Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM POSTUMA AO EX-SENADOR JOÃO CALMON.

Autor
Emília Fernandes (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RS)
Nome completo: Emília Therezinha Xavier Fernandes
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM POSTUMA AO EX-SENADOR JOÃO CALMON.
Publicação
Publicação no DSF de 22/01/1999 - Página 1907
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, JOÃO CALMON, EX SENADOR, ESTADO DO ESPIRITO SANTO (ES).

A SRª EMILIA FERNANDES (PDT-RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Srs. Deputados, Autoridades, Convidados, Familiares, há pessoas que possuem o dom de pôr seus ideais acima das dissensões entre os grupos e dos conflitos de pontos de vista. Há pessoas que de tal modo se identificam e lutam por um ideal que passam a simbolizá-lo; entram com ele em tão perfeita simbiose que já se torna difícil distingui-los. Assim era a pessoa humana rara e tão saudosa do Senador João Calmon . Nascido na cidade de Colatina (ES), em 7 de setembro de 1916, faleceu no dia 11/01/99.  

Calmon e a educação. A educação brasileira e seu paladino: João Calmon. Como não associá-los? No entanto, o percurso que o levou à luta pela causa da educação foi relativamente longo. Ele, no ano de 1937, quando ainda estudante de Direito, conhece casualmente o presidente dos Diários Associados, Assis Chateaubriand. Da amizade passa-se ao vínculo empregatício: o jovem capixaba trabalha alguns meses como repórter em São Paulo sendo depois convidado para ser editor do Correio do Ceará . Iria permanecer por 16 anos no Nordeste, destacando-se por seu brilhante jornalismo e assumindo a direção de jornais e estações de rádio da cadeia dos Diários Associados.  

Em 1955, retornando ao Sudeste, torna-se Diretor-Geral da organização. Elege-se Deputado Federal pelo Espírito Santo em 1962, pelo Partido Social Democrático (PSD). Em 1966 é reeleito, agora como membro da Aliança Renovadora Nacional (Arena). Em 1968, assume a Presidência dos Diários Associados, substituindo o falecido amigo Assis Chateaubriand, função que exerce até 1980.  

Exerceu três mandatos como Senador da República, de 1970 a 1995 - desde 1985, filiado ao PMDB. Foi em uma solenidade de homenagem póstuma ao fundador dos Diários Associados, promovida pelo Lions Club no Recife, em maio de 1969, que João Calmon lançou a idéia de uma grande mobilização nacional que fizesse dos anos 70 a "Década da Educação". Em plena vigência do regime de exceção da ditadura militar, a pregação de João Calmon despertou inicialmente entusiasmo. O interesse dos dirigentes do País, no entanto, aos poucos se arrefeceu, neutralizando o propósito profundamente renovador que movia o idealizador da campanha.  

Observando jornais da época, não podemos deixar de perceber a maneira independente com que João Calmon expunha suas idéias, fugindo ao tom ufanista e bajulatório tão comum naqueles dias. Assim, em uma conferência pronunciada na Escola Superior de Guerra, em outubro de 1969, o Deputado e jornalista afirmou: "apresentamos um dos mais baixos índices de escolarização primária do mundo e uma das mais desoladoras taxas de analfabetismo".  

Ao ressaltar a má aplicação dos recursos destinados à educação, declara que tais desperdícios exigem "uma rigorosa sindicância, que alcance os mesmos resultados de qualquer IPM (Inquérito Policial Militar) da Revolução, atingindo não apenas os vencidos, mas também os vencedores que ascenderam ao poder a partir de abril de 1964".  

A todo momento nessa conferência, como em seus demais pronunciamentos, nota-se a agudeza de seu espírito crítico. Contra a onda de obras faraônicas que então se iniciava, Calmon afirma que "antes do início de qualquer obra de custo elevadíssimo, como metrôs e pontes do tipo Rio-Niterói e tantas outras, impõe-se um exame implacável, ditado pela convicção de que a prioridade, no próximo decênio, terá que ser a educação". Calmon enfatiza a necessidade do uso responsável dos recursos públicos, "arrancados - em suas próprias palavras - de um povo já esmagado por uma das mais pesadas cargas tributárias do mundo". Lembra ainda a frase do empresário Rubem Berta: "O governo não dá nada ao povo que dele antes não tire."  

A campanha que lançava era, infelizmente, incompatível com a estrutura de poder então vigente. Muitos anos depois, em uma palestra na Confederação Nacional do Comércio, o Senador João Calmon fez, com a cautela de não incorrer em um radicalismo simplista, um comentário que lança luz sobre o que se passara: "Há suspeitas de que, em alguns ciclos da história brasileira, forças mais conservadoras ou obscurantistas chegaram à conclusão de que não convém educar o povo, porque povo educado é povo consciente, sabe lutar por suas reivindicações e muitas vezes sabe torná-las vitoriosas."  

O Governo Militar, que Calmon mesmo apoiava, vai gradativamente, como já dissemos, mostrando desinteresse em uma profunda e eficaz ampliação do ensino fundamental no País. Esse fato tornou-se mais claro no momento em que se fez necessário assegurar a obrigatoriedade da vinculação de recursos públicos para a educação. Sabemos que tal dispositivo constava das Constituições de 1934 e de 1945, tendo sido eliminado dos textos constitucionais do regime antidemocrático.  

Segundo nosso homenageado, "o resultado dessa quebra da tradição constitucional em relação à educação foi catastrófica, com a vertiginosa redução dos dispêndios públicos nessa área, que caíram à metade."  

Assim, o Senador João Calmon apresenta pela primeira vez, em 1976, uma emenda constitucional que restabelece a vinculação de gastos das receitas públicas com a educação. A proposta sofre o bombardeio do "Olimpo governamental" da época: dos 68 Senadores subscritores apenas 19 compareceram à sessão de votação, seguindo a determinação do partido majoritário.  

Sua romaria em prol da alteração constitucional continua, até que, em novembro de 1983, após sete anos de tramitação e em consagradora aprovação por unanimidade, uma nova emenda, a justamente famosa Emenda Calmon, estabelece que "a União aplicará nunca menos de 13%, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino". Mesmo aprovada, a emenda não é cumprida, pois o Governo Federal não a julga auto-aplicável, apesar dos pareceres em sentido contrário. A vinculação só será efetivamente cumprida após o fim do regime militar, pondo-se em prática a promessa categórica de Tancredo Neves: "Em meu governo, cumprirei integralmente a Emenda Calmon, em seu espírito e sua letra".  

A luta de Calmon pelo financiamento da educação pública não termina aí. Como Relator da Subcomissão de Educação, Cultura e Desporto na Assembléia Constituinte de 1988, o Senador conseguiu elevar o percentual de vinculação da receita federal para 18%, suplantando a corrente que pretendia que fosse vedada qualquer vinculação de receita tributária. Incansável paladino dessa conquista fundamental da educação brasileira, o bravo parlamentar não deixará de atuar em sua defesa sempre que isso se faça necessário. Em 1991, denuncia veementemente o "novo e profundo golpe na educação brasileira", inserido no projeto de reforma fiscal do Governo, que, se aprovado, diminuiria substancialmente a destinação obrigatória de recursos públicos para o ensino. Dois anos após, é a vez de combater a instituição do Fundo Social de Emergência, que efetivamente reduziria a vinculação de receitas da União para 15,7%, fazendo cair ainda de 18 para 15% a parcela a ser aplicada em educação nas transferências aos Estados e Municípios, bem como do salário-educação.  

Sr. Presidente, Senhoras e Senhores, conheci João Calmon em 1995, quando cheguei ao Senado Federal, e, desde logo, ao manifestar-lhe pessoalmente minha admiração e respeito, ele, em um gesto de profunda humildade, disse-me: "A causa da educação precisa de mais defensores no Senado Federal, e a sua chegada me alegra e fortalece minhas esperanças" - assim se referiu por ser eu professora. Ainda recentemente, trocamos informações e idéias a respeito dos CIEPs, cujo abandono ele considerava uma injustiça e um desrespeito com a educação das crianças e jovens. João Calmon era um homem apaixonado pela vida, pelo conhecimento, pela cultura, pelo saber, pelo desenvolvimento pleno do ser humano. Em minha memória ficará a lembrança do seu estímulo, do seu incentivo, da sua esperança.  

Lembrei os vários passos dessa luta que traz, como nenhuma outra, a marca pessoal de João Calmon, pois creio que ela é muito rica de ensinamentos: tanto sobre a política e a educação nacionais como sobre o homem que a essa causa se dedicou. O empenho do Senador Calmon pela educação nascia tanto de uma visão humanista como de uma nítida percepção das implicações econômicas da questão: desde o final da década de 60, alertava ele para o perigo do "colonialismo tecnológico" a que estaríamos submetidos se persistíssemos em nosso atraso no setor educacional.  

Seu profundo sentimento patriótico não aceitava que o Brasil detivesse índices educacionais lamentáveis, incluindo um vasto contingente de analfabetos, enquanto despontava como a oitava economia do mundo. Destoando do imediatismo dos tecnocratas e de seus recorrentes ajustes e reformas fiscais, Calmon sabia que nenhum outro investimento era tão importante para nosso País como a oferta de um ensino de qualidade para toda a sua população. Assim é que, mesmo alertando para a grave situação na qual estão mergulhadas nossas universidades, o seu empenho maior sempre foi pela extensão do ensino fundamental a todo os brasileiros, bandeira que mantém toda a sua atualidade e ainda maior urgência. Em diversas ocasiões, Calmon referiu-se à necessidade de aumentar o percentual de recursos vinculados à educação, citando o caso do Rio Grande do Sul - o Estado que aqui represento -, onde a Constituição estadual determina que não menos que 35% da receita de impostos sejam aplicados no ensino. Decisão dos constituintes gaúchos que ele qualificou - e me disse pessoalmente - de "ação patriótica pela sua gente".  

Várias outras facetas do homem público e outras batalhas que ele travou poderiam ser lembradas. Mencionemos, como exemplos, a iniciativa de construir a Maternidade Popular de Fortaleza, ainda nos anos 40, com mais de cem leitos para mães indigentes; sua luta em defesa das empresas e do capital nacional, especialmente em relação às empresas de telefonia; sua defesa veemente do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando sofria uma série de críticas acerbas e injustas; sua luta contra a escandalosa sonegação de impostos em nosso País, ao mesmo tempo em que defendia uma diminuição da carga tributária. Poderíamos falar ainda dos diversos prêmios e homenagens que recebeu em vida; da correção de sua conduta pessoal; de seu cavalheirismo, de sua modéstia e de sua bondade.

 

A luta pela educação foi, certamente, aquela em que mais se empenhou, sua obsessão, que queria transformar em obsessão nacional - "a causa maior de sua vida" -, como afirmava, lamentando apenas não ter despertado para ela mais cedo. A partida desse notável homem público é sentida de modo especial por nós, do Senado Federal, que com ele convivemos mesmo após o término de seu último mandato. Sua memória, no entanto, será reverenciada como a daquele que, mesmo não se dedicando à atividade docente, educou a Nação brasileira para a transcendente importância da educação.  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, para concluir...  

A Srª Júnia Marise (Bloco/PDT-MG) - V. Exª me permite um aparte?  

A SRª EMILIA FERNANDES (Bloco/PDT-RS) - Ouço a nobre Senadora antes de dar continuidade ao meu pronunciamento.  

A Srª Júnia Marise (Bloco/PDT-MG) - Senadora Emilia Fernandes, deixei para pedir este aparte no final do pronunciamento de V. Exª, que mostra, com propriedade, o brilhantismo da carreira do eminente e saudoso Senador João Calmon. Desejo incorporar ao pronunciamento de V. Exª alguns testemunhos peculiares do desempenho do mandato do eminente Senador. Eu era Deputada Federal quando S. Exª, Senador da República, iniciava o seu trabalho, a sua atuação para fazer que prevalecessem, no Orçamento da União, os recursos indispensáveis ao aperfeiçoamento da educação no nosso País. Fui testemunha desse fato porque, na Câmara dos Deputados, como Deputada Federal, fui a sua intérprete, a intérprete do sentimento, do desejo e do empenho do Senador João Calmon para que a sua emenda constitucional fosse finalmente aprovada pelo Congresso Nacional. Houve um trabalho quase que conjunto. Tivemos, portanto, naquele momento, uma identidade de propósitos, e eu não poderia deixar de apoiar o desejo e o empenho do Senador João Calmon pela aprovação da sua emenda constitucional, garantindo percentuais necessários e imprescindíveis para a educação no nosso País. Vejo, neste plenário, a figura extraordinária desse cearense que se transformou em meu conterrâneo de Minas Gerais, o eminente jornalista Paulo Cabral, uma das figuras que mereceram minha admiração pessoal na área profissional da comunicação social, nos Diários Associados. Também me recordo de um dia em que estivemos juntos, o Senador João Calmon e eu, visitando o Dr. Paulo Cabral, e ele disse: "Cabe ao Senador João Calmon - que já tinha deixado o seu mandato de Senador - o importante cargo de Presidente do Conselho Federal de Educação neste País, para que ele possa continuar o seu grande trabalho em favor da educação." Eu ouvia isso do eminente jornalista Dr. Paulo Cabral. O Senador João Calmon reúne o sentimento da unanimidade nacional, de todos aqueles que conviveram com ele no plenário do Senado Federal. Foi uma figura extraordinária, afável, carinhosa, mas, sobretudo, um homem público que exerceu o seu mandato pensando nas crianças, nos jovens e na educação deste País. Cumprimento V. Exª pela forma como traçou a trajetória do saudoso Senador João Calmon. Ele deixou o Senado, mas estava sempre conosco, sentado ali. E sempre que eu o via, fazia questão de abraçá-lo e de dizer-lhe: "Grande Senador, grande Senador". E ele foi, realmente, um grande Senador da República. Obrigada, Senadora Emilia Fernandes  

A SRª EMILIA FERNANDES (Bloco/PDT-RS) - Agradeço o aparte de V. Exª e o incorporo ao meu pronunciamento.  

Invejo V. Exª, porque teve a possibilidade de uma convivência maior com o Senador João Calmon. Entretanto, mesmo nesse pouco tempo em que tive oportunidade de conhecê-lo, quase que diariamente, quando ele estava no Congresso Nacional, também nos encontrávamos, conversávamos por telefone e trocávamos idéias. Ele era, sem dúvida, um grande inspirador, principalmente para mim, que sou uma professora.  

Para concluir, Sr. Presidente, registro os trechos do pronunciamento intitulado "Sonho irrealizado: educação, obsessão nacional", proferido pelo Senador João Calmon no dia 30 de janeiro de 1995, em sua despedida desta Casa:  

Nesta rápida retrospectiva, apresento o balanço das coisas feitas e não feitas, no jogo de luzes e sombras da política, que procurei honrar em meus cinco mandatos. Embora não tenha circunscrito minhas atividades à educação, nela concentrei minhas forças e até - por que não dizê-lo? - minha obsessão. Sem a educação, o povo não sabe exercer ou delegar o poder que dele emana, não alcança a cidadania, não contribui decisivamente para aumentar a própria receita nem a do País, não se capacita sequer a cuidar de sua saúde e não sabe educar seus filhos.  

...Enquanto tiver forças e a vida me permitir, continuarei indissoluvelmente ligado à causa da educação, porque - repito, pela centésima vez, no Congresso Nacional - só por meio da educação universalizada poderá haver distribuição mais eqüitativa e humana de renda entre todos os nossos patrícios. Só assim a renda deixará de ficar concentrada nas mãos de um mínimo percentual de privilegiados, que, por motivos ortodoxos ou heterodoxos, não recolhem corretamente os seus tributos aos cofres públicos.  

...Para encerrar este discurso, que jamais pensei fosse ocupar tanto tempo, vou revelar que há mais de 30 anos - desde que entrei na vida pública - comecei a escrever um diário, que hoje tem 11 mil páginas datilografadas. Ao longo de todo este período, os fatos iam sendo registrados invariavelmente.  

Nesse sentido, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, queremos também registrar a deliberação da Comissão de Educação do Senado Federal, por intermédio do seu Presidente, Senador Artur da Távola, que acolheu proposição de minha autoria para que seja realizado um trabalho de publicação de pronunciamentos e notas de João Calmon sobre educação, como homenagem a sua memória e a sua luta.  

Acredito que isso será realizado neste ano ainda, em outubro, mês dedicado ao professor. Pelo seu trabalho em prol da educação, certamente, estaremos fazendo, na Comissão de Educação do Senado Federal, o lançamento dessa obra, que será, sem dúvida, marcante na história do País.  

Aos familiares, a sua esposa, aos seus filhos, a nossa solidariedade e o nosso abraço comovido.  

Muito obrigada. (Palmas)  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/01/1999 - Página 1907