronel, corria um processo que acabou envolvendo o velho Pedro Melo, ex-jagunço desbarrancado do Piauí e encalhado no Duro. Ele mandara matar um serventuário de justiça que corajosamente se opusera à sua voracidade atrabiliária.

O juiz Carvalho, ambicioso e carreirista, tramou uma esperta solução capaz de promovê-lo até mesmo a Desembargador: procurou o coronel bandido em seu reduto e propôs a ele um acordo. Ele e os outros acusados se entregariam à justiça, mas todos seriam impronunciados, recaindo toda responsabilidade pelo crime nas costas magras e desprotegidas de um pobre coitado que fugira.

O Coronel resolve se apresentar, mas o juiz rói as cordas, emite ordem de prisão contra ele e seu filho advogado e coronelinho.

Se a enxada foi genial e emblematicamente escolhida como símbolo do capital, das relações sociais que fazem de um instrumento de trabalho um capital devido às relações sociais que o animam e o determinam, agora, em O Tronco, o centro do busílis, é a herança capitalista, a luta pela apropriação do espólio, a luta renhida entre os abutres que esperaram décadas para pôr a mão na propriedade do ascendente, do de cujus. Os rancores, as invejas, os conflitos fraternos, os complexos de Caim e de Electra escondidos pela convivência familiar e pela censura, se revelam com a violência que os leva para a rua, para a ágora, para o palco judiciário, e, no caso, para a luta armada.

Alexis de Tocqueville, o notável observador das instituições norte-americanas, verificou que a herança capitalista, que garante, em tese, a divisão democrática da partilha dos bens do espólio, é muito superior, socialmente mais justa e mais eficiente economicamente do que a herança feudal, em que apenas o primogênito herda. A sociedade feudal assegurava a reprodução dos feudos, sua força, seu poder e sua reprodução econômica por meio do direito de primogenitura que impedia que a divisão das terras enfraquecesse a organização social e política baseada nos feudos. Tocqueville não percebeu que, ao invés da luta contra o novo senhor feudal, o veneno e as guerras para depor o herdeiro, a herança capitalista iria criar milhares de chicanas, de tramóias, de tranquibérnias que iriam retardar o acesso dos herdeiros ao seus quinhões, fazer voltar, no dizer de Marx, filho contra pai e irmãos contra irmãos. Velhos, envelhecidos enquanto esperavam a morte dos pais para realizar o banquete totêmico da partilha, sem tesão para o trabalho, a herança capitalista torna o sistema anacrônico, ineficiente e dissolvente das relações familiares. Transforma o respeito em mentira e a fraternidade em desamor.

A ordem de prisão contra o grande coronel do Duro resultou em seu assassinato depois de já entregue à justiça. O crime foi praticado por alguns soldados jagunços que, como abutres famintos, saquearam o cadáver do Coronel Pedro de Melo, roubaram oito contos de réis do bolso do defunto.

O filho do Coronel arrebanhou jagunços das quatro bandas, das redondezas e até do Piauí. Em pagamento de seus serviços, a cidade seria franqueada; o direito, a civilização, o respeito ao próximo, tão raros e incipientes na vida diária do Duro, entraram em quarentena. A jagunçada poderia matar, estuprar, saquear os restos mortais da cidade agonizante como pagamento de seus crimes.

O arrogante e corajoso juiz Carvalho foi o primeiro a fugir com medo de que sua justiça raivosa pudesse voltar-se contra ele, o justiceiro. Soldados ajagunçados, mal pagos pelo governo invisível e atrabiliário, antevendo o desastre, debandaram. Vicente foi o último a fugir: opôs-se até o fim à injustiça e às tranquibérnias.

O tronco, instrumento de castigar escravos, foi usado para algemar as pernas de alguns reféns, entre eles de Hugo, o filho caçula do Coronel Pedro. Mesmo presos, foram finalmente assassinados.

Os jagunços e o próprio doutor Artur, o coronelinho, se aproximavam com receio, com calma e medo, sem aquilatar a miséria, a fome e o pavor que reinavam na cidade quase deserta.

Vicente Lemes finalmente foge. Com os jagunços em seu encalço, ele e seus amigos, companheiros de fuga, defrontam um rio espraiado, que se tornara violento como um inventário, engolidor de coisas, pessoas, devorador de tudo. Um redemoinho gigantesco tudo devorava, engoliu até a ponte, sumia com tudo para vomitar os frangalhos cem metros depois. O barco entra no giro da morte, e o canoeiro eriça os músculos, retempera a vontade, reinventa a coragem. Finalmente o barco volta ao jugo apenas do barqueiro, extenuado e triunfante.

Agora, em Pirenópolis se assestam as câmeras que passarão para a arte cinematográfica o que a sensibilidade de Bernardo Élis salvou da voragem do tempo para eternizar no romance, para incrustar em O Tronco.

Sei que, ao nomear a cadeira que ora ocupo com o nome do encantado escritor goiano, estou batizando este assento com um nome dos sertões, dos mais dignos, dos mais paracatuenses, dos mais universais.

      Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/05/1998 - Página 9552