Discurso no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DIREITOS HUMANOS NO MUNDO, A PROPOSITO DAS CELEBRAÇÕES RELATIVAS AO CINQUENTENARIO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.

Autor
Bernardo Cabral (PFL - Partido da Frente Liberal/AM)
Nome completo: José Bernardo Cabral
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS.:
  • CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DIREITOS HUMANOS NO MUNDO, A PROPOSITO DAS CELEBRAÇÕES RELATIVAS AO CINQUENTENARIO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.
Publicação
Publicação no DSF de 09/10/1998 - Página 13476
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, CINQUENTENARIO, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, DEFESA, TOLERANCIA, DIVERSIDADE, HOMEM, OBJETIVO, SOLIDARIEDADE.
  • COMENTARIO, GUERRA, TERRORISMO, PAIS ESTRANGEIRO, AFRICA, DESIGUALDADE SOCIAL, MUNDO, AUMENTO, CONCENTRAÇÃO DE RENDA, ESPECIFICAÇÃO, BRASIL, PREJUIZO, DIREITOS HUMANOS.
  • EXPLORAÇÃO, TRABALHO, CRIANÇA, INVASÃO, TERRAS INDIGENAS, EXCESSO, NECESSIDADE, ATENÇÃO, DESRESPEITO, DIREITOS HUMANOS, BRASIL, AMBITO, LOTAÇÃO, PRESIDIO, MISERIA, DESEMPREGO.

O SR. BERNARDO CABRAL (PFL-AM. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Senador Antonio Carlos Magalhães, Srªs e Srs. Senadores, o transcurso do ano de 1998 está sendo pautado pelas celebrações relativas ao cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sendo os direitos humanos a matriz da existência humana e da coexistência interpessoal, nenhum homem, mulher ou criança, em qualquer parte do mundo, deixará de ser objeto, no decorrer deste ano, das reflexões e iniciativas que pontuam a data.

Os direitos humanos repousam no próprio fundamento do que nos torna humanos. Neles estão consubstanciados os princípios geradores da construção social da dignidade humana. Este não é, portanto, e não deve ser, um ano comum para a humanidade. Os eventos com que cada povo, em suas tradições, costumes e cultura, habituou-se a marcar comemorativamente as efemérides de seu calendário, estão reverenciando, neste ano, o aniversário dos direitos humanos.

Há uma palavra, Sr. Presidente, que para mim está cerne do que se deve entender quando se fala em direitos humanos, quando se fala do direito à vida. Essa palavra é tolerância. Da tolerância derivam todas as formas de liberdade. Ser tolerante é aceitar a diferença do outro, do outro que é diferente de nós, seja na cor, na crença, no sexo. É mais: é aceitar a dissensão, a diversidade, a alteridade. O homem tolerante está mais apto à convivência harmoniosa, mais pronto à solidariedade espontânea, mais disponível à fraternidade desinteressada.

Se me deixo levar assim por essas reflexões, Sr. Presidente, é porque brotam, do fundo de minh´alma, o anseio e o desejo de ver florescido, em cada pessoa, o sentido da profunda tolerância e da suprema humanidade. Alguns me acharão utópico, visionário, sonhador. Confesso que é difícil sê-lo, numa época em que as sociedades mais e mais se conformam como agrupamentos funcionais, em que o pragmatismo inibe a convivência com os diferentes e encasula o homem em guetos de iguais. É difícil sê-lo, também, porque a realidade desse final de milênio mostra-se dicotômica.

Se, por um lado, amealhamos os benefícios das tecnologias modernas, das descobertas da ciência, dos avanços na medicina, da instantaneidade dos meios de comunicação, da velocidade dos deslocamentos, por outro, acumulamos heranças de barbárie, formas de tirania extemporâneas, manutenção de costumes desumanos, imposição de regimes ditatoriais.

Acompanhando o noticiário recente e focalizando apenas uma região do globo, vemos, com tristeza, que a África ferve em guerras, rebeliões e terrorismo. Na Argélia, grupos islâmicos são acusados de ter matado cerca de 80 mil pessoas nos últimos anos, com a degola inclusive de mulheres e crianças. No Egito, grupos fundamentalistas islâmicos têm praticado atentados terroristas, calculando-se que o número de vítimas tenha chegado a 1.200 pessoas nos últimos cinco anos. A rivalidade entre tutsis e hutus já ceifou mais de 200 mil vidas em Burundi desde 1993. Inserida no mapa de tragédias da África desde o genocídio de 1994, Ruanda assistiu ao extermínio de mais de 500 mil tutsis e hutus nos últimos quatro anos. No Sudão, trava-se uma guerra civil há mais de 15 anos, calculando-se que as batalhas e a falta de alimentos sacrificaram mais de 2 milhões de sudaneses.

Continente três vezes maior do que a Europa e com 750 milhões de habitantes, a África é detentora de extraordinária riqueza natural. Foi essa riqueza que atiçou a cobiça das superpotências européias, que retalharam o território africano num tabuleiro propício aos seus propósitos colonialistas e interesses ideológicos. É essa mesma riqueza que faz facções rivais semearem a morte e a miséria.

Hoje, o continente africano encontra-se dilacerado pela violência, pela fome e pela doença. A decadência do sistema de saúde pública tem exposto a população a grande espectro de doenças, desde as mais antigas, como lepra, malária, tifo e dengue, até a Aids do mundo moderno. Apesar de sua riqueza potencial, o continente está atolado em dívidas. Os acordos de paz não logram resultados positivos. Em abril deste ano, o Secretário-Geral das Nações Unidas, o ganense Kofi Annan, declarou o fracasso de sua organização para resolver os problemas da Somália, Ruanda e Libéria, mas transmitiu otimismo ao afirmar que, pelo menos em sete países - Angola, Burundi, Uganda, Sudão, Eritréia, Etiópia e Ruanda -, as guerras causadoras da mais tenebrosa miséria humana poderiam chegar ao final, com a aplicação de um plano das Nações Unidas, que contemplaria restrição à venda de armamentos, fim das sanções econômicas e cancelamento das dívidas dos países mais pobres.

Num outro cenário, distante das guerras civis, encontramos um quadro não menos devastador. Não podemos deixar de reconhecer que a justiça social ainda não se disseminou por igual na face do planeta. Uma minoria da humanidade usufrui de bem-estar e conforto, concretizado no amparo de leis, no emprego seguro, no acesso à educação, na preservação da saúde, na moradia confortável, na abundância dos meios econômicos a propiciar o usufruto de todo o conforto disponível pela modernidade.

Na outra margem do rio está uma porção de homens, mulheres e crianças que vivem em condição de carência perene. Falta-lhes moradia, emprego, educação, transporte, saúde. Relegados ao abandono e à própria sorte, sobrevivem por milagre, ou por acaso. Essa, infelizmente, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, é a parte majoritária. Não foram excluídos do bem-estar pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ao contrário, a Declaração os contemplou a todos, a Declaração tornou-os igualmente beneficiários de todos os direitos humanos. Tornaram-se os excluídos de todos os direitos humanos pela ação de homens insensatos e intolerantes, que usaram sua inteligência e argúcia para construir sistemas econômicos de exclusão, mirabolantes programas que lançam e mantêm milhares de seres humanos na pobreza, no desemprego, no desvão da história.

O Brasil não está a salvo dessa outra espécie de barbárie. Também aqui os ricos estão se tornando mais ricos: e os pobres, mais pobres. Segundo levantamento do IBGE, em 1987, os 10% mais pobres detinham 1,12% da renda nacional. Em 1996, esse percentual havia baixado para 0,98%. Agora veja a comparação: no mesmo período, os 10% mais ricos ampliaram sua participação na renda nacional, passando de 41,91% para 42,36%.

Diante da perversidade de uma distribuição desigual da riqueza, estaremos sendo visionários ao reafirmarmos a primazia dos direitos humanos? Absolutamente, não! Quando mais grassar a injustiça entre os homens, mais devemos altear nossa voz para a vigência plena dos direitos fundamentais do todo ser humano.

Se, em épocas pretéritas, a urgência da História direcionou a luta dos direitos humanos para a defesa dos direitos civis e políticos, entendidos como direitos de liberdade, segurança, integridade física e moral, livre participação na vida pública, hoje, a urgência se faz na direção dos direitos econômicos, sociais e culturais, que se referem à existência de condições de vida e acesso aos bens materiais e culturais adequados à dignidade humana. Alguns estudiosos, e neste ponto, faço questão de ressaltar que, na minha última ida a Genebra, representando este Senado por indicação de V. Exª, Sr. Presidente, numa longa conversa com o Embaixador Celso Lafer, trocamos idéia sobre esse assunto. E S. Exª fez questão de me mostrar dois momentos do que convencionou chamar de direitos de primeira e de segunda geração. Dentro da cadeia das gerações de direitos humanos, encontramos ainda os direitos de terceira ou quarta geração. São titulares desses direitos não os indivíduos em sua singularidade, mas os grupos humanos, nos quais se incluem: a família, o povo a Nação, comunidades regionais e étnicas, como também a própria humanidade. Esses direitos estão ligados à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente.

Nesse sentido, reafirmar a validade dos direitos humanos e lutar por sua vigência efetiva significa buscar por todas as formas e meios, o respeito generalizado pelo indivíduo, pelos agrupamentos sociais, pelas Nações. Não apenas quando forças circunstanciais estão oprimindo pessoas e ameaçando sua integridade física e moral, ou quando estão elas sendo cerceadas em seu direito de liberdade, ou de defesa, ou de livre expressão. Devemos fazer valer os direitos humanos também lutando para garantir ao trabalhador emprego; para garantir às crianças acesso à educação; para garantir aos grupos minoritários igualdade de direitos; para garantir às futuras gerações um meio ambiente sadio.

Sabemos que, no Brasil, temos de empreender ampla caminhada para fazer valer todos os direitos para todos os brasileiros. É verdade que nossa percepção e consciência da violação dos direitos humanos no País se aguça e se intensifica vertiginosamente quando ocorrem episódios que chocam pela brutalidade, truculência e insanidade com que são marcados. Lembro-me da comoção de que foi tomada a sociedade brasileira ao tomar conhecimento da truculência policial na favela de Diadema, em São Paulo, e na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Ou nos episódios da Candelária, do Carandiru, de Eldorado de Carajás. Ainda agora, a indignação nos invade no caso dos crimes em série praticados no Parque do Estado, em São Paulo.

Mas nossos olhos - e aí é preciso que fiquemos atentos - devem estar continuamente voltados para aqueles segmentos que convivem diuturnamente com a violação dos direitos humanos. Penso particularmente em parte significativa de nossas crianças, constrangidas ao trabalho precoce pela carência generalizada; penso em nossos índios, vítimas inocentes da ganância do branco invasor; penso em nossos presidiários, confinados num sistema prisional desprovido de programas de reabilitação; penso principalmente nos 24 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, fato inconteste de quão distante está a eqüidade na distribuição dos bens e riquezas.

Nossa atenção também deve estar voltada, prioritariamente, para o agravamento do quadro de desemprego, que vem subtraindo de homens, mulheres e jovens milhares de postos de trabalho. No entardecer deste século, tornou-se imperioso reafirmar o direito ao trabalho como condição primeira de garantia de cidadania plena, de desenvolvimento do ser humano, de preservação da própria sobrevivência.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a Unesco tem atribuído aos parlamentos do mundo todo profunda responsabilidade na promoção dos direitos humanos, conclamando os parlamentares a promoverem, ao ensejo do ano do cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o aprofundamento das reflexões, a intensificação das discussões e o apoiamento a projetos que topicalizem o temário dos direitos humanos.

Reconheço como correta essa avaliação da Unesco, Sr. Presidente! O Parlamento constitui-se, inegavelmente, num verdadeiro guardião dos direitos humanos. Encontra-se nos Parlamentos não apenas a gênese dos direitos humanos, mas também o poder fiscalizador da aplicação das leis. É inconteste seu papel no processo de afirmação e de preservação dos valores inerentes ao conceito de cidadania e ao significado de civilização.

Por entender dessa maneira é que, na defesa e na garantia dos direitos humanos, sempre busquei pautar minha conduta no foro congressual. Os que acompanham minha atuação na vida pública brasileira sabem a primazia que sempre atribuí ao capítulo dos direitos humanos no contexto do trabalho parlamentar. Muito me honra - e por que não confessar até que muito me orgulha? - ter atuado como Relator-Geral da Assembléia Nacional Constituinte e ter contribuído para construir aquela que foi considerada pelo nosso eminente Ulysses Guimarães como a Constituição-Cidadã. E, hoje, Sr. Presidente, por incúria de uns e pressa de outros, por avaliação intempestiva de tantos, querem transformá-la em um canteiro de obras. E, neste particular, lanço aqui o meu protesto.

Mas devo confessar também, Sr. Presidente, minha convicção de que a mera existência de um arcabouço de leis voltadas para a garantia do exercício pleno dos direitos humanos não é condição suficiente para a sua inviolabilidade. Há gestores e mecanismos que contribuem para sua inoperância e ineficácia, constituindo ingerências alheias até mesmo à vontade e ao controle dos Estados e Governos.

Encontramos esses mecanismos no endividamento desenfreado, na volatilidade dos capitais financeiros, na excessiva autonomia dos mercados, nos processos perversos de globalização econômica. Talvez eles sejam os maiores responsáveis pela trajetória acelerada de exclusão, que coloca à margem das satisfações mínimas de sobrevivência significativa parcela da humanidade.

Nesse sentido, os Parlamentos do mundo devem voltar seus olhos também para esses perversos mecanismos de marginalização e exclusão, se realmente tiverem como propósito a luta pela construção de sociedades mais justas, mais fraternas e mais solidárias. Cabe aos parlamentares de todas as nações oferecerem sua contribuição para erradicar a violação aos direitos humanos, fortalecendo o sentimento de tolerância a que me referi no início deste pronunciamento, sentimento que, a meu ver, está no cerne da aceitação da diferença e da alteridade. Disseminar a tolerância e imprimir sua marca em todos os atos humanos é contribuir para a humanização da própria humanidade.

Antes de concluir, Sr. Presidente, devo dizer-lhe que, no momento em que V. EXª, Senador Lauro Campos, assumiu a presidência dos nossos trabalhos, devido à viagem que teve que empreender o Senador Antonio Carlos Magalhães, não quis ter a honra de lhe conceder o aparte que V. EXª. anunciava para abrilhantar o meu discurso, porque queria que V. EXª. tomasse conhecimento do seu recheio, que nada mais é senão uma contribuição exatamente igual àquela que V. EXª. tem feito ao longo do desempenho do seu mandato neste Senado, onde muitas vezes as idéias podem ser diferentes, mas buscam encontrar o mesmo objetivo. Mas, mesmo tendo sido privado de ter no bojo de meu discurso o brilhantismo de seu aparte, sinto a alegria de encontrá-lo na Presidência; e, quando descer da tribuna, estarei, quando nada, abençoado pela presença dos meus Colegas, a quem, nesta hora, digo muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 09/10/1998 - Página 13476