Discurso no Senado Federal

REFLEXÕES SOBRE A REPORTAGEM DO MES DE DEZEMBRO DE 1997, PUBLICADA NA REVISTA VEJA, SOB O TITULO 'AMAZONIA COMO UMA DAS ULTIMAS GRANDES FRONTEIRAS DA FE'.

Autor
Gilberto Miranda (PFL - Partido da Frente Liberal/AM)
Nome completo: Gilberto Miranda Batista
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
RELIGIÃO.:
  • REFLEXÕES SOBRE A REPORTAGEM DO MES DE DEZEMBRO DE 1997, PUBLICADA NA REVISTA VEJA, SOB O TITULO 'AMAZONIA COMO UMA DAS ULTIMAS GRANDES FRONTEIRAS DA FE'.
Publicação
Publicação no DSF de 05/08/1998 - Página 12390
Assunto
Outros > RELIGIÃO.
Indexação
  • COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, ASSUNTO, DIVERSIDADE, RELIGIÃO, SEITA RELIGIOSA, REGIÃO AMAZONICA.
  • ANALISE, ALTERAÇÃO, RELIGIÃO, ATUALIDADE, ESPECIFICAÇÃO, AUMENTO, AUTONOMIA, HOMEM, INSTITUIÇÃO RELIGIOSA.
  • EXPECTATIVA, INTEGRAÇÃO, RELIGIÃO, REGIÃO AMAZONICA, ATUAÇÃO, BENEFICIO, BEM ESTAR SOCIAL, POPULAÇÃO.

           O SR. GILBERTO MIRANDA (PFL-AM. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em reportagem do mês de dezembro de 1997, a revista Veja referiu-se à Amazônia como “uma das últimas grandes fronteiras da fé”, pois lá “multiplicaram-se as igrejas que disputam a preferência dos habitantes da floresta”. Estima a revista que mais de mil missionários, das mais diversas denominações religiosas, estão embrenhados nas selvas, catequizando índios e moradores da região. Além da catequese, os missionários proporcionam auxílio de toda ordem a essas populações que desconhecem a existência do Estado, porque vivem isoladas, abandonadas e privadas de todo tipo de assistência a que faz jus qualquer cidadão.

           Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Amazônia, religião e fé são os temas que quero abordar nesta minha fala.

           Vive hoje a humanidade uma época histórica de intensas perspectivas de mudança. Presencia, sem dúvida, o horizonte de uma nova civilização. Ao trabalho, aos recursos naturais e ao capital, fatores produtivos elásticos, hoje é agregada a informação processada como informática e inaugura-se a era pós-industrial.

           Essa verdade transparece com nitidez nos centros mais desenvolvidos. No entanto, com a interdependência que entrelaça os povos do mundo inteiro, ninguém está imune à influência e aos efeitos das transformações que atingem todos os setores.

           Em uma realidade assim contextualizada, com irresistíveis apelos para o consumo, os bens ofertados assumem qualidades e funções diferentes das possuídas tradicionalmente. Assumem uma função de satisfação de necessidades superiores, desempenhando importante papel no campo da simbolização. Nesse âmbito, televisores, vídeo-games, computadores, telefones celulares não apenas possibilitam a comunicação entre os indivíduos, mas também se convertem em poderosos e fascinantes ícones eletrônicos.

           Na sociedade moderna, a religiosidade redimensiona-se, mesclando múltiplas percepções, criando e recriando uma lógica própria da fé, com um imaginário próprio e um específico código de virtudes. Trata-se da construção de um sistema caracterizado pelo holismo, um mundo feito de inúmeras e efêmeras combinações, adaptado às circunstâncias da existência e à lógica de cada necessidade.

           Um sistema assim atribui ao sujeito religioso um poder pessoal, um poder que passa pela astrologia, pela psicanálise, pela homeopatia, pela hermenêutica, por uma antropologia holística e pelo ambientalismo militante. Anjos, espíritos, guias e gnomos, oráculos e pirâmides, orações, ervas e fórmulas da alquimia, meridianos chineses, preceitos orientais, baralhos, passes espirituais e ebós, horóscopos e talismãs são alguns dos muitos elementos que povoam o universo litúrgico na expressão da fé religiosa de nossos dias.

           Em síntese, tudo isso constitui a complexidade do universo da representação simbólica em tempos de mercado globalizado, de informação fácil, universal e rápida, de apelo exacerbado para o consumo e de primazia do individual.

           Na atualidade, pode-se afirmar que o espaço do sagrado sofreu um processo de privatização, que se traduz praticamente no pluralismo religioso plantado no interior das pessoas, compreensível e adequado dentro do prisma de uma modernidade que se distingue pela centralidade dada ao indivíduo. Uma privatização que expressa, pelo menos do ponto de vista simbólico, o desejo de autonomia dos sujeitos em relação às instituições. Uma privatização que encerra em si a perspectiva do consumo religioso. O religioso tornou-se um bem que pode ser adquirido por dinheiro, de acordo com as necessidades de cada um.

           A privatização traz consigo também a facilitação do trânsito entre diferentes sistemas de crenças ou de espaços sagrados. Com ela, passa a vigorar uma espécie de nomadismo da fé, um nomadismo povoado de peregrinos do sentido.

           Nesse contexto, destacaria três observações. Em primeiro lugar, materializa-se uma espécie de complementaridade entre os diferentes sistemas religiosos. Em segundo lugar, o crente adquire uma sensação de maior proteção transcendental por força do maior número de visões religiosas. E, por último, esse fenômeno prova que as instituições em si não esgotam o leque dos anseios sagrados, pelo menos no sentido e na abrangência do que institucionalmente é ofertado.

           Por sua vez, a autonomia pessoal em relação às instituições talvez seja hoje o único espaço em que a pessoa encontra a liberdade para encaminhar sua vida de acordo com opções pessoais. Nada mais lhe resta quanto à possibilidade de decidir o que fazer com base na tendência, no gosto ou na liberdade pessoal. Daí a freqüência de um religioso flutuante, disperso, múltiplo, plural, vivendo no conjunto de novos movimentos que surgem e se multiplicam sem contornos fixos, situados, em grande parte, nas fronteiras entre religião e ciência, religião e arte, religião e medicina, religião e filosofia, ecologia ou psicologia, formando, enfim, como bem disse J. Maître, uma “nebulosa das heterodoxias”. Tais heterodoxias, segundo o mesmo Maître, estariam a ocupar os espaços que as religiões tradicionais abandonaram ou que a ciência não explicou. São os espaços das incertezas, dos medos, dos imponderáveis, da vida, do mistério, do misticismo, do acaso, dos fracassos, da morte, da espiritualidade profunda (J. Maître, apud REB, março de 1997, p. 46).

           Numa tentativa de caracterizar as modernas formas de manifestação da fé, parece clara a predominância de algumas dimensões.

           Em primeiro lugar, patenteia-se a dimensão do emocional, expressa no papel central que é reconhecido à experiência pessoal, “nas manifestações sensíveis dessa experiência, na importância atribuída à “autenticidade afetiva” das trajetórias espirituais pessoais e na procura, por vezes bastante elaborada, de um engajamento total do corpo e dos sentidos na expressão religiosa” (Prof. Dr. Ari Pedro Oro, opus cit. p. 48).

           A experiência religiosa da modernidade, de fato, tende a ser uma experiência ligada à emoção, ao corpo, à subjetividade, uma experiência marcada pela procura do contato imediato com o divino, na valorização do simbolismo e do milagre, no dinamismo dado aos rituais, na sacralização do mundo, da natureza e da vida, na experiência místico-espiritual e na recuperação da magia.

           Um semelhante horizonte encaixa-se plenamente na facilidade de chamamento que as religiões exercem sobre o povo brasileiro. O emocional suscita uma satisfação compensadora numa sociedade excludente onde a imensa maioria não tem e não encontra meios para trabalhar ou para dar vazão às próprias emoções.

           Outras tendências podem ser identificadas na facilidade com que se fazem incorporações, integrações e junções. Trata-se de uma dimensão globalizante, uma aspiração indefinida, sem contornos, de um crer novo, associado a um mínimo de, ou praticamente sem, intermediação institucional. Cada pessoa move-se livremente na busca pessoal do bem-estar e do sentido da vida.

           Uma terceira dimensão manifesta-se na articulação, processada e expressa de diversas maneiras, do religioso com a busca da saúde, da consecução do equilíbrio psíquico, da libertação de estados mórbidos, males de amor, falta de dinheiro, de emprego, de reconhecimento, de afeto, de satisfação e alegria. É a dimensão terapêutica, que procura, em última análise, superar o mal-estar da civilização.

           Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, essas considerações têm o objetivo de analisar e entender o fenômeno das formas de crer nos dias de hoje, inclusive nas plagas da imensa Amazônia. O apelo transcendental é tão forte quanto é profundo o mistério e a esperança da vida; é tão demandante do relacional quanto são imensos o isolamento e a solidão em que vivem os brasileiros no interior dessa região do País.

           O que é fortemente desejável é que as religiões não sejam fonte de violência, na Amazônia, pois o trânsito religioso não se faz sem iconoclasmo e a relação competitiva entre os cultos é uma obviedade (cf. Pierucci, cf. op. cit., p. 54). Espera-se, sim, que executem os objetivos de difusão do bem e que inaugurem uma era de relacionamento e compreensão. E sejam também baluartes de serviço e de apoio.

           A religião nessas circunstâncias e naquela geografia, onde nem o Estado existe, porque não é presença é lenitivo, é esperança, é incentivo, é presença, é companhia, é força para trabalhar, para acreditar, para vencer. É força para viabilizar o Brasil na Amazônia, desenvolvendo-o sem agressão e irmanando todos os brasileiros que ali vivem.

           Era o que tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/08/1998 - Página 12390