Discurso no Senado Federal

COMENTARIOS SOBRE O ARTIGO 'RITO DE PASSAGEM', DE AUTORIA DOS SENHORES ORLANDO FARIA E PINDUCA RODRIGUES, PUBLICADO NO JORNAL A CRITICA, DE MANAUS, SOBRE A NECESSIDADE DA VALORIZAÇÃO DA ETNIA INDIGENA E SEUS COSTUMES PELA SOCIEDADE E PELO ESTADO.

Autor
Bernardo Cabral (PFL - Partido da Frente Liberal/AM)
Nome completo: José Bernardo Cabral
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INDIGENISTA.:
  • COMENTARIOS SOBRE O ARTIGO 'RITO DE PASSAGEM', DE AUTORIA DOS SENHORES ORLANDO FARIA E PINDUCA RODRIGUES, PUBLICADO NO JORNAL A CRITICA, DE MANAUS, SOBRE A NECESSIDADE DA VALORIZAÇÃO DA ETNIA INDIGENA E SEUS COSTUMES PELA SOCIEDADE E PELO ESTADO.
Aparteantes
Romeu Tuma.
Publicação
Publicação no DSF de 29/10/1998 - Página 14665
Assunto
Outros > POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, AUTORIA, ORLANDO FARIAS, PINDUCA RODRIGUES, JORNALISTA, PUBLICAÇÃO, JORNAL, A CRITICA, ESTADO DO AMAZONAS (AM), ASSUNTO, SITUAÇÃO, INDIO, REGIÃO AMAZONICA, AUMENTO, EXERCICIO, CIDADANIA, OBJETIVO, EMANCIPAÇÃO.
  • APOIO, PROVIDENCIA, GOVERNO FEDERAL, GARANTIA, PRODUÇÃO, REPRODUÇÃO, CULTURA, PATRIMONIO INDIGENA, DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS.
  • REGISTRO, INICIATIVA, INDIO, INTEGRAÇÃO, SOCIEDADE CIVIL, PROJETO, DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL, AMBITO, TURISMO, EXPLORAÇÃO, RECURSOS NATURAIS.

O SR. BERNARDO CABRAL (PFL-AM. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não precisa ser 19 de abril para que a Nação brasileira evoque em seu calendário comemorativo a figura do índio como o grande herói nacional. Qualquer data é válida para demonstrar que uma viagem ao território indígena comprova a evolução que permite às suas comunidades assumirem o seu próprio destino e desenvolvimento.  

Essas considerações que trago à reflexão da mais Alta Casa Legislativa do País, têm, como ponto de partida, a série de reportagem intitulada "Rito de Passagem", de autoria do jornalista Orlando Farias e Pinduca Rodrigues, e publicadas no jornal A Crítica , de Manaus.  

Devidamente autorizado por esses dois profissionais, sirvo-me do trabalho de ambos não só como fontes de informação, mas também como pretexto para admitir, de uma vez por todas, que não se trata mais de associar o índio a um emblema do passado patriótico ou a um símbolo da história dos derrotados, a quem se deve apenas prestar homenagens melancólicas, burocratizadas e enfadonhas. Ao contrário do que muitas vezes se propaga, o índio brasileiro não virou peça mumificada de museu, nem tampouco se reduziu a mero objeto de piedade, pesquisa ou consumo pelos ditos brancos colonizadores.  

Pelo menos é assim que a Amazônia percebe a incorporação da etnia, dos costumes e da cultura indígena no dia-a-dia da região do País. Pois é das sociedades indígenas na Amazônia que se observa hoje, extraordinariamente, o surgimento de novos movimentos de emancipação, exibindo uma mentalidade mais madura e realista, bem como novas práticas sociais e econômicas de auto-sustentação. Como bem estampam os jornais e as revistas etnológicas, o índio da Amazônia se prepara para inverter sua condição de ente social passivamente dominado para uma outra mais libertária, com a qual possa, soberanamente, determinar os parâmetros de vida para sua gente, para seu futuro. Nessa linha, não podemos classificar essa nova etapa senão como um marco de ruptura com a subjugação, um verdadeiro rito de passagem em direção à aguardada emancipação.  

Sr. Presidente, longe de buscar inspiração no prosaico romantismo da literatura nacionalista de José de Alencar, deve o Brasil de hoje assumir de vez sua identidade indígena e, dessa forma, adotar sim postura de orgulho. Por isso, Estado e sociedade devem, juntos, reconhecer seu compromisso, não com o culto esvaziado do Guarani de vitrine - para estrangeiro ver -, mas sim com os valores, os costumes e, sobretudo, com a sabedoria e a visão de mundo extraídas da rica diversidade silvícola. Para tanto, faz-se necessário tomar medidas políticas que assegurem não só a sobrevivência, mas também as condições plenas de auto-sustentação das aldeias e tribos que ainda restam no País. E, bem a propósito, a equipe do Presidente Fernando Henrique tem tido corajosamente o mérito de ter implementado os primeiros passos rumo a uma relação mutuamente mais saudável e democrática com os indígenas brasileiros.  

Agora, convenhamos, Srs. Senadores, isso não tem sido tarefa fácil no Brasil, pois tradicionalmente nossos governos têm transgredido toda e qualquer legislação que ouse sugerir proteção aos direitos culturais e territoriais de nossos índios. Se até pouco tempo atrás a tese do genocídio perpetrado sobre os nativos brasileiros se sustentava como forma de ocupação tipicamente colonialista, hoje não existe legitimidade moral admissível no Ocidente que justifique a continuidade do processo de extermínio que, aqui e acolá, ainda teima em perdurar. A comunidade internacional - representada seja pelos governos que integram a ONU, seja pelas organizações não-governamentais que atravessam múltiplas fronteiras - cobra de seus filiados uma ética impecável no cumprimento das normas que regem os direitos humanos.  

O Brasil está consciente desse compromisso e, desde o pronto restabelecimento de suas instituições democráticas ao final dos anos oitenta, tem reunido esforços no sentido de garantir, na teoria e na prática, a produção e a reprodução das culturas autóctones no território brasileiro. Prova disso é que, graças às últimas intervenções no assunto por parte do governo do Presidente Fernando Henrique - por intermédio das atuações do Ministério da Justiça e da Funai -, questões cruciais, como é o caso das demarcações, estão sendo paulatinamente resolvidas. Na Amazônia, pelo menos, o cronograma dos processos demarcatórios segue ritmo previsto pela Funai em seu planejamento inicial.  

Sr. Presidente, por outro lado, o que se nota é que as próprias sociedades indígenas contestam o rótulo de entidades "naturalmente" passivas e alavancam processos socialmente dinâmicos em busca de autonomia econômica e política. Em vez de adotarem posturas de inibição, de resignação ou mesmo de tímida resistência diante da prepotência branca, partem euforicamente para o estado de emancipação com iniciativas que visem, ao mesmo tempo, maior integração com a sociedade envolvente e menor dependência das forças hegemônicas. Na verdade, com projetos que exploram a atividade econômica via mercado turístico, os índios brasileiros propõem não somente integração mas também concorrência com outros setores da economia do País.  

Na Amazônia, o panorama não poderia ser diferente, já que é naquele ambiente de densa floresta tropical que se concentra grande parte dos índios brasileiros. Segundo o antropólogo Ademir Ramos, assessor do Conselho Estadual dos Índios, estima-se que o processo produtivo auto-sustentado já tenha mobilizado 20% das tribos na Amazônia, especialmente aquelas localizadas no Alto Rio Negro. É lá que o Instituto Sócio-Ambiental, o ISA, de São Paulo, vem investindo anualmente cerca de US$500 mil, após ter comprovada a consumação do processo demarcatório na área.  

O Sr. Romeu Tuma (PFL-SP) - Permite-me V. Exª um aparte?  

O SR. BERNARDO CABRAL (PFL-AM) - Senador Romeu Tuma, já lhe cedo o aparte porque vou chegar a um tempo que V. Exª conhece bem. Por isso, eu pedir-lhe-ia um minuto da sua atenção.  

Mais do que isso, todos os empreendimentos levados a cabo pelos povos indígenas na Amazônia estão sendo implantados mediante exploração dos recursos naturais das reservas, seguindo com rigor procedimentos considerados ecologicamente corretos. Quem garante é o Vice-Governador da Federação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, Cláudio Moura, que reforça a tese segundo a qual não existe alguém mais interessado em preservar intacta a floresta amazônica do que os próprios índios.  

No caso do Alto Rio Negro, cuja população silvícola corresponde a 90% da demografia local, as vinte e três etnias se dedicam, hoje, à exploração do chamado turismo indígena, que, basicamente, consiste em exibir costumes e festas ritualísticas. Trata-se, a bem da verdade, de um típico caso em que se verificaram drásticas mudanças na estrutura econômica, com ganhos significativos no sistema social e cultural. Para que isso ocorresse, obviamente, foram necessários ajustes prévios, como a garantia da demarcação das terras, cuja pronta efetivação proporcionou em tempo a expulsão das centenas de garimpeiros invasores da área.  

Concedo o aparte, com muita honra, a V. Exª, Senador Romeu Tuma.  

O Sr. Romeu Tuma (PFL-SP) - Senador Bernardo Cabral, quando V. Exª fala sobre a Amazônia - e o faz sempre na defesa dos interesses do seu Estado e dos interesses nacionais -, eu, queira ou não, presto atenção e me encanto com seus pronunciamentos. Ontem, assisti pela televisão, no programa "Leão Livre", do Gilberto Braga, a uma discussão entre uma comunidade indígena e um membro da Funai, que tratava de acusações contra um deputado que teria estimulado a prática da laqueadura nas índias. Mudei de canal e, para minha felicidade, sintonizei em um canal de televisão cultural - com esses programas variados que temos, agora, não nos lembramos do canal e nos prendemos mais ao assunto - e fiquei mais de hora vendo as imagens da região amazônica. É interessante observar que visualizo em seu pronunciamento praticamente o mesmo que vi nas imagens que a televisão apresentava. A repórter estava encantada com tudo aquilo, com aquelas marchas pelo meio da floresta, e encontrou e colocou para ser ouvido o idealizador do método cooper de ginástica. Ele dizia que estava com o filho e que era um período de encantamento estar na região amazônica, com as comunidades indígenas. Disse ele: "Eu me senti feliz e encantado até com a torrencial chuva que sofremos há pouco." Até a chuva encantava na Amazônia. Senti a presença dos indígenas até pela sua caneta, quando V. Exª determinou que para aquelas regiões eu fosse e acompanhasse de perto, em nome do Ministério da Justiça, as demarcações das terras indígenas. Conversei com as comunidades nas nossas primeiras idas e V. Exª sabe que enfrentávamos algumas dificuldades por causa da reação dos plantadores de coca na região, contra o trabalho determinado por V. Exª. Na segunda viagem, na Operação Neblina, V. Exª determinou que fôssemos acompanhados por dentistas, médicos e tudo aquilo de que as comunidades precisavam para restabelecer a presença da autoridade brasileira em detrimento do crime organizado, que já avançava naquela região. Desculpe-me pela interrupção do seu discurso, mas não poderia deixar de dar este testemunho, até pelo encantamento que senti ontem, por casualidade. Deus me destinou a assistir à televisão e a ouvir o que V. Exª transmite nas suas palavras, na sua poesia e no encantamento dessa região tão bonita, que nós dois amamos tanto.  

O SR. BERNARDO CABRAL (PFL-AM) - Senador Romeu Tuma, V. Exª, de forma induvidosa, coloca-se naquela situação entre les deux mon coeur balance . Não sei se V. Exª tivesse nascido no Amazonas fosse mais amazonense do que é. E digo isso por conhecimento de causa. Sabe V. Exª que, no meu curriculum vitae, uma das coisas que registro com muito carinho é ter sido seu amigo àquela altura, continuando agora, como companheiro de trabalho.

 

O que brota desse aparte é uma espécie de chuva de carinho, e chuva amazônica é coisa muito séria. Quando ela cai, espalha aquela folharada úmida pelo chão e fica um dia, assim, que é capaz de pôr teias de aranha na alma. E isto V. Exª faz com muita habilidade.  

O Sr. Romeu Tuma (PFL-SP) - E a beleza da moça brincando com o boto cor-de-rosa, que não tive a chance de ver mas cujo bailado causou encantamento nos estrangeiros que apreciavam aquela beleza.  

O SR. BERNARDO CABRAL (PFL-AM) - Mas, Senador Romeu Tuma, não chega a ser tão forte quanto o encantamento do seu aparte. Fique certo de que - e isto ocorre com qualquer colega Senador - quando tenho a alegria, para não dizer a honra, de ouvi-lo, faço-o sempre com muito carinho, de modo que não preciso nem dizer ao eminente Senador Ronaldo Cunha Lima, que preside esta sessão, que este aparte está devidamente incorporado ao meu discurso. Eu temia que ele não tivesse brilho e V. Exª o completa, trazendo para o seu interior a sua interferência.  

Como bem sintetiza o cacique tucano, Benedito Machado, que coordena - veja V. Exª a diferença daquela dificuldade que o Senador Romeu Tuma teve quando chefiava a Polícia Federal - a implantação de um garimpo de ouro no rio Traíra, "somos, agora, patrões de nós mesmos". Ao retomarem o controle da garimpagem na área, os índios do Alto Rio Negro logo se serviram de técnicas e tecnologias ambientais emprestadas dos europeus, por meio das quais espetacularmente reverteram a correspondência tradicionalmente formulada entre garimpagem e depredação ambiental. No lugar do vilão do meio ambiente, o garimpo, nas mãos do índios, torna-se a principal fonte de renda dos Tucanos e de outras tribos amazônicas, como os Baníuas e os Maicongues.  

Contudo, Sr. Presidente, se há algum grupo indígena que mereça destaque especial nessa nova onda emancipatória na Amazônia, vale a pena apontar o caso dos bravos Uaimiri-Atroari, que, de povo covardemente massacrado nos anos 70, transformaram-se, hoje, em senhores absolutos de sua vida, de seu destino. Habitando território calculado em 2,5 milhões de hectares entre Roraima e o Estado do Amazonas, os Uamiri-Atroari ocupam atualmente o gigante espaço verde com atividades economicamente diversificadas. Mas, para espanto de muitos, praticamente se sustentam mediante a extração de vultosos recursos financeiros oriundos de fontes bem menos convencionais. Refiro-me às indenizações justamente recebidas por conta de três diferentes e nocivos projetos, cujo impacto se mostrou devastador em suas terras: primeiramente, a construção da barragem de Balbina; depois, a exploração indevida de cassiterita: e, por fim, a pavimentação da BR-174.  

Dessa forma, os Uaimiri puderam sair, bravamente, da ameaça de extinção para uma situação "de quase paraíso", pois, para quem se recorda, há dez anos, os Uaimiri-Atroari estavam agonizadamente envolvidos num processo de entropia cultural, social e, acima de tudo, física, sem qualquer perspectiva de vida com muito pouco tempo de contato com os brancos. Desprovidos de qualquer proteção imunológica, estavam fatalmente sujeitos a epidemias de toda sorte, como gripe, sarampo e malária. Sem forças físicas para resistir, os índios naturalmente se desarticularam, acelerando o processo de extermínio, contra o qual o consórcio Funai/Eletronorte teve que rapidamente intervir, implantando o bem-sucedido Programa Uaimiri-Atroari de Saúde.  

Graças ao referido programa de saúde, reverteram seu então miserável destino, investindo os recursos das indenizações em fabulosas cadernetas de poupança, bem como na piscicultura e na criação de gado. Observem, Srs. Senadores, que coisa curiosa! De acordo com o Líder Wamé Viana, a situação de seu povo melhorou sensivelmente, o que tem significado crescente processo de acumulação de bens duráveis, como automóveis e embarcações. Mais do que isso, demonstrando uma rápida capacidade de adaptação aos valores da modernidade, compraram eles, recentemente, ações do programa "Boi Gordo" e agora - vejam V. Exªs - estão por receber as 170 primeiras cabeças de gado.  

Sr. Presidente, em princípio, poderíamos concluir que as condições de vida das sociedades indígenas na Amazônia se situam em patamar de absoluta prosperidade. No entanto, a generalização sempre incorre em equívocos de graves conseqüências políticas. Não! O panorama mudou, mas não garante em si a solução dos problemas que afligem os índios da minha região. As lamentações dos Ianomani, dos Macuxi, dos Maué, dos Tucanos, dos Taurepangue, dos Ingaricó, dos Uapichana e de muitos outros povos da Amazônia não são vazias de conteúdo, nem tampouco de incontestável autoridade pontuada pela árdua realidade local. Tudo procede com devida legitimidade, porque se baseia em séculos de perseguição e massacre. Para que a história brasileira resgate, em definitivo, sua altivez, cumpre ao País dar continuidade ao processo de emancipação dos povos indígenas, provendo condições políticas e econômicas dignas para o alcance da plena integração com o Brasil.  

Tenho certeza de que o Senador Ronaldo Cunha Lima, que, na qualidade de 1º Secretário do Senado, encontra-se no exercício da Presidência desta sessão, há de ser o primeiro, juntamente conosco que compomos a Bancada da Amazônia, a desfraldar a bandeira em defesa do índio brasileiro.  

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.  

Muito obrigado.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/10/1998 - Página 14665