Pronunciamento de Abdias Nascimento em 18/11/1998
Discurso no Senado Federal
HOMENAGEM A ZUMBI DOS PALMARES. TRANSCURSO, DIA 20 DE NOVEMBRO, DO DIA DA CONSCIENCIA NEGRA.
- Autor
- Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
- Nome completo: Abdias do Nascimento
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
HOMENAGEM.
ATUAÇÃO PARLAMENTAR.:
- HOMENAGEM A ZUMBI DOS PALMARES. TRANSCURSO, DIA 20 DE NOVEMBRO, DO DIA DA CONSCIENCIA NEGRA.
- Publicação
- Publicação no DSF de 19/11/1998 - Página 16271
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM. ATUAÇÃO PARLAMENTAR.
- Indexação
-
- HOMENAGEM, DIA NACIONAL, VULTO HISTORICO, OPORTUNIDADE, COMEMORAÇÃO, CONSCIENTIZAÇÃO, NEGRO.
- ANALISE, HISTORIA, PERSONAGEM ILUSTRE, LUTA, FAVORECIMENTO, EXTINÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, NEGRO, BRASIL.
- COMENTARIO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, COMPENSAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, NEGRO, HISTORIA, BRASIL, FACILITAÇÃO, RECURSO JUDICIAL, AÇÃO CIVIL PUBLICA, CRIAÇÃO, PREMIO, HOMENAGEM, CRUZ E SOUSA, POETA.
O SR. ABDIAS NASCIMENTO
(Bloco/PDT-RJ) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de olorum, inicio este pronunciamento.
Tomado de emoção e orgulho cívico, assumo hoje esta tribuna para prestar minha homenagem ao maior herói da luta pela justiça e a liberdade neste País. Ao homem cuja trajetória de coragem, determinação e sacrifício o transformou no paradigma de todos os brasileiros que, embora compondo a imensa legião dos excluídos, dos discriminados, dos destituídos, não obstante se recusam a assumir o papel de inferiores a eles destinado por uma elite parasitária e insensível. Refiro-me ao grande Zumbi dos Palmares, líder de uma comunidade guerreira que se constituiu no mais dignificante exemplo da luta contra a escravidão imposta aos africanos nas Américas.
20 de novembro é o Dia da Consciência Negra. Minha consciência evoca minha infância e juventude - e lá se vão tantas décadas. A edulcorada História do Brasil que se ensinava nas escolas nem sequer mencionava a epopéia de Palmares, limitando-se a descrever os quilombos como "valhacouto de negros fugidos", na expressão até hoje registrada em nosso mais importante dicionário. Privava-se, desse modo, as crianças brasileiras, de todas as cores e origens, de conhecer não apenas a figura heróica de Zumbi, mas toda a saga de crueldade e revolta, suplício e redenção, sofrimento e bravura que se desenrolou nos quase quatro séculos de escravidão negra no Brasil. Contribuiu-se, desse modo, e decisivamente, na construção do mito da docilidade dos negros, supostamente conformados - e quem sabe até agradecidos - ante a dominação européia, exercida em nome da civilização e do cristianismo.
Na verdade, a falsificação da História do Brasil fazia parte, como continua fazendo, de um processo mais amplo de perversão intelectual, iniciado em fins do século XVIII, com o propósito de justificar a escravização de africanos e a transformação de seu continente numa colcha de retalhos a ser pilhada e saqueada pelos cúpidos interesses europeus. Até então, a Europa conhecia a História da África. Sabia, em primeira mão ou graças ao relato de fascinados cronistas árabes, de seus reinos e impérios, de cidades fabulosas em que se vendiam livros a peso de ouro e sal, de reis poderosos comandando exércitos irresistíveis. Gana, Mali, Songhai, Kanem-Bornu - nomes que despertavam curiosidade, cobiça... e medo. Os mesmos sentimentos experimentados, nos primórdios da História, pelos hebreus e pelos gregos, cujo imenso débito secularmente acumulado em seu contato com a civilização africana do Egito jamais se poderá quitar, pois que nele se incluem os próprios fundamentos científicos, filosóficos e religiosos da civilização ocidental. O fato de tudo isso parecer hoje fantasioso e irreal demonstra o sucesso desse infame empreendimento. Mas, como já se disse, não é possível enganar todo mundo o tempo todo.
A redução de africanos à condição de escravos e sua maciça transferência forçada para o Novo Mundo constitui terreno fértil para os falsários da História, travestidos de cientistas e abrigados sob pomposos títulos acadêmicos. Ainda ontem, era comum encontrar, em nossos livros didáticos, referências a uma suposta "docilidade" dos africanos, que teriam aceito quase passivamente a escravidão. Se isso fosse verdade, como seria possível explicar os cruéis instrumentos de tortura empregados pelos escravagistas para garantir tal "docilidade"? Na verdade, a história da presença africana no Brasil é uma história marcada, de maneira indelével, pela resistência ao escravismo, manifesta de todas as formas possíveis: desde o suicídio e o infanticídio - pessoas matavam os filhos para que estes não crescessem como escravos -, passando pela pura e simples fuga, até a revolta organizada contra todo um sistema. Quase todas essas formas de resistência ocorreram onde quer que tenha havido africanos escravizados. Uma delas, porém, teve no Brasil os seus exemplos mais brilhantes. Refiro-me à resistência organizada, da qual os quilombos constituem a mais relevante manifestação em todo o continente.
Reza a História que os primeiros africanos chegaram ao Brasil já nas décadas iniciais da colonização portuguesa, trazidos para as lavouras de cana-de-açúcar que começavam a pontilhar o litoral, desde São Vicente (atual São Paulo) até o Recife. Não se está falando, evidentemente, dos muitos africanos que faziam parte das tripulações dos navios exploradores europeus, tampouco daqueles que, segundo nos mostram numerosos registros arqueológicos, estiveram na futura América muito antes de Colombo. Falamos somente dos que foram arrancados à força de sua terra natal e trazidos para uma terra estranha, sob o jugo do crudelíssimo imperialismo português. É significativo, portanto, que já em princípios do século XVI um destacamento do exército colonial português tenha descoberto na região que chamaram de Palmares, na serra da Barriga, interior da Capitania de Pernambuco, área que hoje pertence ao Estado de Alagoas, um agrupamento organizado de negros fugidos da escravidão. Tão organizado que conseguiu derrotar os soldados portugueses, obrigados a fugir para salvar a pele. O relato por estes produzido provocou calafrios na elite fundiária que governava a Colônia. Seus piores pesadelos se haviam concretizado.
Para apreendermos plenamente o que isso significava, é necessário entender o que representava a escravidão na vida da Colônia. Não se tratava da escravidão do mundo antigo, a que todos os povos um dia se viram submetidos. A nova escravidão, introduzida com o mercantilismo, constituía a base, o esteio de todo um modo de produção que se estava implantando no Novo Mundo. Desse modo, toda a economia de Pernambuco - como, de resto, de toda a Colônia - dependia da exploração da mão-de-obra africana. Isso, se por um lado produzia grande fausto e riqueza, ao mesmo tempo sustentava um sistema profundamente desigual e injusto, em que essa mesma riqueza se concentrava nas mãos de pouquíssimos, enquanto até mesmo os brancos pobres sobreviviam em meio à fome e à miséria. Afinal, a região sequer produzia alimentos para sua população, apenas cana-de-açúcar para atender à demanda externa. Os ricos não se importavam com isso, de vez que consumiam alimentados importados de Portugal e de outras colônias. O descaso que manifestavam quanto à sorte de seus compatriotas - para não falar dos africanos, aos quais sequer reconheciam a humanidade - ficaria marcado na mentalidade das elites brasileiras, que desde então se acostumaram a desprezar os excluídos de qualquer origem.
Ao primeiro contato militar com Palmares, seguiram-se dezenas de outros. Mais de 30, assinalam os registros históricos, em cerca de 90 anos. Na maioria deles, os portugueses foram rechaçados. Como explicar essa resistência dos palmarinos, senão reconhecendo a extraordinária capacidade de organização militar de seu povo? Sua tática era a mesma dos resistentes de todos os tempos: a guerrilha. Fugir antes da chegada de seus perseguidores, embrenhar-se no mato e emboscá-los, para depois desaparecer na selva. Quando necessário, todos eram mobilizados, inclusive as mulheres, cuja "ferocidade" provocava surpresa entre os portugueses, acostumados a relegar suas mulheres às tarefas domésticas.
Foi assim, em meio a uma guerra constante, enfrentando portugueses e holandeses - que chegaram a celebrar uma trégua apenas para poderem ter melhor condição de derrotá-los -, que os palmarinos conseguiram prosperar e expandir seu território, dividido entre os diferentes "mocambos" que o constituíam. O pouco que se sabe sobre esse povo guerreiro indica que vivia uma vida simples, mas digna. Muito melhor, com toda a certeza, do que a maioria dos súditos portugueses. A agricultura, praticada com as técnicas milenarmente conhecidas na África, que incluíam a rotação de culturas, produzia uma fartura de legumes, verduras e frutas, muitas vezes comercializados com fazendeiros vizinhos - o que motivou a promulgação de um decreto proibindo esse comércio. Lembremo-nos de que Palmares não praticava a monocultura de exportação...
Embora forçada pelas circunstâncias a viver num clima de guerra constante, a sociedade palmarina, segundo os parcos relatos disponíveis, era caracterizada por uma convivência extraordinariamente democrática para os padrões da época - em especial, quando se considera o autoritarismo exacerbado e a violência institucional que marcavam a vida na Colônia. Prova disso é a atração que Palmares exercia não apenas sobre negros, mas também sobre índios e até sobre brancos, estes últimos refugiados dos maus-tratos e da fome a eles reservados pelo sistema colonial. Registra-se que, no seu apogeu, Palmares podia ser descrita como uma sociedade multirracial em que os não-negros representavam cerca de 20 por cento da população. Não consta que fossem desprezados ou discriminados.
O crescimento do que viria a ser conhecido como a República de Palmares e a aparente impossibilidade de derrotá-la militarmente acabou levando o governador Pedro de Almeida, em 1678, a propor um pacto com os palmarinos, então liderados por Ganga Zumba, conhecido como o "mestre dos mestres da guerra". Aceitando a paz com os brancos, Ganga Zumba receberia o posto de oficial do exército português. Em contrapartida, ele e seus homens se comprometeriam a caçar pessoalmente os escravos fugidos e entregá-los aos antigos donos. O "sim" de Ganga Zumba ao governador português provocou uma divisão irreconciliável no quilombo. Muitos guerreiros consideraram seu gesto uma traição, à frente deles um jovem de nome Zumbi. Ganga Zumba acabaria morrendo por envenenamento, outra técnica milenarmente desenvolvida em solo africano e transplantada para as Américas, onde haveria de fazer muitas vítimas entre os senhores de escravos e suas famílias.
Zumbi viera à luz em Palmares, no ano de 1655, logo após a expulsão dos holandeses de Pernambuco. Capturado, ainda bebê, por uma expedição enviada pelo governador Francisco Barreto, fora entregue ao padre Antônio Melo, na vila de Porto Calvo, que servia de base de operações contra o quilombo. Desde cedo, o menino, batizado de Francisco, revelara dotes de grande inteligência. Aprendeu a ler e a escrever, e se tornou coroinha, privilégios quase inatingíveis para alguém de sua origem - ainda mais se considerarmos que quase todos os senhores de escravos eram analfabetos. Tudo isso, porém, não foi suficiente para lhe comprar a alma. Pode-se imaginar a surpresa do benevolente padre Melo quando Francisco, aos 15 anos, atendendo aos apelos mais fortes de seu coração africano, fugiu de Porto Calvo em demanda de Palmares. Morria Francisco e nascia Zumbi.
Com a morte de Ganga Zumba, o jovem Zumbi se viu guindado à posição de líder do quilombo. Foi nessa condição que, em 1670, recebeu do novo governador da Capitania, Aires de Sousa e Castro, a mesma oferta antes feita a Ganga Zumba: "perdão" e liberdade, para ele e para os seus. Em troca, a traição à causa. Vendo sua oferta peremptoriamente recusada, o governador foi obrigado a reconhecer que só havia uma forma de dobrar Zumbi: derrotando-o militarmente. E só um homem seria capaz de fazê-lo. O governador enviou seus emissários em busca do paulista Domingos Jorge Velho.
Em nossos livros de História, os bandeirantes são apresentados como figuras respeitáveis, de longas barbas, em trajes vistosos, botas de cano alto, a quem devemos a expansão do território brasileiro para muito além dos limites definidos pelo Tratado de Tordesilhas. Apenas parte disso é verdade. Com efeito, os bandeirantes eram uma gente rude e sanguinária, cuja menção não evocava admiração e respeito, mas sim temor e desprezo. Sujos, descalços e cobertos de andrajos, dedicavam-se à ignóbil atividade de "prear" - que significa caçar - índios e negros fugidos da escravidão. Filhos de homens portugueses e mulheres indígenas, e portanto mamelucos, cumpriam fielmente o papel de sabujos do colonialismo português. Modelos, portanto, do tipo de miscigenação mais tarde apresentado como o ideal de uma suposta civilização luso-tropical.
Domingos Jorge Velho era, talvez, o mais acabado protótipo dessa espécie de lixo humano. O mais indicado, portanto, para a difícil tarefa de derrotar Zumbi. Aceita a empreitada, não perdeu tempo. Enquanto reunia o maior exército que o Brasil já conhecera, constituído principalmente de mamelucos, tratou de montar uma infra-estrutura bélica formidável para a época, graças aos recursos disponibilizados por um governo que sabia estar jogando uma cartada decisiva. Ainda, os quilombolas, confirmando sua tradição guerreira, souberam vender caro a derrota. Foram necessárias muitas investidas, e algumas derrotas, para que o exército de Domingos Jorge Velho conseguisse penetrar no quilombo do Macaco, maior e mais importante mocambo, impregnando o solo da serra de sangue africano. Era setembro de 1694.
Zumbi, contudo, não fora capturado. Junto com um punhado de seus homens, embrenhara-se no mato, em refúgio seguro, buscando recobrar as forças, reorganizar-se e contra-atacar. E talvez conseguisse fazê-lo, não fosse um capricho da sorte. Um ano depois, em setembro de 1695, o mulato Antônio Soares, que chefiava um destacamento de Zumbi, foi capturado e, submetido às mais cruéis torturas, obrigado a trair seu chefe, escondido numa garganta próxima à cachoeira do rio Paraíbas, na serra dos Dois Irmãos. A brava resistência foi inútil diante de um inimigo muito superior em número e armas. A 20 de novembro de 1695, Zumbi dos Palmares foi decapitado e esquartejado, num ritual sangrento característico da civilização que os portugueses implantaram nos trópicos, cujas memórias se reavivam a cada chacina policial de nossos dias.
A derrota de Palmares não foi, porém, o fim dos quilombos, que se multiplicaram como cogumelos por todas as regiões do Brasil, onde quer que houvesse negros em número suficiente para se organizar e lutar por sua liberdade. O mesmo espírito dos quilombos esteve presente também nas várias insurreições ocorridas na Bahia, lideradas por africanos de origem nagô, que vieram a ser conhecidas como Revoltas dos Malês, assim como motivou a chamada Revolta dos Búzios, ou Conjuração Baiana, movimento popular, a ferro e fogo reprimido, que - diferentemente da Conjuração Mineira - associava as bandeiras da independência e da abolição da escravatura.
Hoje, 303 anos transcorridos desde o assassinato de Zumbi, os descendentes de africanos no Brasil continuam subjugados por um sistema que os oprime, humilha e exclui. Ainda esta semana, a Folha de S. Paulo publicava reportagem, baseada em dados do IBGE, mostrando, entre outros índices de desigualdade racial, que a mortalidade infantil é muito maior para negros do que para brancos no Brasil. Isso, infelizmente, apenas reitera e quantifica as denúncias do Movimento Negro - engrossadas nos últimos anos pelos mais renomados organismos internacionais, como a ONU e a OEA - que apontam este País como um dos campeões do racismo e da discriminação em nível mundial. Muito longe, como se vê, da fantasiosa imagem, construída durante décadas por ideólogos oficiais - todos brancos -, que pintavam o Brasil nas cores triunfalistas de uma "democracia racial".
O trabalho de denúncia e conscientização realizado pelo Movimento Negro tem tido eco neste Congresso, graças à atuação de uns poucos parlamentares negros - dentre os quais tenho a honra de me incluir - cuja atuação revela seu compromisso com a causa de Zumbi. No meu caso, trata-se esse de um compromisso assumido ainda nas primeiras décadas deste século, e que se transformaria na verdadeira bússola que tem orientado, desde então, toda a minha existência. Em função dele, participei, nos anos 30, da gloriosa Frente Negra Brasileira, maior e mais importante organização afro-brasileira deste século. Foi também ele que me orientou na criação, em 1944, do Teatro Experimental do Negro, que buscava o resgate do legado africano no Brasil, montando peças de conscientização e organizando eventos históricos como a Convenção Nacional do Negro, em 1945, e o I Congresso Afro-Brasileiro, em 1950.
Obrigado a deixar o País, em 1968, devido à perseguição movida pelo regime militar, pude constatar, em mais de uma década de exílio nos Estados Unidos e na África, o quanto prosseguiam válidas aquelas idéias que sempre me haviam norteado. Assim, se o exílio me enriqueceu no contato direto com novas teorias e estratégias da luta negra, em plano internacional, também me serviu para reafirmar a certeza do papel preponderante a ser desempenhado, nesse contexto, pelo povo e a cultura afro-brasileiros.
Ao assumir pela primeira vez uma cadeira neste Senado, substituindo o Senador Darcy Ribeiro, então convocado pelo Governador Leonel Brizola a conduzir o pioneiro Programa de Educação Especial no Rio de Janeiro, propunha-me cumprir meu mandato "com honradez e dignidade, lutando pelas causas do meu povo afro-brasileiro, que são as causas da nossa Nação". Hoje, perto do fim desse mandato, considero ter cumprido minha missão. Conquanto não tenha conseguido romper definitivamente as barreiras que se interpõem ao avanço dos afro-brasileiros na mais alta Casa Legislativa do País, pude com certeza abrir caminhos, dobrar intransigências, esclarecer incompreensões e multiplicar alianças para a causa negra, facilitando a tarefa de meus companheiros e sucessores.
Foi nessa visão que apresentei, logo após assumir definitivamente a vaga deixada no Senado com o falecimento do saudoso Darcy Ribeiro, minha primeira iniciativa nesta Casa, o Projeto de Lei do Senado No. 52, de 1997, que definia e tipificava a prática do racismo e da discriminação e punia os crimes dela resultantes. O objetivo era substituir a Lei 7.716, que havia regulamentado o princípio constitucional da Carta de 1988, definindo o crime de racismo como inafiançável e imprescritível. Nesse caso, não fui movido, como imaginaram alguns, pelo motivo fútil de ver meu nome associado a algum instrumento legal, mas sincera intenção de aperfeiçoar uma legislação cujas deficiências podem ser dolorosamente constatadas, na prática, por quem a ela recorre. O projeto está aguardando parecer do relator, mas espero que, no pior dos casos, possa ser útil a futuros legisladores interessados no assunto.
O Projeto de Lei do Senado que apresentei a seguir, o de No. 75, de 1997 - e que, oficialmente, ainda tramita nesta Casa -, visa promover e valorizar a população afro-brasileira, por meio do que chamo de "ação compensatória" - medidas destinadas a compensar a discriminação historicamente sofrida pelos descendentes de africanos neste País, a exemplo do que se tem feito em países tão diversos, do ponto de vista político, social, econômico e cultural, como Estados Unidos, Índia, Israel, Canadá, Nigéria, Malásia, Alemanha e África do Sul, sem esquecer as antigas Iugoslávia e União Soviética. Trata-se este de um tema que tem sido muito discutido nos últimos tempos, mas, em geral, por pessoas desinformadas ou comprometidas - embora nunca o declarem - com os interesses do status quo . Fundamentalmente, o objetivo desse projeto de lei é implementar o princípio constitucional da isonomia, aplicando-o nas áreas do mercado de trabalho e da educação. De que maneira? Obrigando as empresas públicas e privadas a reservarem 20 por cento das vagas em seus quadros funcionais para homens negros e 20 por cento para mulheres negras; reservando para alunos negros 40 por cento das bolsas de estudo em todos os níveis escolares; e alterando os currículos escolares, em todos os graus, para que estes incorporem explicitamente as contribuições dos africanos e seus descendentes em termos de história, ciência, cultura e religião, eliminando ao mesmo tempo as referências preconceituosas e estereotipadas aos negros nos livros didáticos, bem como sua invisibilização. As discussões suscitadas com a apresentação desse projeto de lei na Comissão de Constituição e Justiça desta Casa motivaram o ilustre Senador Pedro Simon a propor a criação de uma subcomissão com o propósito específico de examinar e projeto e propor uma alternativa. Até o momento, contudo, essa subcomissão tem sido atropelada, primeiro pelo calendário eleitoral, depois pela pesada pauta das reformas e do ajuste fiscal, razões pelas quais não concluiu seu trabalho.
Preocupado com a precariedade de acesso dos afro-brasileiros aos instrumentos de defesa legal, apresentei o Projeto de Lei do Senado No. 114, de 1997, que tem como propósito facilitar o recurso à chamada ação civil pública, a qual, atualmente, só pode ser iniciada pelo Ministério Público. Por esse projeto, indivíduos ou entidades da sociedade civil organizada também poderão instaurar ação civil pública com as finalidades de evitar ou interromper atos danosos à honra ou dignidade de grupos étnicos ou religiosos, e de obter a reparação de tais atos, quando não seja possível evitá-los. Dessa maneira, pretende-se dotar esses grupos de um instrumento ágil e eficaz que lhes possibilite enfrentar as manifestações de racismo e discriminação, quer sejam de caráter individual ou coletivo. Outro aspecto importante desse projeto de lei é a criação de um fundo de defesa e combate ao racismo, sustentado pelas indenizações a que possam fazer jus os autores das ações, a ser instituído, até 12 meses após a aprovação e publicação dessa lei. Aprovado em caráter terminativo pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, esse projeto de lei tramita agora na Câmara dos Deputados.
O último dos projetos de lei que apresentei no Senado foi o de no. 234, de 1997, que inscreve - ao lado de Tiradentes e Zumbi - os nomes de João de Deus do Nascimento, Manuel Faustino dos Santos Lira, Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas Torres, líderes da Conjuração Baiana de 1798, no "Livro dos Heróis da Pátria". Revolução articulada nas ruas, entre escravos e libertos, soldados e artífices, o movimento baiano de 1798 teve o objetivo de propiciar aos homens do povo acesso aos postos de trabalho que lhes eram negados por mero preconceito de cor. Em última instância, os revolucionários baianos lutaram pela emancipação dos escravos, perseguindo o ideal da instalação de um governo que não fizesse distinção de raça entre os cidadãos. Sentenciados com a pena de morte, os líderes do movimento foram executados e tiveram seus corpos esquartejados. Como Tiradentes, e também como Zumbi, foram marcados para o sacrifício, como forma de aplacar a fúria da Coroa portuguesa, e demonstraram a bravura dos mártires. O propósito dessa iniciativa é, pois, reparar uma imensa injustiça histórica, promovendo o justo resgate, para a cena brasileira, de um importante episódio da história nacional, no justo momento em que ele comemora 200 anos. Com parecer favorável do ilustre Senador Lúcio Alcântara, esse projeto de lei ainda tramita nesta Casa.
Além dos supracitados projetos de lei, apresentei, em parceria com o ilustre Senador Esperidião Amin, Projeto de Resolução instituindo o Prêmio Cruz e Sousa de Monografia, que acabou aprovado. Tratava-se, aqui, de homenagear aquele que muitos consideram um dos maiores nomes da poesia simbolista universal, cuja biografia constitui um exemplo do gênio e da determinação dos afro-brasileiros em sua luta contra o preconceito e a discriminação. Instituído nas categorias Geral e Estudante, o Prêmio Cruz e Sousa de Monografia obteve pleno êxito, atraindo uma participação a um tempo numerosa e qualificada.
Ao apresentar essas iniciativas no Senado, não tive a pretensão de ser original, nem me travesti com as roupagens de um iluminado. Ao contrário, nelas utilizei o acúmulo de experiências pessoais e coletivas propiciado por uma militância de quase sete décadas em que tive a oportunidade de travar contato com as pessoas e as obras de grande parte dos intelectuais e ativistas da causa negra na África e na Diáspora. Prefiro, desse modo, ser considerado um veículo, um cavalo dos nossos orixás na tarefa de manter acesa a chama e com ela iluminar novos caminhos para a redenção de nosso povo. Assim, neste momento em que se aproxima o fim de meu mandato, quero deixar registrada a prestação de contas deste filho de Zumbi, na certeza de ter envidado o melhor de meus esforços e concentrado o que me resta de energias no propósito de concretizar os generosos ideais de nosso herói maior.
Axé, Zumbi!
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