Discurso no Senado Federal

REFLEXÃO HISTORICA DAS ATROCIDADES CONTRA OS NEGROS NO BRASIL, POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DO DIA NACIONAL DA CONSCIENCIA NEGRA.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • REFLEXÃO HISTORICA DAS ATROCIDADES CONTRA OS NEGROS NO BRASIL, POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DO DIA NACIONAL DA CONSCIENCIA NEGRA.
Publicação
Publicação no DSF de 24/11/1998 - Página 16713
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HISTORIA, ANALISE, ESCRAVATURA, BRASIL, OPORTUNIDADE, COMEMORAÇÃO, DIA NACIONAL, CONSCIENTIZAÇÃO, RAÇA, NEGRO.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no século XVI, com a chegada dos descobridores às terras americanas, iniciou-se a ferro e a fogo a maior migração forçada de toda a história da humanidade. Mais de 3 milhões de negros foram caçados como animais selvagens em suas próprias terras, aprisionados, trazidos à força nos porões infectos dos navios negreiros, vendidos e despejados nas grandes plantações do sul dos Estados Unidos, do Nordeste do Brasil e das Antilhas.  

Apesar de tudo e graças aos esforços dos abolicionistas, as classes dominantes, tardiamente, começaram a reconhecer a necessidade de terminar com a escravidão. Assim, passados mais de dois séculos, durante a guerra da Secessão, em 1865, os Estados Unidos aceitaram admitir o fim da escravidão em suas terras. Em contrapartida, no Brasil, a vergonha da exploração do trabalho humano continuava a todo vapor em plena segunda metade do século XIX. Assim, em 1870, o Brasil era o único país americano que ainda praticava o cativeiro.  

Todavia, entre certos membros esclarecidos das elites brasileiras, ficava cada vez mais forte o sentimento de que os interesses dominantes locais, ou seja, a reprodução em larga escala do capital nacional baseada no trabalho escravo, não estava mais respondendo adequadamente às exigências das novas relações sociais de produção definidas pelos centros internacionais hegemônicos. Portanto, estava ficando cada vez mais evidente que a lógica das relações sociais e econômicas no Brasil precisava mudar logo, pois a manutenção da escravatura estava atrapalhando o desenvolvimento do novo processo de acumulação de capital. O fim do trabalho escravo significaria maior produção, mais produtividade, melhor qualidade e, conseqüentemente, mais lucros em favor da Inglaterra e das outras metrópoles colonialistas. Além disso, era preciso fortalecer as garantias para que o capital pudesse se multiplicar tanto no interior de suas fronteiras de origem quanto nas áreas periféricas das quais o Brasil fazia parte.  

Por esses motivos, a Inglaterra, maior potência do mundo no século passado, tinha como uma de suas maiores preocupações o fim da escravidão. Assim, a diplomacia britânica não perdia a oportunidade em condená-la:  

Nossas colônias não têm mais escravos. Por que outras áreas tropicais haverão de ter? Estamos montando negócios na África. Por que continuar com o tráfico negreiro, que tira nossa mão-de-obra de lá? Além disso, nem a servidão nem a escravidão cabem mais no mundo de hoje. Viva o trabalho assalariado! E que os salários sejam gastos na compra das nossas mercadorias...  

Para termos uma idéia ainda mais clara da repulsa da Inglaterra ao tráfico negreiro que contrariava duramente os seus interesses econômicos, basta lembrar os acordos que eram firmados entre aquele país e o Brasil. Em todos eles, os ingleses incluíam cláusulas sobre a extinção do tráfico de escravos mas tais exigências não eram cumpridas pelos "notáveis" daqui. Por outro lado, desde 1817, a Inglaterra conseguira proibir que Portugal e o Brasil mantivessem o direito de busca em navios mercantes suspeitos de trafegarem escravos em áreas proibidas. Mais adiante, em 1844, uma lei inglesa, o Bill Aberdeen , passou a considerar o tráfico de escravos como um ato de pirataria e outorgou ao governo britânico todo o direito de julgar, com suas próprias leis, os traficantes presos. Assim, por submissão e por temer as ameaças cada vez mais fortes da Inglaterra e não por se envergonhar de traficar homens, o Parlamento brasileiro aprovou, em setembro de 1850, a Lei Eusébio de Queiroz, que proibia o comércio de escravos para o Brasil.  

É importante ressaltar que, tanto o Governo Imperial quanto abolicionistas esclarecidos como Joaquim Nabuco, perceberam essas mudanças no mundo e sabiam que mais cedo ou mais tarde a escravidão acabaria em nossas terras. O próprio Nabuco declarava sempre:  

a escravidão impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, afasta as máquinas, excita o ódio entre as classes e produz uma aparência ilusória de ordem, bem-estar e riqueza.  

Finalmente, em 1888, depois de três séculos de sofrimento, de lágrimas e de humilhação sem limites, quando já não era mais negócio rentável para quase todos os brancos manter escravos, milhares de negros deixavam o cativeiro por força da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel e que procurava também com o seu gesto melhorar a imagem da desgastada Monarquia.  

A maioria dos brancos sempre julgou que a escravidão era um bem para os negros. Essa convicção encontrava ainda forte apoio nas bênçãos dos padres, entre eles destacava-se o jesuíta Antônio Vieira que dizia com a maior naturalidade:  

A escravidão do negro é um meio de sua salvação, uma entrada no Reino de Deus. A salvação está na cruz. Servindo ao seu senhor aqui na terra, o cativo receberá o prêmio do céu.  

A bem da verdade, até hoje, os milhões de negros que vieram para o Brasil e seus descendentes, resistiram heroicamente contra o extermínio de sua raça. Durante toda a sua evolução histórica, derramaram seu sangue em defesa da liberdade, dos direitos humanos e contra a odiosa discriminação racial que, infelizmente, ainda prevalece em nosso meio. Dessa maneira, contra a opressão foram ecoando por todos os lugares os gritos de liberdade e de resistência que eram ouvidos nos canaviais e nas plantações de tabaco do Nordeste, nas terras do ouro e dos diamantes das Minas Gerais, nas regiões do Planalto Central do Brasil, nas fazendas de café em São Paulo e nas províncias do Pará, Maranhão, Rio de Janeiro e Santa Catarina. Em todas essas regiões nasceram muitos quilombos, desenvolveram-se muitos focos de resistência e surgiram heróis que foram consagrados nos duros e prolongados combates de guerrilhas contra o poder branco. Portanto, desde 1605 e por quase setenta anos, milhares de negros transformaram o sonho da liberdade, da igualdade, da fraternidade e da abundância em uma realidade. Nas terras férteis da Serra da Barriga, no Estado de Alagoas, sob os olhares dos orixás que abençoavam Ilê Aiê, a República Livre de Palmares, reinava uma comunidade que chegou a reunir mais de 20 mil habitantes.  

Nas refregas armadas contra os "senhores" donos de terras, homens fortes e corajosos como Zumbi, Ganga-Zumba, Acaiene, Zambi e Toculo, seus filhos, Pedro Caçapaça, Amaro, Acoritene, Osenga e Ganga-Muiça viraram verdadeiras lendas entre o seu povo.  

Mais de vinte expedições foram organizadas contra o quilombo de Palmares e atrocidades sem limites foram cometidas contra os negros e contra os índios que se dispunham a ajudá-los. Nesse sentido, documentos históricos dão conta dos crimes bárbaros que foram cometidos contra os negros por bandeirantes sanguinários como Domingos Jorge Velho, que decapitou duzentos índios que se recusaram a atacar Palmares. Esses verdadeiros assassinos eram contratados pelos grandes "senhores" que pagavam vultosas somas pelos massacres praticados. Na região do Rio das Mortes, por exemplo, Bartolomeu Bueno do Prado não deixou por menos. Depois de atacar posições negras, resolveu comemorar o massacre praticado com um troféu macabro de três mil e novecentos pares de orelhas retiradas do inimigo. Por sua vez, em 1665, o comandante Fernão Carrilho, usando de toda violência, matou oitocentos quilombolas em um só combate e conseguiu convencer Ganga-Zumba a aceitar uma trégua que não foi admitida por Zumbi. Este, desconfiando das promessas feitas, resolveu resistir e, finalmente, em 1694, a República Livre de Palmares sucumbiu diante dos canhões de Domingos Jorge Velho que deixaram por terra quatrocentos mortos e mais de quinhentos feridos. Zumbi ainda consegue se evadir e pouco mais tarde, traído por um companheiro feito prisioneiro, é atacado em seu esconderijo. Cercado pelas tropas do comandante Furtado de Mendonça, é feito prisioneiro e decapitado. Segundo os relatos históricos, sua cabeça foi levada até Recife e pendurada no lugar mais público da cidade para atemorizar os negros que acreditavam ser Zumbi uma figura imortal.  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, gostaria de finalizar este pronunciamento dizendo que às vésperas da comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra, todo o Brasil branco deveria pedir perdão à raça negra pelas atrocidades que foram cometidas durante séculos contra homens, mulheres, velhos e crianças de origem africana que construíram com trabalho, com coragem, com sangue e com orgulho uma parte muito importante da cultura brasileira.  

Não é mais possível ignorar que a nossa língua adotou palavras do dialeto africano e muito das nossas lendas e costumes são de origem africana. A cozinha, a música, a religião e o folclore também adotaram fortemente os traços marcantes da alma africana, mesclando a cultura branca européia com a cultura negra trazida da África.  

Certamente, ainda não atingimos o ponto ideal da integração mas haveremos de conquistar juntos o que falta. O mais importante é que já estamos muito próximos de dar uma grande lição ao resto do mundo e à história da humanidade. Precisamos mostrar que nos trópicos foi possível construir uma verdadeira democracia racial, uma civilização nova e perfeitamente integrada, industrialmente desenvolvida e socialmente justa.  

Tenho certeza de que esse é o grande sonho da maioria dos brasileiros.  

Era o que tinha a dizer !  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/11/1998 - Página 16713