Discurso no Senado Federal

REFLEXÕES FILOSOFICAS SOBRE TEMAS COMO VERDADE, PRECONCEITOS, IDEOLOGIAS, PRIVILEGIOS. CRITICAS AO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, COMENTANDO A IMPORTANCIA DE CHEFES DE ESTADO SE COMPROMETEREM COM A VERDADE.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.:
  • REFLEXÕES FILOSOFICAS SOBRE TEMAS COMO VERDADE, PRECONCEITOS, IDEOLOGIAS, PRIVILEGIOS. CRITICAS AO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, COMENTANDO A IMPORTANCIA DE CHEFES DE ESTADO SE COMPROMETEREM COM A VERDADE.
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DSF de 04/06/1998 - Página 9800
Assunto
Outros > GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.
Indexação
  • ANALISE, FILOSOFIA, ASSUNTO, VERDADE, POLITICA, IDEOLOGIA, PODER, UTILIZAÇÃO, VIOLENCIA, ESTADO, RELACIONAMENTO, SITUAÇÃO, BRASIL, HISTORIA, CAPITALISMO.
  • COMENTARIO, DECLARAÇÃO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, OCULTAÇÃO, VERDADE, PREJUIZO, LEGITIMIDADE, GOVERNO.

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, falarei hoje sobre a derrota carismática de um candidato neo-weberiano.

O homem é um animal político, disse Aristóteles; o homem é um “bípede implume”, ironizou Diógenes; é um animal que ri, disse Jean Paul Sartre, ou teria sido Henri Bergson? Muitos cépticos acreditam que a verdade é inalcançável, que a qüididade do real escapará sempre às indagações dos filósofos.

Para Platão, a verdade é uma caçada e sua analogia seria mais rica se ele tivesse acrescentado que, no processo de apreensão do objeto e de seu transporte para a cabeça, tanto a “caça” quanto o caçador se transformam. O sujeito é transformado em caçador porque e enquanto caça, e esta, sem a ação do caçador, é apenas um animal livre, não uma caça ameaçada.

Como filho de caçador, caçador é, aprendi com meu pai que o pensamento filosófico é um pensamento político e que o pensamento humano não tem por objetivo determinar a verdade, mas resguardar a vida. A “verdade” é uma regra da vida social que o grupo humano ou que o segmento hegemônico considera indispensável para garantir a reprodução da organização social, de seus interesses, de sua estrutura, de seus privilégios. Num dado momento, a sociedade considerou indiscutíveis as regras impregnadas do tabu, dotadas do “todo o poder das idéias”. Hoje, os economistas, os politicólogos, os juristas erigem em leis ditas científicas as regras que referendam e dão poder aos interesses dominantes que são os interesses da classe dominante.

Nietzsche não chegou a considerar a busca da verdade como uma doença que é produzida pela fraqueza de certas culturas e de seus grupos dominantes. Quem é fraco procura se respaldar na muleta da “verdade” e erigir em lei os seus interesses. “Não pergunto se uma proposição é verdadeira”, afirma Nietzsche, “mas se ela é útil, se preserva a espécie”.

O homem é o único animal que mente, penso eu. A mudança radical que aguarda a humanidade extirpará certas formas de mentira da sociedade humana, as mentiras políticas, desde suas modalidades mais grosseiras às falsas promessas de desenvolvimento para todos, as promessas de justiça distributiva, às prioridades para o social, sempre postergadas em proveito dos favores aos capitalistas da produção e dos bancos, aos setores bélicos, espaciais, dissipadores. Às mentiras grosseiras se somam os refinamentos ideológicos que, em nome da Ciência e da objetividade, os ideólogos formulam por meio de uma verdadeira advocacia dos interesses da classe social dominante em detrimento das demais. Nesse sentido, a mentira se instala no poder político das sociedades divididas em classes sociais produtoras de percepções diversas, resultado de óticas polarizadas.

Francis Bacon, em seu Novum Organum, propõe que se abandone a busca introspectiva das idéias puras e a crença em que a capacidade de entendimento decorre de uma iluminação divina, para pesquisar indutivamente as leis que presidem os fenômenos da natureza e da sociedade. O pensamento humano seria desviado por algumas formas de preconceito, de vícios herdados da tradição, da linguagem, da má formação individual e das crenças, pensa Bacon.

Karl Mannheim, em sua Ideologia e Utopia, afirma que “o conceito de ideologia surgiu do conflito político, a saber, uma classe social pode estar tão impregnada pelos interesses e privilégios decorrentes de dada situação, que se torna incapaz de perceber as demais fontes possíveis de sentido”.

Se fossem percebidos os significados inerentes a outros pontos de vista, eles abalariam as crenças que justificam e fortalecem o sistema de Poder, a força e os privilégios “decorrentes de dada situação”. A ideologia é uma construção distorcida do pensamento reacionário. Para Mannheim, o pensamento produzido pela classe dominada é utópico no sentido de que, “se posto em prática, mudaria profundamente a estrutura, as instituições e os privilégios da sociedade”. Assim, a classe dos senhores de escravos produz uma prática à qual corresponde um pensamento que se objetiva em leis, em instituições e num sistema de crenças que justificam o uso da força necessária para garantir a reprodução e a permanência da sociedade tensionada por antagonismos profundos.

Na sociedade escravagista, o axioma fundamental da dominação, da preservação da hegemonia de classe sobre a outra é a mentira que transforma os escravos em coisas (res), não-sujeitos de direito que podem ser explorados. Os neoliberais no século XIX passaram a dizer que a atividade industrial capitalista, altamente dinâmica, incrementadora da produtividade do trabalho, possuía “rendimentos decrescentes”! Portanto, concluem os neoliberais que, como cada trabalhador empregado produz menos do que o anteriormente contratado, só é possível empregar mais se os trabalhadores consentirem em reduzir seus salários. Assim, “salário zero ou negativo assegura o pleno emprego continuamente”, conclui Pigou. Foi o desejo da classe capitalista de explorar mais os trabalhadores que fez com que se transformasse o absurdo da existência de rendimentos decrescentes na era capitalista do incremento de produtividade, de aumento da eficiência, em “lei psicológica, técnica e econômica”. Agora, com a globalização, a nova mentira afirma que é preciso reduzir o “custo Brasil”, o custo Argentina, o custo Alemanha etc. Para que as mercadorias produzidas pelos trabalhadores alemães possam competir com as de Bangladesh ou da China os salários médios na Alemanha deverão ser mais de vinte vezes menores do que os atuais... Para realizar esses “tremendos ajustes”, é necessário que o governo use da força, do despotismo, para impor as reduções de salários e de vencimentos, desarticule os sindicatos e outras organizações da sociedade, corrompa as estatísticas e os índices. Assim, ao lado da ideologia e da mentira, o autoritarismo, o uso da força aumenta necessariamente quando a força da “VERDADE” esmorece.

           Max Weber cita Trotski, com quem concorda: “Todo Estado se funda na força”. (Ensaios de Sociologia, Ed. Guanabara, 5ª ed., p. 98)

“O Estado”, escreve Max Weber, “é considerado como única fonte do ‘direito’ de usar a violência” (op et locus cit.). Por isso, a violência contra os sedentos, os famintos, os desempregados emana da fonte que detém o monopólio de seu uso. Quando a contra-violência é usada por sindicatos, pelo MST e por organizações não-governamentais, os violentos da ordem se eriçam e se sentem espoliados do “direito de usar a violência” de que fala Max Weber. Fernando Henrique Cardoso, neo-weberiano, escreveu em seu livro Autoritarismo e Acumulação que é no processo de acumulação de capital que se encontram as explicações do autoritarismo. Como a crise do capitalismo exige, no âmbito ideológico, maior taxa de extração de capital e redirecionamento da mais-valia para o capital financeiro, o Estado é obrigado a incrementar o autoritarismo. O uso de meias-verdades e mentiras completas torna-se necessário se se quer obscurecer o despotismo, apresentá-lo como uma “democracia” socialdemocrata.

Desaforado o suficiente para plantar minha bitola estreita entre as largas bitolas que trouxe para este pronunciamento, considero que a verdade, o direito, a justiça, a moeda, o Estado, as crenças, as produções culturais etc. são produtos históricos e culturais, e que, por isso, se modificam de acordo com as transformações ocorridas na totalidade de que são parte. Na sociedade medieval, teocêntrica, uma proposição era considerada como verdadeira na medida em que estivesse de acordo com a Bíblia ou com a exegese oficial do Livro Sagrado. Quando Galileu afirmou que era o Sol, e não a Terra, que se encontrava no centro do sistema, sua proposição contrariou o Texto Sagrado, que dizia que Deus fizera o Sol parar, a fim de que Josué pudesse vencer a batalha.

O Capitalismo, a laicização da sociedade, as reformas religiosas, a globalização permitiram que Descartes passasse a considerar que a verdade estaria assegurada se a proposição se traduzisse em termos mecânicos, algébricos, aritméticos. Afirmou que o homem era uma “máquina divina” composta de músculos, nervos e mente. Que a racionalidade das proposições e o bom funcionamento da “máquina” seria comprovado pela repetição de seu movimento, assim como os “cientistas sociais” abandonaram o velho critério bíblico pelo método que inspira e que dá fundamento à sociedade mecanizada. Ao invés de considerar a busca da verdade como uma caçada, como um processo que se desenvolve sem limites, sem reprodução, sem equilíbrio, os mecanicistas modernos constróem uma ciência social que considera que são racionais e verdadeiras as proposições e “leis” da mecânica racional abstrata que garantem a eterna reprodução do movimento da máquina, do relógio social. Segundo Descartes, a certeza de que o relógio, o homem ou a sociedade estão corretos é dada pelo restabelecimento do movimento quando ele é alterado e suas alterações são comunicadas a um centro - a mente - que fornece respostas capazes de corrigir a anomalia. A verdade, a certeza da racionalidade, é fornecida pela reprodução sustentada, pela permanência e conservação do funcionamento da máquina. O critério da verdade capitalista é pragmático: as proposições são verdadeiras se elas se mostram úteis para preservar o movimento do sistema, da sociedade tal como se encontra estruturada.

As leis e proposições do nosso modo de produção são desviados da verdade em direção à utilidade do capital. Por enquanto, nossas mãos produzem mercadorias e não-mercadorias, seres fetichistas, escravizantes, e nossas cabeças produzem ideologias, mentiras úteis ao sistema e à sua preservação.

Quando e se uma sociedade se fundar em relação sociais que permitam que o critério da verdade socialmente produzido seja o real concreto, então as proposições serão verdadeiras se elas forem reais. Nem a verdade teocêntrica nem a verdade utilitarista e mecânica poderão prevalecer. O que é verdadeiro não depende da cabeça dos filósofos e de suas elocubrações, mas da prática que constrói a História e a muda. À medida em que os fenômenos e a sociedade mudam, as “leis” de funcionamento que eram adequadas e úteis a um estágio de desenvolvimento se mostram inúteis e absurdas no momento seguinte. É o que ocorre agora com o keynesianismo, com a hipertrofia estatal e a inflação, até há pouco tempo dinamizadoras e, por isto, “verdadeiras.”

Jean Paul Sartre trata da mentira no Capítulo 2 de seu livro O Ser o e Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Ao distinguir a mentira da má-fé, afirma Sartre, em sua linguagem um tanto abstrusa, que a “essência da mentira, de fato, implica em que o mentiroso esteja completamente a par da verdade que esconde” e “comumente o mentiroso é mais ou menos vítima de sua mentira, ficando meio persuadido por ela”. Não pode haver dúvida de que, ao se declarar mentiroso, FHC se prejudicou com sua própria mentira.

“A mentira é conduta de má-fé”, prossegue Sartre, “porque mentira é conduta normal” do que Heidegger chama de mit-sein (ser com), pressupõe minha existência, a existência do outro, minha existência para o outro e a existência do outro para mim” (op. Cit., pp. 93 e 94).

Ao expor a questão da verdade em Freud, Sartre afirma que o mestre da Escola de Viena “substitui a dualidade do enganador e do enganado, condição essencial à mentira, pela dualidade do Id e do Eu, e introduz em minha subjetividade profunda a estrutura intersubjetiva do mit-sein (ser com)”. “Devemos continuar fingindo (pretending) para todos e para nós mesmos que as proposições úteis são verdadeiras por mais cem anos”, escreveu J. M. Keynes. Ou seja, “enquanto estivermos no túnel da escassez”, sob o capitalismo, a mentira é útil e necessária. A verdade, a transparência, o pensamento desinteressado, desideologizado só poderão ser socialmente produzidos na “era da abundância”, após a produção de mercadorias que, por definição, são “escassas, úteis e disponíveis”.

Portanto, só após o túnel da escassez em um sistema socialista.

Para Marx, a sociedade capitalista expressa os fenômenos sociais apenas do ponto de vista da burguesia, tamponando o ponto de vista do proletariado. Mesmo os autores da economia política, criadores da teoria do valor do trabalho, devem ser criticados por não terem penetrado nas raízes dos fenômenos principais: a mais-valia e suas formas fenomênicas, o lucro, o juro, a renda da terra. A construção de uma teoria da aparência - os mercantilistas vendo os fenômenos do ponto de vista da circulação, do comércio, e errando inclusive quando afirmam que o lucro nasce do comércio quando o comerciante compra barato e vende caro - desmoralizada pela prática, ideologia mercantilista nela se infiltra, na França , a fisiocracia. Para estes, o excedente só se forma na atividade agrícola e pastoril que produz um “produto líquido”: planta-se um grão e colhe-se uma espiga. Marx considera que esta visão é também falsa. O excedente, a mais-valia, é produzido por todos trabalhadores assalariados que recebem como salário o valor que eles agregam em uma parte da jornada, apenas. Depois de produzir o valor equivalente ao da força de trabalho que gastaram, continuam trabalhando até o final do dia de graça. O sobretrabalho produz uma mais-valia que só pode ser apropriada pelo capitalista. O lucro é a forma dinheiro assumida por este excedente após a venda da mercadoria que se encontra “grávida da mais-valia”.

A mente do capitalista tende a ocultar, a esconder, até de si mesmo, o processo de espoliação que acompanha o processo de produção e as relações de produção capitalistas. Esse processo permanece fora da consciência dos capitalistas. Quando eles dirigem a produção, têm consciência de que devem reduzir os salários, alongar a jornada de trabalho, elevar a produtividade, isto é, têm consciência de que é na produção que se origina o lucro. Mas essa consciência se perde na etapa seguinte. Quando o capitalista vende as mercadorias, passa a pensar que o seu lucro advém das compras mais baratas que as vendas que ele realizou, ou seja, que o lucro advém de sua esperteza e não da exploração. A verdade permanece “latente e oculta, porém real”. A revelação da verdade é paralisante, por um lado porque atinge a consciência social do capitalista, e, de outro, porque mostra ao trabalhador a exploração que o sistema, em seu funcionamento normal, lhe impõe. Mas o processo de exploração é dialético; a acumulação leva a crises cada vez mais completas e profundas; a consciência política se rebela diante da exploração e o sistema será necessariamente superado.

Por que soou tão estranha a confissão de mentiroso do Presidente FHC, em uma aula inaugural no Hospital Sara, em Brasília? O Presidente FHC já ficou conhecido de todos quando, como um apóstata de si mesmo, mandou que esquecêssemos tudo que ele escrevera e dissera. Ou ele estava equivocado anteriormente e deveria devolver as entradas, o preço que pagamos pelos seus livros enganados e enganosos, ou deveria ter escrito uma imensa errata de sua obra. Mas Sua Excelência, de volta de Portugal, se disse “neo-socialista”, e, recentemente, neo-republicano. Depois da derrota para prefeito de São Paulo, quando se declarou ateu, virou cristão-novo, neocristão. Depois de capitanear o maior desemprego da história, disse ser contra o desemprego, que ele produziu, bem como contra o sucateamento e falência de indústrias, comerciantes e agricultores; depois de afirmar que “não existe Oposição”, afirma que a carruagem de suas reformas está atolada porque a Oposição (inexistente) atrapalha a marcha triunfal de seu Governo em direção ao abismo. Foi ele quem assumiu a direção de sua campanha e se instalou no palanque da mídia. Quanto mais fala, mais se atrapalha. Diz e volta à telinha para dizer que não dissera. O grave de sua fala esclarecedora no Hospital Sarah não foi a declaração do óbvio: ele pratica a mentira como obrigação de governo, faz o sacrifício da mentira... Mentirosos mesmo são os vagabundos, os caipiras, os desempregados, que não possuem qualificação para a modernidade... Mais uma mentira.

Mas o grave não foi do ponto de vista de um sociólogo weberiano, nada disso. “Por que os homens obedecem?” Indaga Max Weber. E responde com as “três justificações interiores e, portanto, legitimações básicas do domínio”: “Há o domínio em virtude da ‘legalidade’, em virtude da fé na validade do estatuto legal e da ‘competência funcional’, baseada em regras racionalmente criadas”. “A outra legitimação do poder provém do ‘ontem eterno’, isto é, dos mores santificados pelo reconhecimento inimaginavelmente antigo e da orientação habitual para o conformismo.” Portanto, a legitimação, nesse caso, seria dada pela tradição.

Como a Constituição foi retalhada e refeita a peso de dinheiro, “as regras racionalmente criadas” nada legitimam. A legitimação do poder político e administrativo do Presidente Fernando Henrique Cardoso “emana do “carisma”, do dom da graça (carisma) extraordinário e pessoal; da dedicação absolutamente pessoal e da confiança na revelação, no heroísmo ou em outras qualidades da liderança individual” - define Max Weber. “É o domínio carismático - diz ele - exercido pelo profeta ou, no campo da política, pelo senhor de guerra eleito, pelo governante plebiscitário, o grande demagogo ou líder do partido político” (Max Weber, op. cit., p. 98)

Que Sua Excelência era mentiroso, todos sabíamos: que um Presidente não pode revelar mudanças nas taxas de juro, no câmbio, em questões de segurança nacional etc., todos sabem. Assim, dos grandes autores que citamos acima, de Platão a Sartre, a prática da verdade parece impossível - ou quase - e, portanto, não exigível do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

O grave e imperdoável em sua falação no Hospital Sarah foi sua confissão de mentiroso. Um ser mentiroso perde o “dom da graça”, o carisma, que legitimava o poder carismático de FHC. Logo, Sua Excelência vem de forma contumaz e reiterada cortando suas próprias pernas, desmoralizando o poder carismático que o sustentava. Sua confissão foi politicamente suicida. O líder carismático pode ser tudo, menos mentiroso confesso - é o que uma leitura mais atenta de seu mestre Max Weber lhe ensinaria.

As quedas nas pesquisas de opinião demonstram que Max Weber tem suas razões e a seus maus discípulos, como aos marqueteiros, que se consideram responsáveis pelas vitórias de seus patrões, geralmente tanto espertos quanto ignorantes, seria aconselhável que lessem alguns livros de Max Weber. Afinal “os homens práticos de hoje são escravos de pensadores já mortos”, mas estes não podem ser responsabilizados pelos descaminhos de seus maus seguidores.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT-SP) - V. Exª me permite um aparte, Senador Lauro Campos?

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT-DF) - Pois não, com prazer, nobre Senador Eduardo Suplicy.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT-SP) - V. Exª fez referência sobre a importância de uma pessoa como o Presidente Fernando Henrique Cardoso estar expressando a verdade e não incorrer em mentiras e observou que inúmeros autores falaram dos riscos que existem para um chefe de Estado deixar de falar a verdade. Lembrei-me de um episódio extremamente importante para a História dos Estados Unidos da América, objeto de um filme de Oliver Stone sobre Richard Nixon, que sucedeu Lyndon Baines Johnson, e que surpreendeu a opinião pública por algumas decisões tomadas durante o seu mandato. Ele foi um Presidente Republicano que se tornou conhecido por suas posições bastante conservadoras. Nixon, que foi um dos esteios da campanha Marcatista em perseguição aos comunistas, esquerdistas seja na Academia de Hollywood ou entre intelectuais norte-americanos, surpreendeu, de um lado porque restabeleceu relações diplomáticas com a República Popular da China, processo que iniciou com a política do ping-pong e selou com uma visita, em Pequim, a Mao Tse-Tung - o que é mencionado naquele filme. Ele também realizou um esforço para que fosse concluída a guerra do Vietnã, o que, finalmente, aconteceu, em função de enorme pressão da opinião pública nos Estados Unidos, sobretudo dos jovens, mas também internacional. Richard Nixon, na área social, chegou a propor, mas acabou não sendo vitorioso, a instituição de um programa de assistência à família, um programa de renda mínima familiar, desenhado por Daniel Patrick Moynihan. Mas, num certo momento, sua carreira política foi por água abaixo exatamente em função do tema que V. Exª levanta hoje, e acho que convém recordar. Durante sua campanha para reeleição, a Casa Branca havia realizado uma missão de espionagem no Edifício Watergate, sede do Partido Democrata. Eles estavam utilizando os instrumentos de poder da Casa Branca para espionar ilegalmente tudo o que era feito na sede do Partido Democrata. Quando os jornalistas do Washington Post desvendaram o fato, a primeira reação, a seguinte e a posterior dos membros da Casa Branca foi de procurar negar que aquilo tivesse tido origem na Casa Branca. E o Presidente Richard Nixon, quando instado a falar, também negou que aquilo pudesse ter tido a sua orientação, que pudesse ter tido o seu conhecimento, que ele ou seus Ministros tivessem tido conhecimento da trama. Até que novos documentos e novas gravações surgiram, evidenciando o conhecimento do presidente. Pois bem, quando ficou claro para a opinião pública que ele havia faltado com a verdade, não houve outra alternativa, senão de renunciar antes que fosse votado o seu impeachment. Oliver Stone, inclusive recordando, só para concluir, Sr. Presidente, mostra um momento em que, menino, Richard Nixon procura dizer à sua mãe que lhe perguntara a respeito do cigarro que ele havia fumado e escondido no seu bolso. Mas a mãe, com a percepção de mãe, obviamente percebeu que ele estava faltando com a verdade. Aí o menino, todo atrapalhado, fez um apelo à mãe: que ela não revelasse o episódio a seu pai. E Oliver Stone, brilhantemente, abordou os dois episódios. A mentira, essas que o menino por vezes comete, mas logo depois, repercutindo e sendo repetida na idade adulta. Achei importante ressaltar, porque seria importante que o Presidente Fernando Henrique Cardoso perceba que faltar com a verdade acaba prejudicando enormemente uma pessoa com a responsabilidade de conduzir os destinos do Estado e de uma nação como o Brasil.

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT-DF) - Agradeço o aparte de V. Exª e concluo dizendo que o meu discurso tem por objetivo principal mostrar que, principalmente quando se trata do poder carismático, mais do que do poder da legitimação pela tradição, realmente é necessário que a forma de legitimação carismática venha acompanhada, se ela quiser persistir, se não quiser se traduzir em um desastre, pelo respeito à verdade. Do contrário, a mentira acaba com o carisma e destrói a legitimação do sistema.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 04/06/1998 - Página 9800