Discurso no Senado Federal

REFLEXÕES SOBRE A GUERRA NA IUGOSLAVIA, DENOMINADA EM REPORTAGEM DA REVISTA VEJA, DE 14 DO CORRENTE MES, DE ' O INFERNO DA GUERRA POS- MODERNA'.

Autor
Ronaldo Cunha Lima (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/PB)
Nome completo: Ronaldo José da Cunha Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL.:
  • REFLEXÕES SOBRE A GUERRA NA IUGOSLAVIA, DENOMINADA EM REPORTAGEM DA REVISTA VEJA, DE 14 DO CORRENTE MES, DE ' O INFERNO DA GUERRA POS- MODERNA'.
Aparteantes
Pedro Simon.
Publicação
Publicação no DSF de 27/04/1999 - Página 8847
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • ANALISE, CONFLITO, GRUPO ETNICO, GUERRA CIVIL, PAIS ESTRANGEIRO, IUGOSLAVIA, INTERVENÇÃO, FORÇAS ESTRANGEIRAS, ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DO ATLANTICO NORTE (OTAN).
  • REPUDIO, VIOLENCIA, AÇÃO MILITAR, ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DO ATLANTICO NORTE (OTAN), GUERRA CIVIL, PAIS ESTRANGEIRO, IUGOSLAVIA, DEFESA, SOLUÇÃO, CONFLITO, UTILIZAÇÃO, DIPLOMACIA.

O SR. RONALDO CUNHA LIMA (PMDB-PB. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente; Srªs e Srs. Senadores, é possível que estranhem, ante tantos temas nacionais e tantos assuntos trazidos a esta tribuna, a abordagem que venho fazer.  

A revista Veja , em sua edição de 14 do corrente, publica uma excepcional matéria sob o título "O inferno da Guerra Pós-Moderna". Lição de História e histórias de muitos ódios e conflitos seculares. A matéria é completa, erudita e bem escrita, porque ela nos informa e nos atualiza sobre a guerra da Iugoslávia. Nesta guerra, diz a reportagem: "potência mundiais se unem e assumem o papel de policiais do mundo para dar um castigo aos sérvios, porque eles maltratam os albaneses. É a doutrina da intervenção humanitária".  

Lendo-a, eu me transpus à minha infância, para reviver paisagens e instantes adormecidos na lembrança. Era o ano de 1945 e havia terminado a II Guerra Mundial. Meus olhos infantis não entendiam o colorido das bandeiras agitadas nas ruas, nem meus ouvidos o rufar de tambores nem o barulho das fanfarras colegiais.  

Estudantes e militares desfilavam. Fogos de artifícios e gritos anunciavam a alegria do povo. Aos poucos, começaram a me explicar e, aos poucos, comecei a entender o significado da guerra; e entendi a alegria do meu povo. Passei a ouvir histórias da guerra. Histórias de pais que perderam seus filhos e histórias dos filhos que nunca mais voltaram para o convívio dos pais.  

Algum tempo depois, anunciavam a chegada dos heróis, dos pracinhas que voltavam da Itália, dos que foram chamados a defender a Pátria e os que se ofereceram para defendê-la. Não vi, graças a Deus, não vi as imagens da guerra. *Mas a minha alma de criança guardou as impressões das histórias que me contaram sobre a guerra.  

Alguns anos depois, um companheiro de geração, um jovem tão talentoso quanto agitado, em uma das reuniões do Centro Estudantil Campinense, falava sobre a II Guerra Mundial e mais precisamente sobre a destruição de duas cidades: Hiroshima e Nagasaki. Falava como se conhecesse de perto os efeitos destruidores da bomba atômica.  

Guardo, ainda hoje, a emoção de suas palavras e as palavras do seu testemunho, inspirado em leituras e em informações que lhe foram passadas por seu parente bem próximo, um ex-pracinha, um nome que a Paraíba ainda hoje reverencia, Sr. Felix de Souza Araujo. Aquele jovem de ontem é hoje Conselheiro do Tribunal de Contas da Paraíba, Sr. Juarez Farias. A partir daquele depoimento sobre a destruição de Hiroshima e Nagasaki, essas cidades passaram a ser referências históricas e exemplos do que a guerra é capaz. Foram mais de 200 mil mortes.  

A guerra, naquele instante, não nasceu pelo ódio, como é essa que hoje está eclodindo na Iugoslávia. A guerra da Iugoslávia, segundo a revista Veja, é diferente daquela do Iraque e Kuweit, em 1990. Brigava-se pelo petróleo. "Se Saddam Hussein - diz a revista - estendesse a sua mão de ferro sobre a Arábia Saudita, teria, ao todo, sob seu poder, metade das reservas mundiais do combustível da civilização." E acrescenta: "Americanos e europeus estão interferindo numa briga interna de um país com fronteiras internacionalmente conhecidas.  

Não combatem em defesa de interesses nacionais, mas em nome de um imperativo ético: evitar o massacre de uma minoria perseguida. É a chamada doutrina da intervenção humanitária.  

Os ataques teriam que ser à bomba, aéreos e bem mais sofisticados e poderosos do que aqueles que destruíram Hiroshima e Nagasaki. Bombas a laser, que acertam com precisão os alvos programados ou por mísseis disparados à distância, às vezes a centenas de quilômetros. Nada de tanques, tropas a pé ou outros recursos clássicos, diz a matéria.  

Essa guerra pós-moderna seria diferente daquelas outras do século XX na Europa, quando morreram 60 milhões de pessoas. Agora, na guerra pós-moderna, na teoria da intervenção humanitária, o combate seria apenas pelo ar, evitando-se o confronto sangrento.  

Assim, os soldados americanos e seus aliados devem ir à guerra, mas não podem morrer, embora o general francês Philipe Morillon tenha contestado: "que soldados são esses que estão preparados para matar, mas não estão preparados para morrer?"  

Mas o que estamos vendo nessa guerra humanitária? Os mísseis errando seus alvos e matando pessoas. É verdade que refinarias foram destruídas, que pontos estratégicos foram atingidos, mas é verdade também que já são muitas as mortes por erro e engano dos mísseis.  

As televisões nos mostram cenas dolorosas e chocantes, como a daquela criança que viu 29 pessoas da sua família serem assassinadas ao seu redor, inclusive seu pai, sua mãe, seus irmãos, e que passou a ter alucinações e pesadelos. Fico pensando nas noites dessa criança. A visão dantesca nunca mais lhe sairá dos olhos, e a dor de ver o pai morrendo nunca mais se apagará.  

A televisão nos mostra crianças e velhos no desespero e nos estertores. São cenas que revoltam. São corpos estirados no chão. São mãos e pés mutilados. São olhos chorando a angústia e são as angústias do medo estampadas nas faces desesperadas e atônitas. E são filas, intermináveis filas de pessoas aguardando um pedaço de pão. E é porque a guerra é chamada de intervenção humanitária. Sabe-se que o ódio que alimentou essa guerra levou ao massacre, ao extermínio. Os albaneses do Kosovo fugiam de suas terras e buscavam a paz noutros chãos, e talvez muitos não tenham conseguido chegar, sequer, ao novo destino.  

Abro aspas de novo: "A guerra pós-moderna da OTAN pretende estancar, a poder de bombas, esse rio de ódios medievais, cujos efeitos brutais são inaceitáveis para o mundo ocidental".  

Mas armas não matam idéias. Estão matando pessoas, explodindo pontes, às vezes caindo por engano sobre civis inocentes, estraçalhando um país já depauperado". Em verdade, idéias não se combatem com armas. Não é matando idealistas que se mata o ideal, pois, disse e me permito repetir um discurso que proferi aos paraninfos de 1979:  

"Enganam-se os ditadores em seus delírios medonhos  

que matam os sonhadores pensando que matam os sonhos".  

A intervenção da OTAN, na Iugoslávia, está sendo chamada de "guerra justa", porque em defesa dos direitos humanos e a favor de uma minoria perseguida e massacrada.  

"A maioria das guerras, alguém já disse, começa dez anos antes do primeiro tiro". A da Ioguslávia remonta há séculos, alimentada, infelizmente, por sentimentos menores, pelo ódio que é uma forma lenta de suicídio, segundo Schiller, e pela vingança, digo eu, que é a sobrevida do ódio.  

Mas essa guerra, chamada, a princípio, de cirúrgica, que seria apenas aérea e se previa rápida, já se prolonga demais. Tem ceifado vidas, muitas vidas, e já ameaça a paz mundial, a serem verdadeiras as palavras de Boris Yeltsin: "Eu já disse à OTAN, aos americanos, aos alemães: não nos empurrem para a ação militar. Caso contrário, haverá, com certeza, uma guerra na Europa e, talvez, uma guerra mundial". Aí seria o fim apocalíptico, a não ser que fosse uma verdade absoluta o que disse o pai da relatividade, Albert Einstein: "A guerra mundial que virá após a próxima será travada com pedradas". É cirúrgica, mas precisa de uma nova operação, e, se é humanitária, há de preservar vidas humanas.  

A saída há de ser diplomática; do contrário, um massacre substituirá outro massacre.  

As histórias de Hiroshima e Nagasaki ficaram em meus ouvidos de criança. A visão da guerra da Iugoslávia, não a quero fixada em meus olhos e os olhos do mundo se voltam para a Sérvia, para Kosovo, para Albânia. São olhos complacentes, cheios de proposta de perdão, de sugestão de amor, de desejo de paz.  

O Sr. Pedro Simon (PMDB-RS) - Concede-me V. Exª um aparte?  

O SR. RONALDO CUNHA LIMA (PMDB-PB) - Ouço V. Exª com muita alegria.  

O Sr. Pedro Simon (PMDB-RS) - Meus cumprimentos pelo importante pronunciamento de V. Exª. Soa triste o silêncio, com que, de certa forma, o mundo e nós brasileiros estamos acompanhando a tragédia que acontece na Iugoslávia. Diz bem V. Exª quando afirma que se trata de uma intervenção humanitária. Bela intervenção humanitária esta! Exatamente quando a OTAN festeja o seu cinqüentenário! Hoje, em Washington - tinha que ser lá, porque, antigamente, no Império Romano, era em Roma -, estão lá, beijando a mão do Imperador, o Presidente dos Estados Unidos, as nações européias para festejar os 50 anos da OTAN. A rigor, não sei por que existe a OTAN. Ela existia porque havia, do lado de lá, o Pacto de Varsóvia. Havia o leste e o oeste europeu, o Muro de Berlim, o capitalismo e o comunismo em um confronto direto. Como não há mais o leste europeu, o Muro de Berlim, o comunismo ou a União Soviética, qual a finalidade do pacto da OTAN? Qual o motivo de se estar festejando os seus 50 anos? Vamos terminar o século como começamos. A Primeira Guerra Mundial nasceu nos Balcãs. Foi ali que o Príncipe herdeiro foi assassinado. As divergências, as lutas, os rancores, as divisões raciais ali existentes vêm, realmente, de muito tempo, e, a cada dia que passa, temos que admirar a figura do falecido Marechal Tito, que conseguiu, durante tanto tempo, mesmo tendo como adversários os americanos e o oeste europeu, rompeu com Stalin e com o comunismo e conseguiu manter esse povo atrelado a uma grande Iugoslávia que nunca experimentara um período tão longo de paz. Não é um fato novo. As divergências raciais, as de credo, além de outras são por demais conhecidas, mas não se pode resolver isso lançando bombas experimentais. O interessante nisso tudo é que quando os Estados Unidos atacaram o Iraque estavam realizando a primeira série de experiências com mísseis dirigidos. Aquele ataque, além de permitir que realizassem a experiência, não serviu para mais nada a não ser destruir o Iraque. Não somou nada à paz da humanidade. Mas provaram que seus mísseis dirigíveis são de alta competência. E agora estão lançando bombas cujo efeito é que parte delas explode e parte delas não. As que não explodem transformam-se em minas terrestres. Praticamente o mundo inteiro assinou o Pacto Mundial Antiminas, mas os americanos se negaram a assiná-lo. É um escândalo, um absurdo, lançar minas em um lugar pacífico, onde crianças que por ali passeiam, de repente encontram um explosivo. Estão fazendo isso agora. Estão lançando bombas. E a nova experiência realizada pelos americanos é exatamente a dos destroços das bombas. As que não explodem transformam-se em minas que, posteriormente, matarão pessoas inofensivas. Para que os americanos estão fazendo isso? A pretexto de quê? Por causa do ódio? Mas quem deu aos Estados Unidos crédito para serem os donos da Humanidade e dizerem o que está certo e o que está errado? E quem fez os europeus se curvarem com tanta humilhação, eles que têm raça, que têm dignidade? O que levou nações independentes e soberanas a aceitarem essa intromissão grotesca e incompreensível dos americanos? Hoje todos sabem que, estrategicamente, os Bálcãs ocupam a posição mais importante na Europa, pois fica entre o leste e o oeste, e o que sobrou das antigas arruaças. Os americanos querem fazer dali um protetorado deles, aproveitando a coitada da Rússia, que vive uma hora tão difícil e tão dramática. Num momento como esse, de repente, colocar ao lado dela mais uma possessão americana parece-me um absurdo, parece-me irracional. A OTAN está determinando hoje o fim da ONU. Os americanos já determinaram a desmoralização da ONU. Quando, com dois votos - o da França e o da Rússia -, a ONU estava votando contra a intervenção no Iraque, os americanos fizeram um bombardeio independente sem esperar a decisão do Conselho das Nações Unidas. Agora acontece a mesma coisa. Não consultaram a ONU. Estão fazendo, pela primeira vez, um ataque dessa natureza depois da Segunda Guerra Mundial. Uma nação independente e autônoma está sendo bombardeada pela OTAN, que não teve autorização, porque não pediu lhufas ao Conselho de Segurança. A rigor, estão desmoralizando, estão enterrando a ONU com essa decisão. Em nome de quem? Por que os americanos não falaram em colocar tropas de paz, em colocar lá os brasileiros ou alemães, pessoas que não têm nada que ver com os atritos em si? Por que não falaram na Cruz Vermelha brasileira? Por que não falaram em colocar tropa de paz? Coloquem lá os brasileiros, pessoas que não têm nada a ver com os atritos em si. Por que não falaram na Cruz Vermelha brasileira? Preferem o bombardeio. Preferem destruir. Aquela é a parte mais pobre, mais atrasada, onde estão as pessoas mais humildes da Europa. Quem vai reconstruir as pontes, a indústria petrolífera? Quem vai reconstituir essas coisas todas? Aquela gente que já era miserável vai ficar mais miserável ainda. Felicito V. Exª pelo seu pronunciamento e peço desculpas pelo alongamento do meu aparte. V. Exª está honrando o Senado com seu pronunciamento. Hoje os americanos recebem na sua capital representantes de todos os países da OTAN, para festejarem o cinqüentenário dela. Penso que não poderia haver um festejo mais trágico, mais ridículo, mais cruel e mais desumano do que esse. Meu abraço e minha solidariedade a V. Exª pelo seu pronunciamento.

 

O SR. RONALDO CUNHA LIMA (PMDB-PB) - Muito obrigado, Senador Pedro Simon. Sinto-me profundamente feliz por ter sido, neste instante, mais uma vez aparteado por V. Exª.  

Esse depoimento histórico, clarividente, corajoso, altivo, cívico, convoca-nos para uma reflexão sobre a paz mundial, sobre a paz de que Jorge Amado falava no seu livro O Mundo da Paz , de mil novecentos e cinqüenta e poucos, um verdadeiro poema à Albânia. Há mais de 40 anos, Jorge Amado, ao visitar a Macedônia, ao conhecê-la de perto, já se referia ao heroísmo, à bravura do General Tito e à resistência daquele povo. Assim como antes ele dissera: "Senta aqui, nega. Já te contei a história de um poeta, vou te contar a história de um herói." Jorge Amado, que se mistura com a nossa alma, com o nosso espírito, com a nossa terra e com a nossa gente, pintava mais ou menos esse quadro que V. Exª, com seu talento, acaba de mostrar. V. Exª dá grandeza a esse pobre e modesto pronunciamento que faço e traz, com esse depoimento, o brilho que certamente faltava ao meu pronunciamento, que, se mérito tivesse, seria apenas o da oportunidade.  

Agradeço-lhe, Senador Pedro Simon, e permito-me, ao encerrar minhas palavras, invocar outro poeta, Vinícius de Moraes, naquela canção que compôs e que foi gravada, salvo engano, por Ney Matogrosso, sobre a rosa de Hiroshima. Isso era o recado para os beligerantes, para os que estão em conflito, para os que ainda alimentam o ódio, para os que buscam vingança e para os que querem a guerra.  

"Pensem nas meninas, cegas, inexatas;  

Pensem nas mulheres, rotas alteradas;  

Pensem nas feridas como rosas cálidas,  

Mas oh! não esqueçam  

Da rosa da rosa,  

Da rosa de Hiroshima,  

A rosa hereditária,  

A rosa radioativa, estúpida, inválida,  

A rosa com cirrose,  

A anti-rosa atômica,  

Sem cor, sem perfume,  

Sem rosa, sem nada."  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/04/1999 - Página 8847