Discurso no Senado Federal

LANÇAMENTO DO LIVRO DO EX-FREI LEONARDO BOFF, SOB O TITULO 'ECOLOGIA, GRITO DA TERRA, GRITO DOS EXCLUIDOS'.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • LANÇAMENTO DO LIVRO DO EX-FREI LEONARDO BOFF, SOB O TITULO 'ECOLOGIA, GRITO DA TERRA, GRITO DOS EXCLUIDOS'.
Publicação
Publicação no DSF de 15/11/1996 - Página 18437
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • REGISTRO, LANÇAMENTO, LIVRO, LEONARDO BOFF, ESCRITOR, INTELECTUAL, ASSUNTO, ECOLOGIA, EXCLUSÃO, CLASSE SOCIAL, QUESTIONAMENTO, PROGRESSO, QUALIDADE DE VIDA, HOMEM.

A SRª MARINA SILVA (PT-AC. Como Líder. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, vou falar pela Liderança do Partido dos Trabalhadores.

A exposição do Prof. Lauro Campos foi muito elucidativa da problemática que estamos vivendo e foi também uma espécie de reparação da frase que o Presidente da República disse em relação à greve de fome do Presidente da CUT, o Vicentinho.

Achei muito interessante quando S. Exª disse que somos uma sociedade narcisística e que, portanto, os nossos representantes também acabam sendo narcisos. Caetano Veloso é muito feliz quando diz, naquela música, que "Narciso acha feio o que não é espelho".

Eu tenho insistido muito para que paremos de só achar feio aquilo que não é espelho. Temos que começar a achar bonito o que não é espelho. Pois diante do espelho não há possibilidade da troca. Diante do espelho não há possibilidade de uma interação em que eu acrescento e sou acrescentada. Só é possível isso diante da diferença, e da diferença com respeito e liberdade.

Talvez o grande desafio da humanidade seja aprender a achar bonito aquilo que não é espelho, para, com liberdade, ser capaz de trocar na diferença.

Quero aproveitar a oportunidade para fazer o registro de uma obra muito interessante, lançada recentemente aqui em Brasília, pelo ex-Frei Leonardo Boff. Ele agora é um intelectual da Teologia da Libertação e tem uma série de trabalhos muito interessantes. Trata-se de um livro muito importante, que reflete a problemática da exclusão social, os problemas ambientais, as perspectivas para o futuro da humanidade. O livro é chamado Ecologia, Grito da Terra, Grito dos Excluídos.

O Frei Leonardo Boff trata os problemas que a humanidade vem enfrentando a partir de uma visão cristã do mundo. Expõe a visão de um teólogo, de alguém que, em última instância, em que pese uma série de inovações e da superação de alguns conceitos oriundos da teologia, entende que a essência de tudo é Deus, tese com a qual concordo.

No seu livro Ecologia, Grito da Terra, Grito dos Excluídos, divide a trajetória da humanidade em três etapas, que são muito importantes para o momento que estamos vivendo.

Segundo o Frei Leonardo Boff, durante um longo período, a humanidade viveu o que ele chama de tempo do espírito. O tempo do espírito era exatamente aquele momento em que o homem vivia em fusão completa com a natureza, o homem se fundia com Deus, com tudo o que era expressão do divino. Não havia separação entre o homem e a natureza. Segundo o Mito da Criação, o homem vivia no Jardim do Éden, no paraíso até comer do fruto do conhecimento, ou seja, a maçã. O fruto do conhecimento, do ponto de vista bíblico, é apenas uma simbologia. O verdadeiro fruto do conhecimento é o momento em que o homem tem consciência de que é separado da natureza, de que é uma parte da natureza que tem consciência de si e dela. Nesse momento ele é expulso do paraíso.

A expulsão do paraíso faz com que ele vá viver aquilo que o Frei Leonardo Boff chama de o tempo do corpo. O que seria o tempo do corpo? A Teoria do Criacionismo, na parte da criação do homem por Deus e do processo de expulsão do homem do paraíso, dá um castigo ao homem apartado de Deus, apartado da natureza, consciente de sua essência apartada. O castigo seria o de ele ter de crescer e dominar a terra e todas as coisas que na terra existiam. A isso ele chama de o tempo do corpo. É um tempo perverso. Nesse tempo começamos a pensar que erámos superiores a tudo e que deveríamos ter a natureza ao nosso dispor, para dela extrairmos a nossa sobrevivência, para dominarmos todas as outras coisas em benefício da nossa espécie.

É um tempo do conhecimento, mas de um saber que na nossa cultura ocidental é altamente racionalizado, um saber que está sob a égide do patriarcado - o homem é o centro de tudo, os valores masculinos são os valores predominantes nas relações culturais, sociais e religiosas.

Se verificarmos a concepção de homem e mulher segundo a Bíblia, o Evangelho - e o Frei Leonardo Boff analisa os valores femininos como sendo uma das esperanças para a humanidade -, no mito da criação, o homem é feito do barro, ou seja, da essência da natureza que é parte de Deus. Mas a mulher é feita de parte do homem: da costela. A mulher nasce por encomenda. Não é criada por uma necessidade de que ela devesse existir, mas por uma necessidade do homem, que deseja uma companhia. E no mito da criação a mulher nasce da costela de Adão, para que ele não se sinta só.

Portanto, ela já nasce com uma determinação: a de fazer com que ele se sinta bem, a de fazer com que ele tenha a presença de uma companheira. Nesse caso, temos, já no nosso inconsciente, segundo a doutrina cristã e a cultura ocidental, uma gratidão de origem para com o macho, para com o masculino. É essa a justificação da dominação do homem sobre a mulher.

Talvez, as minhas teses não sejam partilhadas pelos homens que me escutam, mas, na verdade, a origem da nossa dominação não é apenas social ou cultural, mas também de estrutura mental a partir de pressupostos religiosos muito arraigados dentro do cristianismo.

A esse tempo da dominação do racional, do masculino, dos valores da ciência e da tecnologia, Frei Leonardo Boff chama de "tempo do corpo". Ele propõe que superemos todos esses momentos que foram importantes na trajetória da raça humana vivendo o que ele chama de "tempo da vida", que significaria exatamente a religação do homem com Deus, com a natureza, com a vida e a vivência de um novo tempo.

Se, no Velho Testamento, vivemos o tempo do castigo, do sacrifício, onde o homem era obrigado a sacrificar-se para pagar a sua apartação de Deus, já que foi expulso do paraíso, no Novo Testamento, que seria o "tempo da vida", viveríamos o tempo da graça e do perdão. Nesse caso, já não sofremos mais a culpa do pecado original, entendido da forma que falei anteriormente, e já não temos mais que viver com sacrifício, com sofrimento. Nesse sentido, a vida tem que ser encarada de forma positiva e Deus também deve ser positivado; não se trata mais daquele Deus carrancudo que se apresentou a Moisés na montanha, mas sim de um Deus que está dentro de nós, ao nosso lado, que é capaz de construir os melhores valores da Humanidade.

Frei Leonardo Boff diz que o "tempo da vida" representa uma religação com Deus, em que o homem não é mais fundido com a natureza, como percebemos nas culturas órgicas. Ainda há exemplos de culturas órgicas na Amazônia, como, por exemplo, os índios que praticam a religião do Santo Daime, a quem tenho todo o respeito. Trata-se de uma verdadeira fusão do homem com a natureza; o ato de atribuir divindade a uma planta faz com que essa fusão seja muito mais potente. E também é uma manifestação religiosa, milenar dos índios, secular de algumas comunidades tradicionais e que tem um potencial de riqueza muito grande. Não se trata apenas dessa fusão, como também da racionalidade do patriarcado do tempo, do corpo, quando o homem se voltou para dominar o mundo; trata-se do "tempo da vida", em que seremos capazes de estabelecer uma síntese entre o tempo do espírito e o tempo do corpo.

Falar dessas idéias em plena globalização, quando a sociedade está quase que dissolvendo os seus valores de referências das pequenas culturas, das pequenas comunidades e até mesmo de algumas nações, quando o poder se dá em uma esfera altamente distante dos estados nacionais, em que a nossa função de Senadores, de Deputados, de Presidente da República ou seja lá do que for, é algo insignificante, parece uma espécie de romantismo. Na verdade, quem manda no mundo são as potências transnacionais. Hoje já não se fala mais apenas em uma economia internacionalizada, mas, sim, de uma economia globalizada, em que as regulações, cada vez mais, são mundiais e, cada vez menos, são locais. Penso que, mesmo com todo o crescimento tecnológico, deveríamos perguntar: o que isso acrescentou para a Humanidade? É claro que não sou contra a tecnologia, a pesquisa e a ciência, muito pelo contrário; penso que são fundamentais.

Todavia, não podemos perder a dimensão, como muito bem falou o professor Lauro Campos, de que nas coisas estão imbricados o positivo e o negativo, o quente e o frio, o bom e o ruim, se é que se pode tratar essas questões dessa maneira. Assim, com todo o avanço tecnológico que tivemos, com o aumento da produção, com a melhoria da qualidade de vida para alguns, com o controle de algumas doenças, de algumas epidemias, também tivemos grandes mazelas. Daí, podermos perguntar: em que isso acrescentou do ponto de vista da melhoria da qualidade de vida da população de todo o Planeta? Este, um questionamento que o Frei Leonardo Boff faz.

Hoje, temos, no Planeta, 1 bilhão de pobres vivendo em completa miséria; 60 milhões morrem anualmente de fome, dos quais 14 milhões são jovens com menos de 15 anos. Então, se formos parar para pensar na situação de exclusão social que estamos vivendo, considerando mesmo aquela nova postura diante do princípio do que é ser raça humana, do que é ser Humanidade, poderemos perceber que os valores que ele está colocando são atuais. Assim, somos convocados a viver esse tempo de religação do homem consigo mesmo, com Deus, com a natureza, com a defesa do meio ambiente, enfim, valores que nos ligam de uma forma universal.

Durante muitos anos, a humanidade tinha um referencial ético de que éramos todos humanos. Hoje, estamos indo para uma bifurcação que considero muito perigosa. A insensibilidade diante de alguns problemas que a Humanidade vem atravessando é assustadora.

A ONU determina que 0,7% do Produto Nacional Bruto dos países desenvolvidos deve ser destinado para a ajuda aos países considerados pobres, mas a maioria desses países desenvolvidos não o fazem, não conseguem cumprir com essa determinação mínima. Os Estados Unidos são considerados um dos países mais ricos, mas investem apenas 0,15% nessas atividades de ajuda a países pobres.

Dessa forma, estamos vivendo um período de grande insensibilidade, mas também de desafio à religação, à construção de um homem que seja capaz ainda de se indignar, de se enternecer e de não debochar do sofrimento alheio. Diria que, apesar de todos esses problemas, concordo com as teses do Frei Leonardo Boff, de que é possível construirmos uma cultura que tenha os valores da sensibilidade, do importar-se com o outro. Acredito nesses valores, e, nesse sentido, para mim tem sido muito rica a leitura do livro do Frei Leonardo Boff, "O Grito da Terra, o grito dos excluídos", porque também partilho da idéia de que as grandes saídas não acontecerão mais como acreditávamos antes. Não acredito na figura do grande político que conduzirá a sua nação, mas em saídas horizontalizadas, em que as pessoas sejam convocadas a oferecer o que há de melhor em si para contribuir com o coletivo.

Nesse sentido, penso que temos alguns exemplos. Os líderes da atualidade que conseguiram movimentar grandes contingentes de pessoas para fazerem mudanças significativas foram aqueles capazes de despertar os melhores sonhos e sentimentos do seu povo. Cito o exemplo de Gandhi e o de Mandela, mais recente. Trata-se de uma liderança moderna, que tem um referencial na própria cultura do povo africano, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de fazer o entrelaçamento entre aquilo que alguns chamam de modernidade e tradição.

Penso que o nosso grande desafio é sermos capazes de dominar o mundo, mas sem perdermos o referencial de que também somos parte dele; dessa forma, é impossível não estarmos ligados a ele, à terra, às pessoas e, principalmente, à nossa espécie.

No meu ponto de vista, não existe espaço para um destino sozinho, isolado; é fundamental que saibamos que dependemos um do outro e que, no universo, há espaço para todos juntos.

Sempre digo que, na política, é muito difícil defender esses princípios, porque ela é sempre a arte do conflito. É preciso estar sempre duelando com alguém, para ganhar espaço. No entanto, considero possível também executar diferentemente na política. Podemos fazer o duelo pela positiva, afirmando os nossos ideais, os nossos melhores propósitos. Nem sempre é possível, mas acredito nisso e, que cada vez mais, é preciso que tenhamos atitudes horizontalizadas no sentido de que as pessoas sejam convocadas a decidirem, a oferecerem propostas e sugestões e não precisamos concordar em tudo para podermos trabalhar juntos, que podemos ter alianças pontuais.

Existem algumas questões em que podemos trabalhar juntos no assunto da Criança e do Adolescente, mas, se não for possível trabalharmos juntos na tese indígena, não haverá problema. Onde for possível trabalharmos juntos, teremos que fazê-lo. O grande desafio da Humanidade é trabalhar, hoje, talvez, como redes como alguns sistemas que não nos permita uma desestruturação do "tecido social" onde temos cada um por si e, enfim, um todo que ninguém se responsabiliza por ele.

Dividindo, nesta parte de muitos debates da Bancada do PT, algumas reflexões de uma forma humilde de uma pessoa que não é uma erudita, apenas de alguém que tem a curiosidade de ler e pensar o mundo pensado e julga que é possível contribuir de alguma forma com os melhores valores que precisamos aprender a continuar cultivando. Para quem quer ler a obra do Frei Leonardo Boff é uma boa entrada num mundo de teologia, de compromisso, de política de ecologia e, acima de tudo, de defesa da vida.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/11/1996 - Página 18437