Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM AOS CINQUENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM AOS CINQUENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.
Publicação
Publicação no DSF de 11/12/1998 - Página 18303
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS.
  • HOMENAGEM, PAULO EVARISTO ARNS, CARDEAL, IGREJA CATOLICA, LUTA, FAVORECIMENTO, RESPEITO, DIREITOS HUMANOS, BRASIL.

O SR. PEDRO SIMON (PMDB-RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o mundo reabre, hoje, uma das mais belas páginas já escritas pelo homem. A amargura e as atrocidades da Segunda Guerra inspiraram o que eu ouso chamar de "projeto de reconstrução do ser humano imaginado por Deus".  

É por isso que eu defendo a idéia de que os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos podem ser resumidos em uma única afirmação: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança". É que, para mim, a primeira Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada pelo próprio Criador, no início dos tempos.  

O conhecimento da realidade deste mundo de Deus não nos inspira, propriamente, um discurso, mas uma oração. A humanidade insiste em criar suas próprias tentações e usufruir, cada vez mais, de versões modernas de frutos proibidos. A ganância pelo lucro fácil, a custo das perseguições, da fome e da miséria dos bilhões que se espalham pelos submundos, distancia, cada vez mais, o homem do projeto do Criador. O reino deste mundo ostenta arsenais capazes de destruí-lo a um simples apertar de botão.  

Nestes cinqüenta anos da Declaração dos Direitos Humanos - que comemoramos hoje -, a humanidade assistiu a profundas transformações tecnológicas. Mas o mundo das viagens espaciais, da fibra ótica e da Internet é o mesmo mundo da Bósnia, de Angola e de Kosovo. O mundo das quintas avenidas é o mesmo das favelas navais.  

Apesar de tudo, há algo fundamental a comemorar: se os direitos universais da pessoa humana são ainda um grande sonho, quase uma prece, nós, pelo menos, descobrimos o poder de defini-los com clareza e de lutar por eles com firmeza. Não há mais que escrever as tábuas da lei e atirá-las sobre nossas cabeças. As tábuas da lei são as nossas consciências.  

Os direitos do homem são sagrados e devem ser reverenciados, como fazem os judeus, com sua torá. E são sagrados porque foram escritos com o sangue derramado por gerações. Portanto, ao considerarmos os Direitos Universais da Pessoa Humana como uma oração, nossas consciências hão de se transformar num verdadeiro templo.  

E há que se abrir esses templos, para que se repita, em oração:  

"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros com espírito de fraternidade".  

Que o pão de cada dia não seja privilégio de poucos. Que os mísseis que destróem transportem ogivas abarrotadas de alimentos que fortifiquem, de educação que gera luz, de remédios que tiram a dor; de emprego que dignifica. Afinal, são as mesmas mãos capazes de apertar os gatilhos!  

Se essas mesmas mãos se abrissem em termos de, apenas, doar 0,05% dos recursos especulativos que circulam, ganaciosamente, pelo mundo, US$100 bilhões anuais poderiam ser dedicados ao cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos. E a própria ONU já quantificou que essa quantia seria mais do que suficiente para iniciar o próximo século sem as mazelas da miséria que circundam as janelas de todo o planeta.  

Ao contrário, o mundo dos negócios, no contraponto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, prepara um Acordo Multilateral de Investimentos, verdadeira Constituição da Globalização Econômica, que submete os Estados Nacionais aos interesses da especulação. Com ela, os lucros dos especuladores serão garantidos, sob pena e não importando se isso signifique maiores índices de analfabetismo, de sofrimento e de miséria.  

De nada adiantará, por exemplo, concebermos, aqui, as melhores leis para o nosso País, mesmo que elas sejam sancionadas por um Presidente legitimamente eleito, se elas ferirem os interesses dos capitais internacionais e indicarem sinais de arranhões nas expectativas de ganhos dos especuladores. Portanto, homenagear a Declaração Universal dos Direitos Humanos e se omitir quanto aos termos do Acordo Multilateral de Investimentos são atitudes que me parecem incompatíveis.  

A miséria humana, que campeia no mundo global, não serviria de inspiração para que os mais abastados transformassem o seu exagero de crédito em alimentos e oportunidades produtivas aos menos desenvolvidos?  

Que tal um mundo sem grandes diferenças regionais e pessoais de renda, em que todos pudessem dormir com a consciência de não haver, como hoje, 1.3 bilhão de famintos, que vivem, em média, com um US$1,00 (um dólar) por dia?  

Então, nesse dia histórico, quando se comemora o direito à vida, por que não iniciarmos uma luta de apoio, de estímulo, de solidariedade à proposta do Papa João Paulo II, que foi apoiada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, pelo perdão da dívida externa dos países mais pobres, a título da viabilidade de eles praticarem os ditames da Declaração Universal dos Direitos Humanos? Repito: o Papa lançou essa caminhada, essa campanha de as grandes nações reverem, realizarem e estudarem a possibilidade de perdoar, diminuir, alterar a dívida estrondosa do Terceiro Mundo. E o Presidente Fernando Henrique Cardoso, numa atitude que merece respeito, que merece compreensão, teve a coragem de ir à ONU defender essa mesma bandeira; de perguntar se, na hora das injustiças, das diferenças que vive o mundo, as grandes nações não poderiam meditar se deveriam arrancar os seus exagerados lucros à custa do suor e do sangue de milhões de homens na humanidade.  

Quero, por alguns instantes, deixar acelerar o coração. É uma espécie de código, muitas vezes secreto, que se aciona, automaticamente, quando, introspectivos, pensamos em pessoas que moram lá dentro do nosso coração.  

E, Graças a Deus, o meu coração é uma morada que vive constantemente apinhada. Porque é uma casa permanentemente decorada para receber todos os grandes amigos, todas as pessoas que aprecio e respeito. Alguns ocupam os melhores assentos.  

É por isso que, neste momento, em meio ao meu pronunciamento, dirijo-me ao Governador Mário Covas. É o caso do meu querido Governador Mário Covas e estou, neste momento, aqui, da tribuna, conversando com ele: - "Mário, o assunto de hoje é também a sua saúde, para que você possa prosseguir por muitos anos nessa missão que Deus - que também mora no seu coração - lhe deu, de minorar a dor de tantos excluídos de seu Estado e do Brasil. Eu o convido, Mário, para, no próximo ano, estarmos juntos, comemorando os seus êxitos e os êxitos do seu governo, homenageando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no ano 51, numa resposta de realizações no social do seu Governo, meu querido Mário".  

Aqui está a Declaração dos Direitos Humanos, que diz:  

"Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamadas na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política, ou outra, de origem nacional ou social. De fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não haverá nenhuma outra distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da nacionalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania."  

Ora, Srªs e Srs. Senadores, se a Declaração Universal dos Direitos Humanos fosse, hoje, uma prática, os seus dois primeiros artigos seriam contraditórios. Se todos os seres humanos nascem livres e iguais, por que preconizar o direito dos diferentes em cor, raça, sexo, religião, nacionalidade ou outra característica de invocar o direito de serem livres e iguais? É porque são ainda numerosos os estrangeiros em sua própria terra, tratados como diferentes, mas iguais em tudo na vida: pobres, índios, menores, pretos, mulheres, minorias.  

Os refugiados do planeta já atingem 18 milhões, mais do dobro de duas décadas atrás. São 12 milhões que deixaram seus países de origem, mais seis milhões chamados "deslocados internos", verdadeiros "cidadãos sem rosto", que se escondem por motivos étnicos, religiosos ou políticos.  

As mulheres representam 70% de todos os miseráveis do planeta; as cadeias mais se parecem guetos de maioria negra; as populações indígenas são confinadas, sujeitas a todo tipo de epidemias e a todos os tipos de discriminação. São todos ainda direitos a serem adquiridos, são todos direitos pelos quais temos que lutar para que se tornem realidade, para que todos sejam "iguais em dignidade e direitos".  

"Todos têm direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, à igual proteção da lei. Todos têm direito à igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou a castigo cruel, desumano ou degradante."  

Talvez, aqui, eu devesse solicitar a V. Exªs um minuto de silêncio. É a única maneira plausível de homenagear todos aqueles que, no mundo, são submetidos a qualquer tipo de tortura ou a tratamento cruel. Quantos serão eles? Onde estarão? Quem os conhece?  

Qualquer estatística será mera especulação. São fatos subterrâneos, que não se mostram à luz do dia. Quantas serão as favelas navais neste mundo de Deus? Quantos serão os Rambos, que torturam e atiram, pelas costas, em outros tantos Josinos, porque são pobres, pretos, injustiçados? Tantos são os Josinos, que foram excluídos exatamente porque são excluídos!  

Diz a Declaração:  

"Todos têm direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. Todos, sem qualquer distinção, têm direito a igual remuneração por igual trabalho. Todos que trabalham têm direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. Todos têm direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses".

 

Aliás, nobre amigo Senador Bernardo Cabral, esse artigo da Declaração é repetido, com grande respeito, pela Constituição brasileira. Ele é reproduzido na íntegra na Constituição. O que garante a Declaração dos Direitos Humanos, a Constituição brasileira, para mérito do seu Relator e dos seus Constituintes, também garante.  

O direito ao trabalho sempre foi, para mim, sinônimo de dignidade humana. Não haverá castigo maior que tolher a liberdade de desenvolvermos as habilidades que herdamos desde a nossa criação. "Comerás o pão com o suor de teu rosto". Expulso do paraíso, o homem foi submetido ao trabalho. Que pecado maior que a desobediência a Deus teria cometido hoje esse mesmo homem, se lhe é negado o mesmo direito ao trabalho e a garantia do seu pão, obtido com o suor do seu rosto?  

O homem se apequena diante de uma placa de "não há vagas". É como se não houvesse lugar para ele no universo que lhe foi destinado pelo próprio Deus. Para onde caminhar um rejeitado do seu próprio mundo? São mãos capazes de produzir o alimento e que se estendem nas esquinas, na busca desesperada pela vida. Enquanto isso, pelo mundo, a ganância beira a indigestão!  

"Todos têm direito à educação. A educação será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A educação elementar será obrigatória..."  

Mais uma vez, Senador Bernardo Cabral, a Constituição que V. Exª relatou reproduz um artigo dessa Declaração. Não se trata apenas de um artigo da Declaração dos Direitos Humanos, mas também de um artigo da Constituição brasileira.  

Aqui cabe uma profunda reflexão sobre nossas crianças. Nelas, projetamos o mundo do terceiro milênio. Muitas que hão de nascer nem ao menos terminarão esse século. Até o ano 2000, 24 milhões de crianças morrerão antes dos cinco anos, mais da metade por causas decorrentes da fome e da subnutrição. Das que sobrevivem, outro percentual significativo não conhecerá o milagre das letras, principalmente porque muito cedo terão que ocupar todo o seu tempo na luta pela sobrevivência, seja no trabalho infantil, seja nas esquinas, com as mãos estendidas.  

Por exemplo, a despeito de uma das melhores legislações do mundo sobre a matéria e de todo o esforço do Governo e de entidades não-governamentais, o Brasil ainda possui quatro milhões de crianças entre 5 e 14 anos no mercado de trabalho. Portanto, a questão da educação é muito mais ampla do que a abertura de novas vagas escolares e de novas tecnologias educacionais. Ela é parte de um contexto maior, de resgate da cidadania, de cumprimento de direitos fundamentais do homem.  

Apesar de todo esse quadro, que molda uma realidade tão cruel, ainda mantenho viva a esperança. É que, em cada canto deste mesmo mundo, existem homens que se mantêm à imagem e à semelhança de Deus. E —quanta bondade desse mesmo Deus!— podermos ter a presença hoje, aqui no Congresso, oficializando a missa conosco, de um homem que vive, na plenitude, a imagem divina. Porque é assim que vejo o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.  

Gostaria de descrever a sua biografia de uma forma diferente da usual. É uma tarefa fácil. Basta que se leia, atentamente, a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos! Ela é a prática diária do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Ele é igual a todos nós, como os muitos chamados. Mas ele é a mais pura semelhança de Deus, como os poucos escolhidos. Jamais se restringiu às generalidades. Foi sempre à luta, mergulhou no cotidiano sangrento e suarento, arriscou-se no inusitado. Poderia, como muitos, ter-se refugiado no discurso solene, que impressiona, mas nada afirma e nada nega, que retumba sem comprometer. Ao contrário, fez de sua vida um discurso e uma prática que incomodam, sempre instigantes de possibilidades novas.  

Sr. Presidente, hoje temos a honra de comemorar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tendo, neste Congresso, para rezar uma missa para nós, um ser humano que nos inspira, na prática, todos os preceitos formulados na Declaração dos Direitos Humanos da ONU.  

Praticar tal Declaração é o mesmo que seguir os passos de Dom Paulo, porque isso significa resgatar o mundo verdadeiramente projetado por Deus. Façamos os homens livres e iguais em dignidade e direitos, porque todos eles foram criados à imagem e semelhança de Deus! É a lição de Dom Paulo. É a mensagem da Declaração Universal dos Direitos Humanos!  

E, se essa Declaração for mesmo uma prece, que ela termine com um "assim seja"; se for uma lei a ser cumprida, com "revogam-se as disposições em contrário"; se for, ainda, um rogo aos homens de boa vontade, que termine com "peço deferimento".  

"Nada da presente Declaração pode ser interpretado como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de qualquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos".  

Amém! 

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/12/1998 - Página 18303