Discurso no Senado Federal

REPUDIO A MEDIDA PROVISORIA QUE ALTERA O PRINCIPIO DA DOAÇÃO PRESUMIDA, CONSTANTE DA LEI DA DOAÇÃO DE ORGÃOS.

Autor
José Eduardo Dutra (PT - Partido dos Trabalhadores/SE)
Nome completo: José Eduardo de Barros Dutra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SAUDE.:
  • REPUDIO A MEDIDA PROVISORIA QUE ALTERA O PRINCIPIO DA DOAÇÃO PRESUMIDA, CONSTANTE DA LEI DA DOAÇÃO DE ORGÃOS.
Publicação
Publicação no DSF de 09/10/1998 - Página 13479
Assunto
Outros > SAUDE.
Indexação
  • CRITICA, GOVERNO, EDIÇÃO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), ALTERAÇÃO, LEGISLAÇÃO, DOAÇÃO, ORGÃO HUMANO, OBJETIVO, TRANSPLANTE, DESRESPEITO, PRERROGATIVA, CONGRESSO NACIONAL.
  • DEFESA, LEGITIMIDADE, DEBATE, CONGRESSO NACIONAL, SOCIEDADE, EPOCA, TRAMITAÇÃO, PROJETO DE LEI, DOAÇÃO, ORGÃO HUMANO, REGISTRO, PESQUISA, OPINIÃO PUBLICA, APROVAÇÃO, LEGISLAÇÃO.
  • CRITICA, GOVERNO, MINISTERIO DA SAUDE (MS), DESCUMPRIMENTO, LEGISLAÇÃO, FALTA, ESCLARECIMENTOS, POPULAÇÃO, DOAÇÃO, ORGÃO HUMANO, REGULAMENTAÇÃO, PROCESSO.

O SR. JOSÉ EDUARDO DUTRA (Bloco/PT-SE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Governo encaminhou ao Congresso Nacional uma medida provisória que modifica a Lei de Doação de Órgãos, retirando, na prática, o princípio da doação presumida.

Quando a imprensa informou que era intenção do Governo encaminhar essa medida provisória, o Senador Lúcio Alcântara, que brilhantemente relatou os projetos sobre o assunto no Senado, fez no plenário um apelo ao Ministro da Saúde para que desse mais tempo à população e à sociedade brasileira para que se adaptassem à nova lei, e não a modificasse, antes, inclusive, de que se tivesse uma avaliação mais rigorosa da sua eficácia. Infelizmente, o Ministro José Serra não atendeu ao apelo do seu colega de Partido, Senador Lúcio Alcântara, e encaminhou a medida provisória.

Desde que estou aqui no Senado, se houve um projeto que mereceu amplo debate e em que os Senadores votaram de acordo com suas convicções, e não de acordo com orientações das Lideranças dos Partidos, foi esse. Ele foi aprovado primeiro no Senado, porque era de iniciativa de três Senadores, eu próprio, o Senador Darcy Ribeiro e a Senadora Benedita da Silva; foi brilhantemente relatado pelo Senador Lúcio Alcântara, que apresentou um substitutivo praticamente completo; foi à Câmara dos Deputados, que retirou o princípio da doação presumida; e voltou ao Senado. Lembro-me que, quando da sua votação, houve toda uma tarde de debates entre vários Senadores, dos mais diferentes Partidos, e, no dia seguinte, após mais um período de discussão, o projeto foi votado.

Não é verdade, como se insinuou, que o projeto não tivesse sido debatido com a sociedade. Quando foi aprovado pela primeira vez no Senado e encaminhado à Câmara, a Folha de S.Paulo promoveu uma mesa-redonda, da qual participou o Senador Lúcio Alcântara, e o resultado foi transcrito, quase que na íntegra, em cerca de duas páginas daquele jornal.

Mas o assunto acabou tendo uma repercussão mal conduzida. Primeiro, reduziu-se a discussão da Lei de Doação de Órgãos única e exclusivamente à doação presumida, quando a lei trata de muito mais, como o princípio da lista única para acabar com os privilégios daqueles que, através do mais vil pistolão, conseguem “furar” uma fila de doação de órgãos; e a necessidade de se instalar pelo menos uma central de captação de órgãos em cada Estado, já que hoje, no Brasil, existem apenas oito ou dez. Assim, estabeleceu-se quase que uma situação de terrorismo, principalmente porque o Governo Federal não fez o dever de casa. O Governo Federal não cumpriu a tarefa que lhe estava destinada pela própria lei.

Em um dos seus artigos, a lei estabelecia a obrigatoriedade de o Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde, desencadear uma ampla campanha de esclarecimento da opinião pública, antes de sua entrada em vigor, ao mesmo tempo em que conclamaria a população a doar órgãos.

Quando o projeto foi aprovado, levantou-se a polêmica sobre se o Presidente deveria ou não sancionar o artigo que tratava da doação presumida. O Ministério da Saúde, então, fez uma pesquisa em que constatou que 75% da população eram a favor da sanção. Em função disso, Sua Excelência sancionou-o, mas não cumpriu o restante das obrigações do Executivo e chegou-se ao absurdo daquelas filas quilométricas nos institutos de identificação, no final de 1997, exatamente porque passou-se a informação de que as pessoas deveriam definir em sua carteira de identidade, até 31 de dezembro daquele ano, se queriam ou não ser doadoras. Na verdade, a lei estabelece que essa decisão pode ser tomada a qualquer tempo, podendo também ser mudada depois.

O Governo também não adotou a sugestão do Ministério da Saúde, quando da regulamentação da lei, para que não houvesse necessidade de troca de documentos: bastaria uma gravação com as iniciais ND - não doador - na carteira de identidade antiga para que, automaticamente, a pessoa tivesse sua vontade respeitada. Nada disso foi feito e o Governo precisou “correr atrás do leite derramado”, fazendo a propaganda institucional que, depois, terminou por surtir efeito, já que, hoje, não há aquele terrorismo.

A justificativa do Governo é de que o princípio da doação presumida não estava sendo cumprido, pois o Conselho Federal de Medicina orientou os médicos a consultarem as famílias a esse respeito. Assim, a medida provisória estaria apenas legalizando aquilo que já ocorria na prática.

Eu questiono a eficácia dessa medida provisória. Por que não se deu mais tempo à sociedade para se acostumar com esse princípio?

Também vemos estatísticas das mais estapafúrdias, dizendo que o número de doadores diminuiu. Mas diminuiu em relação a quê? Mesmo que as estatísticas divulgadas estivessem certas - e não estão -, de que 70% das novas carteiras de identidade teriam recebido a inscrição “não doador”, teríamos um aumento brutal de doadores, porque isso significaria que 30% teriam optado por fazer a doação. Quantos doadores oficiais existiam antes no Brasil? Quantas pessoas foram ao cartório fazer uma declaração intitulando-se doadoras? Um número absolutamente não representativo da população. Além disso, as informações recentes são de que, a partir do momento em que houve a campanha de esclarecimento, o número de pessoas que optam pela doação está-se aproximando a passos largos dos 75% favoráveis à lei e à doação, detectados nas pesquisas.

Lamento que o Governo tenha encaminhado essa medida provisória, não só pelo mérito da lei - porque continuo absolutamente convencido de que, se houvesse esclarecimento da população e empenho do Executivo, ela iria “pegar”, ao contrário do que se previa -, mas também pela atitude governamental de desconhecer o Congresso Nacional.

Repito que essa lei mereceu amplo debate nesta Casa e na Câmara dos Deputados. Já existiam, e foram amplamente divulgados, dois projetos de lei, de iniciativa de dois Deputados de diferentes Partidos, que propunham modificá-la, retirando o princípio da doação presumida. Assim, por que o Governo não aguardou o posicionamento do Congresso Nacional, por meio desses dois projetos de lei? Se o Congresso deliberasse pela modificação, poderia fazê-lo, na sua prerrogativa constitucional. Mas o Governo, como sempre, adotou o caminho mais rápido e autoritário, desconhecendo a existência do Congresso Nacional.

Não é verdade que o Governo não soubesse da existência dessas iniciativas, porque isso foi amplamente divulgado. O Deputado Paulo Paim, do meu Partido, encaminhou esse projeto e estava coletando assinaturas para que fosse votado em regime de urgência na Câmara. Mas o Ministério da Saúde optou pela medida provisória.

Lamento, pois entendo que a lei não se resume ao princípio da doação presumida, e o que o Governo deveria ter feito ele não fez. Se houve uma crítica procedente à lei por setores da sociedade médica, foi a de que ela não estabelece a obrigatoriedade para que a doação inter vivos aconteça apenas entre parentes, para evitar a comercialização de órgãos - o que, aliás, já ocorreu no País, como verificamos em anúncios nos jornais. Ocorre que essa falha na lei não é culpa do Congresso Nacional. O projeto aprovado no Senado Federal estabelecia claramente em um artigo que a doação inter vivos só poderia ser feita entre parentes. Mas o Governo vetou esse artigo.

Se o Governo queria aprimorar a lei, aí sim, poderia fazê-lo por medida provisória - porque esse tipo de doação constava originariamente da lei e o Governo o vetou. Poderia ter sido encaminhada uma medida provisória restabelecendo esse artigo que o Governo, de forma absurda, vetou. Esse ponto, que realmente poderia contribuir para que a lei retomasse a sua redação original, ele não aprimorou; preferiu optar por retirar o princípio da doação presumida.

Repito: infelizmente, o Ministro José Serra, do PSDB, do Partido do Senador Lúcio Alcântara, não atendeu ao apelo, feito deste plenário por S. Exª, para que aguardasse um pouco mais antes de modificar a lei.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 09/10/1998 - Página 13479