Pronunciamento de Ney Suassuna em 10/12/1998
Discurso no Senado Federal
HOMENAGEM AOS CINQUENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.
- Autor
- Ney Suassuna (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/PB)
- Nome completo: Ney Robinson Suassuna
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
HOMENAGEM.:
- HOMENAGEM AOS CINQUENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.
- Publicação
- Publicação no DSF de 11/12/1998 - Página 18311
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
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- HOMENAGEM, ANIVERSARIO, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS.
- ANALISE, HISTORIA, CONSOLIDAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), MUNDO.
- ANALISE, AMPLIAÇÃO, CONCEITO, DIREITOS HUMANOS, MUNDO.
O SR. NEY SUASSUNA
(PMDB-PB) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, faz 50 anos que a humanidade deu um passo de transcendente importância em sua marcha através da história. Muitos há que julgam que o verdadeiramente relevante são os fatos e não as palavras. Não é o que nos ensina a história: em inúmeras ocasiões, são as palavras, estejam ou não enfeixadas em um diploma legal, que mudam o curso dos acontecimentos. Ter a coragem de reunir as palavras justas no momento histórico certo constitui uma ação das mais concretas e das mais necessárias.
Foi o que ocorreu naquele ano de 1948, pouco após a criação da Organização das Nações Unidas, que se sucedera, por sua vez, à grande conflagração da 2ª Guerra Mundial.
A extensão e a profundidade dos atos de desrespeito aos seres humanos atingiram, durante a guerra, patamares inimagináveis, sendo o mais significativo de todos a discriminação sistemática de grupos étnicos ou culturais, levando à sua segregação em campos de concentração e ao extermínio covarde de milhões de homens, mulheres e crianças.
Era necessário reagir de forma enfática diante da perspectiva de retorno da barbárie, apesar de todas as inegáveis conquistas científicas e culturais acumuladas pela espécie humana.
A noção básica que inspirou a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos talvez possa ser traduzida nos seguintes termos: o desrespeito aos direitos de qualquer ser humano ameaça os direitos de todos os demais.
O principal antecedente desse documento foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborado em 1789, no bojo da Revolução Francesa.
Exatamente um século antes, a Inglaterra reconhecera, em seu Bill of Rights , que determinados direitos do cidadão inglês eram anteriores e superiores a quaisquer leis e ao próprio poder do Estado, sendo devidos a cada um desde o nascimento.
A grande e substancial inovação da Declaração francesa foi a abrangência de sua concepção, referindo-se não apenas aos direitos do cidadão francês, mas aos direitos inalienáveis do ser humano em sua universalidade.
A Declaração de 10 de dezembro de 1948 foi aprovada pelos 58 países que então compunham a ONU. A participação de representantes de nações do Oriente e do Ocidente e dos hemisférios Norte e Sul, durante os dois anos de elaboração do texto, é uma das singularidades que a distinguem historicamente.
Além de enfatizar a igualdade e a dignidade de todos os seres humanos, definindo ampla e sucintamente seus principais direitos civis e políticos, na linha das Declarações clássicas, o novo texto estende a concepção de direitos humanos aos campos econômico, social e cultural.
Esta ampliação do conceito é, sem dúvida, de fundamental importância, pois os direitos individuais tornam-se pouco mais que abstrações, se não forem satisfeitas as necessidades básicas e concretas dos indivíduos reunidos em sociedade.
À Declaração dos Direitos Humanos seguiram-se, no âmbito da ONU, várias outras declarações, convenções e pactos, que detalham e especificam os direitos dos seres humanos na diversidade de situações em que eles efetivamente se encontram.
Citemos apenas alguns dos mais importantes:
- Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951;
- Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, de 1953, mesmo ano da Convenção relativa à Escravatura;
- Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, complementada, 30 anos depois, pela Convenção sobre os Direitos da Criança;
- Pacto dos Direitos Civis e Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, aos quais o Brasil só aderiu em 1992;
- Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes contra a Humanidade, de 1968; Declaração sobre a Erradicação da Fome e da Desnutrição, de 1974;
- Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, de 1975;
- Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 1979;
- Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984;
- Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986, a qual se refere não apenas ao desenvolvimento dos países, mas também ao desenvolvimento integral das pessoas; e a
- Convenção sobre os Povos Indígenas, de 1991.
A simples enumeração desses instrumentos do Direito Internacional nos leva a compreender a complexidade da tarefa de tornar respeitados, em todo o mundo, os direitos de todas as pessoas.
Ressaltemos que a adesão de um País a uma convenção gera um compromisso mais efetivo na implementação dos direitos, propiciando meios de cobrança de medidas e avanços significativos.
Tomando como exemplo a Convenção dos Direitos da Criança, verificamos que os países que a ratificarem devem apresentar, no prazo de dois anos, um relatório, o qual serve como meio de abertura de diálogo entre o Comitê instituído pela Comissão, o Governo e a sociedade civil de cada um dos países.
Organizações não-governamentais são convidadas a comentar e a complementar as informações prestadas. O Comitê dos Direitos da Criança estuda os relatórios e emite suas recomendações, que os Governos são obrigados a tornar públicas.
Um novo relatório é exigido após cinco anos, de maneira a mostrar o grau de comprometimento de cada País na implementação da Convenção, tanto a nível de mudanças na legislação como na implementação de políticas sociais.
A passagem do qüinquagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos deve dar ensejo a uma avaliação de seus resultados. Por mais que seja importante a sinalização que ela oferece de um ideal a ser atingido por todos os povos, sabemos que o cumprimento dos direitos ali declarados depende das mais variadas injunções políticas, econômicas e sociais.
O esforço direto da ONU na promoção dos direitos humanos vem mostrando uma importância crescente ao longo desses 50 anos. A ele vem somar-se a ação de organizações não-governamentais, como a da Anistia Internacional, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz de 1977, que reúne hoje um milhão de membros em 162 países.
A eficácia das ações da ONU e das várias ONGs depende de seu poder de pressão sobre o comportamento dos governos dos vários países, pressão que depende, por sua vez, do respaldo da opinião pública nacional e internacional.
A luta pela efetivação dos direitos humanos, no entanto, não pertence a tais ou quais organizações ou governos, mas é uma luta da humanidade desde os seus primórdios: é, sobretudo, a luta diária dos oprimidos e injustiçados, em razão da partilha desigual de poder nas sociedades.
Não há dúvida de que assistimos a grandes avanços na questão dos direitos humanos em todos os continentes nas últimas décadas. Mesmo os Estados Unidos, um dos países que inaugurou a democracia moderna, mantinha medidas e práticas discriminatórias contra os negros até o final da década de 1960, quando ampla mobilização da sociedade mudou tal situação.
As várias ditaduras de direita da América Latina e da Europa foram caindo uma a uma nas décadas de 70 e 80 e, junto com elas, toda uma série de desrespeitos sistemáticos à dignidade dos seres humanos, desde o cerceamento da liberdade de expressão e de organização até a prática da tortura.
Na passagem dos anos 80 para os 90, foi a vez de caírem os regimes autoritários de esquerda, com uma impressionante rapidez, que revela o anseio de liberdade acumulado durante décadas.
Também no início da presente década, assistimos ao fim do odioso regime do Apartheid na África do Sul. Há pouco, vimos ser destituída mais uma ditadura truculenta e corrupta, a de Suharto, na Indonésia.
Não acabaram, contudo, as práticas de desrespeito aos direitos humanos. Devemos, mesmo, reconhecer que elas continuam assumindo proporções as mais assustadoras em várias localidades do globo terrestre. Não podemos silenciar diante das atrocidades recentemente cometidas, em grande parte pelo motivo torpe de conflito entre etnias.
Assim foi com a Guerra da Bósnia, que matou 250 mil pessoas; ou do massacre em Ruanda, que eliminou simplesmente 1 milhão de pessoas em 1994. Conflitos étnicos, associados à fome, têm dizimado outras milhares e milhares de pessoas em vários países africanos.
A violação dos direitos humanos não se restringe, contudo, a estes pontos de beligerância explícita e extrema, que se transformam em verdadeiros infernos terrenos. Ela se encontra, mais ou menos difusa, na maioria dos países, e especialmente concentrada naqueles, como o nosso, que convivem com a pobreza e com a desigualdade social acentuadas.
Se observarmos a situação de um dos grupos mais vulneráveis à violação dos seus direitos, o das crianças, veremos alguns dados impressionantes.
Na última década, calcula-se que dois milhões de crianças tenham morrido em resultado de conflitos armados, enquanto que quatro a cinco milhões tiveram graves seqüelas físicas.
Grande parte do resultado das duas estatísticas é devida às 100 milhões de minas explosivas escondidas no solo de 62 países. O número de menores de 15 anos que trabalham em todo o mundo é estimado em 250 milhões.
Quanto às crianças menores de 18 anos envolvidas em prostituição, pertencentes quase sempre aos grupos sociais marginalizados, calcula-se que chegue à casa dos dois milhões. O atendimento adequado aos direitos à alimentação, à saúde e à educação ainda deixa de fora uma grande parcela das crianças do mundo.
Afinal, como ressalta Tereza Albenez, Conselheira Especial do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, "a forma mais perversa de negação dos direitos da criança é a pobreza, porque a pobreza torna impossível satisfazer aquelas necessidades que são direitos básicos".
Se o Brasil tem mostrado grandes avanços na área legislativa, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente, que se tornou uma referência internacional, permanece, no entanto, como um dos países campeões de violência e de desrespeito aos direitos humanos, seja dos menores, seja dos excluídos em geral.
Aí estão, para prová-lo, os periódicos massacres de que dá notícia a imprensa: de meninos de rua, de presidiários, de indígenas, de trabalhadores sem terra, de moradores de favelas.
A impunidade generalizada, a qual apenas começamos a superar, é, sem dúvida, uma das causas incontestáveis desse estado de coisas.
O descaso das autoridades quanto à busca de soluções duradouras para o problema das secas no Nordeste é mais um exemplo de que os direitos humanos ainda não se tornaram prioridade de fato em nosso País.
O aumento já constatado nos índices de mortalidade infantil e os sérios comprometimentos no crescimento físico e na saúde de crianças e adolescentes do Polígono das Secas são exemplo das suas conseqüências mais nefastas.
Devemos reconhecer, entretanto, uma série de progressos consideráveis na área social. A universalidade do acesso ao ensino pelas crianças está em vias de se tornar uma realidade, a qual precisamos ampliar, no sentido de garantir a universalização do ensino básico. Ainda no que se refere às crianças e adolescentes, vale ressaltar a importância da criação de um instrumento como a bolsa-escola.
O trabalho infantil, mesmo que inaceitável, corresponde a uma imposição social para aquelas famílias cuja renda não pode satisfazer as necessidades básicas de seus membros. Sendo assim, nada mais razoável do que conceder uma compensação financeira para essas famílias, de modo que suas crianças possam de fato estudar e lutar por um futuro melhor.
Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, se procurarmos, para concluir nosso pronunciamento, fazer uma síntese quanto à situação dos direitos humanos em todo o mundo, diríamos que há, nesta passagem de século, sinais alvissareiros de ampliação dos direitos civis e políticos, associados ao aumento do número de países que adotam o regime democrático.
As perspectivas de real atendimento dos direitos econômicos, sociais e culturais, contudo, não são tão animadoras. Verificamos que o processo de globalização da economia vem sendo conduzido de uma maneira tal, que tende a aumentar as desigualdades entre países e entre grupos sociais, fazendo crescer o percentual de excluídos.
Mesmo em países ricos e desenvolvidos como os europeus, a nova realidade do "horror econômico" passa a afetar o bem-estar de suas populações, a começar pelo aumento dos índices de desemprego.
A perda de várias conquistas sociais e econômicas dos antigos países do bloco soviético surge, ao menos temporariamente, como um lastimável preço a ser pago pela reconquista das liberdades políticas.
Os países não-industrializados são, mais uma vez, aqueles que mais sofrem com os novos rumos da economia mundial, devido à alta vulnerabilidade de grande parte de sua população, miserável ou no limiar da miséria. Acreditamos, entretanto, que há solução para os seus inúmeros problemas.
De acordo com a economista argentina Nora Lustig, chefe da Divisão de Pobreza e Desigualdade do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, "um programa de renda mínima na América Latina eliminaria a pobreza imediatamente e exigiria um esforço equivalente a algo entre 0,5% e 2% do PIB, a depender do país".
A globalização, ou a maior interligação entre os diversos países no âmbito econômico, cultural e mesmo político, aparece, em nosso entender, como uma tendência inevitável dos tempos atuais. O que está em aberto é a maneira como ela se vai processar: se vai servir aos interesses de determinados centros ou grupos hegemônicos, ou se vai corresponder efetivamente a uma descentralização de poderes e de riquezas por todo o globo.
A existência de problemas de dimensão mundial, como os referentes à degradação do meio ambiente e à exaustão de determinados recursos naturais, impõe soluções globais. O mesmo vale para a permanência da pobreza e da violência em grande parte do mundo: os direitos humanos devem ser globalizados, até mesmo para garantir os direitos daqueles que já os usufruem.
Mais do que nunca, a humanidade deve tomar uma opção consciente entre direitos humanos para todos – ou barbárie.
Muito obrigado.
ndi H