Discurso no Senado Federal

REFLEXÕES SOBRE A REFORMA DO PODER JUDICIARIO.

Autor
Alvaro Dias (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/PR)
Nome completo: Alvaro Fernandes Dias
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA JUDICIARIA.:
  • REFLEXÕES SOBRE A REFORMA DO PODER JUDICIARIO.
Publicação
Publicação no DSF de 08/05/1999 - Página 10706
Assunto
Outros > REFORMA JUDICIARIA.
Indexação
  • IMPORTANCIA, INVESTIGAÇÃO, COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), BANCOS, JUDICIARIO, DEFESA, SIMULTANEIDADE, ATUAÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, DEBATE, REFORMA JUDICIARIA, AMBITO, RESPEITO, PODERES CONSTITUCIONAIS, DEMOCRACIA, VALORIZAÇÃO, FUNÇÃO, JUSTIÇA, ATENÇÃO, MODERNIZAÇÃO, DIREITO.
  • ANALISE, PROBLEMA, JUSTIÇA, ESPECIFICAÇÃO, DESEQUILIBRIO, INDENIZAÇÃO, DEMORA, SENTENÇA JUDICIAL, NECESSIDADE, AUTOMAÇÃO, INFORMATICA, AUMENTO, QUADRO DE PESSOAL, JUDICIARIO.
  • DEFESA, REFORMA JUDICIARIA, EXTINÇÃO, TRIBUNAL MILITAR, JUIZ CLASSISTA, FUSÃO, JUSTIÇA DO TRABALHO, JUSTIÇA FEDERAL, DEMOCRACIA, ADMINISTRAÇÃO, JUDICIARIO, COMBATE, NEPOTISMO, EQUIPARAÇÃO, REMUNERAÇÃO, CRIAÇÃO, ORGÃO PUBLICO, CONTROLE, ALTERAÇÃO, COMPETENCIA, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), INCENTIVO, MEDIAÇÃO.

O SR. ÁLVARO DIAS (PDSB-PR. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, ocupo, hoje, a tribuna desta Casa para abordar um tema que está na ordem do dia das preocupações nacionais e que, entre nós, gerou uma bem-sucedida CPI: refiro-me à questão da reforma do Poder Judiciário.  

Em pronunciamento recente, tive a oportunidade de dizer que, ao contrário do que preconizaram alguns, as duas CPIs em andamento nesta Casa não abalaram as relações entre os Poderes e muito menos a credibilidade do nosso País no exterior. Continua a vigir entre nós, em sua integralidade, o sistema democrático, com a tripartição dos poderes já preconizada por Montesquieu, a partir das magníficas lições de Locke: Executivo, Legislativo e Judiciário funcionam em plena harmonia e a economia encontra-se em plena fase de recuperação.  

Portanto, a posição que aqui vou colocar tem plena consonância com o ponto de vista expendido recentemente. Não me filio à corrente daqueles que entendem ser as CPIs um desserviço à Nação. Ao contrário, entendo que, na medida em que investigam fatos atentatórios à boa condução da coisa pública, elas fortalecem as instituições e lhes acrescentam credibilidade, pois deixam patente que a desonestidade só compromete a estabilidade das instituições na medida em que permanecem imunes à investigação por parte de quem tem competência para tal. E, no caso das CPIs, é bom que se destaque que essa competência emana da Constituição.  

Dentro dessa perspectiva, não tenho dúvida em afirmar que, ao lado dos trabalhos da CPI do Judiciário, deve a preocupação desta Casa voltar-se também para a questão da reforma desse Poder da República. São duas faces da mesma moeda, igualmente importantes, mas que merecem enfoques distintos.  

Não é a CPI o fórum para debater a reforma do sistema, coisa, aliás, que o seu próprio mentor, o ilustre Senador Antonio Carlos Magalhães, foi o primeiro a reconhecer, antes mesmo da sua instalação, quando S. Exª afirmou, em alto e bom som:  

"A CPI não tem por alvo o Judiciário enquanto um dos Poderes do Estado, que devem ser autônomos e independentes entre si, mas sim os maus juízes, que se aproveitam do cargo para usufruir benesses e expedem sentenças que a todos parecem impróprias, absurdas e chocantes".  

Ora, se a CPI, pela sua própria natureza de investigar fatos determinados, não comporta o amplo debate sobre a Reforma do Judiciário, está servindo, por outro lado, para trazer ao debate no Congresso a necessidade de urgente modificação na estrutura desse Poder do Estado. Esse é um ponto comum a todos, mesmo àqueles que, em determinado momento, posicionaram-se contra a criação da CPI do Judiciário. É que o diagnóstico da Justica está formulado há longo tempo. Não é de agora que se verbera contra a situação, embora hoje, como nunca, se faz premente a necessidade dessa reforma.  

Uma advertência, todavia, se impõe: a reforma não pode e não deve ser pensada como desmerecimento de um Poder que é inerente à própria democracia e garantidor dos direitos fundamentais do cidadão. É que, ao longo de toda a história da humanidade, sempre se fez necessária a presença de um órgão que pudesse dirimir os conflitos inerentes ao viver societário, mesmo nos tempos mais longínquos, quando inexistia o Poder Judiciário tal como hoje o concebemos. Ainda quando a função de distribuir a Justiça esteve nas mãos do mais forte, ou daquele que detinha o poder, a grande verdade é que a humanidade jamais prescindiu de um órgão capaz de conciliar os conflitos inerentes à vida em sociedade. Foi lenta a formulação de um órgão com esse poder específico, mas a grande verdade é que acabou por se cristalizar no tempo a necessidade de um Poder com independência para compor as lides e dirimir os conflitos, produto típico de países civilizados e cujo aprimoramento se deveu, sem dúvida alguma, à cristalização das democracias. A importância do Judiciário como instituição imprescindível à convivência social harmônica tem crescido nos últimos séculos, na medida da consolidação dos regimes democráticos, por ser ele o assegurador do respeito aos direitos individuais e sociais do cidadão. Nesse particular, a organização da Justiça tem importância que transcende a compreensão de todos, por ser a pedra angular do próprio Estado de Direito. No Brasil, a Carta Magna deu-lhe conformação de essencial ao regime democrático ao dizer que nenhuma lesão de direito pode fugir à sua apreciação, e esse princípio é reconhecido pela unanimidade dos constitucionalistas como uma das cláusulas pétreas da Carta Magna e, por via de conseqüência, a não ser passível de reformulação.  

Assim, Sr. Presidente, uma reforma no Judiciário há que ser pensada em termos de aprimorá-lo e torná-lo mais ágil na prestação jurisdicional, pois, sem essa agilidade, o próprio Poder se desfigura, eis que justiça tardia não é justiça, conforme diz o brocardo jurídico.  

Mas, se de um lado a reforma não pode ser estigmatizada por uma visão de desprestígio ao Poder Judiciário, não pode também servir como pretexto para a defesa de privilégios daqueles que o integram e que têm o vezo de se considerarem intocáveis. Se, de um lado, reconheço no Poder Judiciário a importância como pedra angular de defesa dos direitos do cidadão e do próprio Estado; de outro, não posso aceitar a postura daqueles que o consideram intocável, no sentido de não lhe permitirem o aperfeiçoamento, banindo privilégios e o corporativismo. A reforma se impõe até mesmo para colocá-lo num patamar ao abrigo das tentações corporativistas, ou, como disse o Ministro Celso Mello, ainda Presidente do STF: "O Poder Judiciário não pode ser refém de interesses corporativistas, nem reduzir-se à condição orgânica de uma simples corporação de juízes". Assim, entendo que é tempo de se repensar o Judiciário brasileiro, conferindo-lhe uma estrutura que o faça merecedor do respeito que goza por parte da população, em que pesem os males que o afligem.  

E por que urge reformar o Judiciário? Porque ele lida com um material perecível ou em constante mutação, que é o Direito. Criado para normatizar a vida em sociedade, o que levou o jusfilósofo Hans Kelsen a afirmar ser ele o regulador da conduta em interferência intersubjetiva, é natural que o Direito se transmude com a própria transformação da sociedade. Note-se, por exemplo, para ficarmos apenas nos últimos decênios, que a evolução da sociedade brasileira levou ao surgimento de novos ramos do Direito e à sofisticação de alguns códigos, mas o sistema processual continua o mesmo.  

Mas há uma outra face dessa medalha na qual reside grande parte da deformação do nosso sistema judiciário. É que, à exceção desses poucos códigos inovadores, a grande maioria das nossas leis são velhas e é por todos sabido que as leis são, ou deveriam ser, elaboradas de acordo com o espírito do seu tempo. O Brasil mudou, mas suas leis nem sempre acompanharam essa mudança. Resultado: o órgão encarregado de aplicá-las envelheceu como elas, e esse é um dos aspectos mais angustiantes das mazelas do nosso Judiciário.  

Forçoso é reconhecer aqui, Sr. Presidente, que grande parcela de culpa cabe a nós - o Poder Legislativo - a quem compete elaborar as leis. Não resta dúvida, por exemplo, que um juiz eivado de bom senso não pode prolatar sentença como aquela aqui referida pelo Presidente Antonio Carlos Magalhães, que condenou a União a pagar uma indenização de R$81 bilhões a uma madeireira da Amazônia, mas é igualmente verdadeiro que os cálculos não foram feitos aleatoriamente. O juiz se baseia no trabalho do contador ou partidor, que soma e multiplica de acordo com códigos, leis, decretos, regulamentos, portarias e, ultimamente, medidas provisórias. Não é também o magistrado responsável pelas alterações nas taxas de juros, pela flutuação da moeda, pelos índices indexados ou não indexados. Esse quadro aponta para a complexidade do problema. Se, por um lado, não se pode aceitar que um juiz venha a conceder indenizações em montante de bilhões, afinal os estudiosos são unânimes na afirmação de que Direito é lógica, daí falar em uma lógica jurídica e, sinceramente, não vejo lógica em indenizações bilionárias. Entendo que, ao deparar-se com cálculos exorbitantes, o magistrado deve adequá-los à realidade nacional; do contrário, não precisaria juiz, bastando aceitar o parecer técnico; por outro lado, há de se compreender que as leis que possibilitam chegar-se a esses dados astronômicos devem ser corrigidas com urgência.  

Mas a situação é diabólica, surrealista mesmo, pois chega-se a esses índices de indenizações astronômicas em função da morosidade da própria Justiça, num paradoxo somente explicável em termos de Brasil.  

Vejamos, Sr. Presidente:  

Uma ação indenizatória leva, no Brasil, de dez a vinte anos para ser julgada. Como conseqüência, as sentenças só podem mesmo conter esses absurdos, pois os cálculos são feitos em cima de moedas às vezes diversas daquela da época da propositura da ação, de taxas de juros, de flutuação do câmbio, conforme aqui se mostrou. Se julgada a ação no mesmo ano que em que começou, jamais a sentença chegará a índices absurdos, porque os cálculos, naturalmente, serão feitos dentro das regras do momento e jamais com base em índices que remontam a duas décadas ou mais. E aí entramos num outro aspecto perverso do sistema, que é a morosidade da Justiça. Essa leva cidadãos humildes ao desespero. Digo humildes, porque aos poderosos essa morosidade não atinge; ao contrário, na maioria da vezes os beneficia. O cidadão comum que recorre ao Poder Judiciário, o faz porque tem pressa, quer ver resolvida, em tempo hábil, sua questão, e frustra-se perante a morosidade do Judiciário. Morosidade essa, é bom que se repita, que beneficia sempre e infalivelmente os mais poderoso e castiga os mais fracos, numa verdadeira negação dos princípios que o Poder pretende defender: o do Direito e da Justiça. Vê-se, pois, que a problemática do sistema judiciário brasileiro está envolta num diabólico círculo vicioso, que é preciso romper com reformas que o tornem ágil, capaz de atender aos anseios dos cidadãos e que o coloque em sintonia com o mundo moderno.

 

Ao falar em colocar o Poder Judiciário em sintonia com o mundo moderno, tocamos em um outro ponto crucial da questão: lugares existem neste País em que o computador é um ideal inatingível e a Justiça continua a ser feita a bico de pena ou, quando muito, à base das velhas máquinas de datilografia. Portanto, além de atualizar as leis, de atualizar dos Códigos de Processo, urge também modernizar a máquina do Poder Judiciário, trazendo-a para a era da informática. É preciso que, nos orçamentos dos tribunais, destinem-se recursos para essa modernização e não para obras faraônicas, sob pena de esforços pessoais se perderem no anacronismo de suas estruturas.  

Some-se a isso tudo a exigüidade de pessoal e não apenas os auxiliares da Justiça, mas os próprios operadores do Direito. Se confrontado com os padrões internacionais, veremos que o Brasil tem poucos juízes. São 61 para cada milhão de habitantes, enquanto, na Itália, essa proporção é de 230 juízes para cada milhão de habitantes. Mesmo em termos de América Latina estamos defasados, eis que, no Chile, são 250 juízes para cada milhão de habitantes e, na Argentina, 94 para cada milhão. Em todo o país são apenas de 13 a 14 juízes. Convenhamos que é muito pouco. Mas de nada adianta aumentar esses números se as estruturas permanecerem as mesmas e se as leis que os juízes aplicam continuarem arcaicas, se os Códigos de Processos continuarem a permitir todo o tipo de manobra procrastinatória, que deu margem à criação de um novo tipo de advogado neste País: aquele especializado não em resolver questões, mas sim em manipular as brechas da legislação processual para eternizar as demandas, sempre em favor, como já disse, dos mais fortes e em detrimento óbvio dos menos favorecidos. E aí vai também uma distribuição de responsabilidades: a OAB tem também parcela considerável de culpa pela situação. O que quero dizer com isso é que a responsabilidade não é só do Poder Judiciário, mas sim, de todos nós.  

Vale enfatizar que a questão é complexa e as soluções não são fáceis. Como há uma unanimidade em que o Poder Judiciário deve passar por reformas, a hora é de se discutir o teor dessas reformas. Entendo que a modernização do Judiciário passa pela racionalização de sua atividade, além de dever contar com leis compatíveis com os níveis de desenvolvimento econômico e social do País, com estrutura funcional moderna e com códigos elaborados para servir de instrumentos de justiça. A reforma do Judiciário, pois, há de conferir-lhe condições para enfrentar, com organização e competência, o dia-a-dia de sua atividade, em prol dos ideais de justiça de toda a Nação brasileira.  

Em contato com cidadãos comuns, com juízes, com advogados, e com interessados de modo geral na questão, me foi possível pensar ser viável os seguintes aspectos da reforma do nosso sistema judiciário:  

a) Extinção do tribunais militares, deslocando-se a competência hoje atribuída a essas Cortes para varas especializadas, ora da Justiça Federal comum (quando se trate de questões envolvendo militares federais), ora da Justiça estadual (quando se trate de questões envolvendo militares estaduais).  

b) Extinção de juízes classistas em todas as instâncias da jurisdição hoje acometida à Justiça do Trabalho - como já se fez nesta Casa do Congresso e se fará por certo, em segundo turno, na próxima semana.  

c) Fusão da Justiça do Trabalho com a Justiça Federal comum, passando as Juntas de Conciliação e Julgamento a se constituírem ou em varas especializadas para julgamento de quaisquer questões emergentes de relações de trabalho, quer firmadas com o Poder Público, quer estabelecidas com empregadores privados; ou então a transformação das Juntas de Conciliação e Julgamento hoje existentes em varas da Justiça Federal, tendo jurisdição em todas as matérias de competência originária da Justiça Federal comum de 1ª Instância, com mais aquelas que hoje são da competência originária da Justiça do Trabalho de 1ª Instância. Com isso se ampliaria a oferta de jurisdição, uma vez que a Justiça Federal comum teria o seu quadro de juízes aumentado pela agregação de todos os juízes do trabalho, com o desafogo das varas federais e facilitando o acesso dos jurisdicionados, pois a estrutura das Juntas de Conciliação e Julgamento seria aproveitada nessa fusão.  

d) Ainda no âmbito da Justiça do Trabalho, é válido pensar-se em um Juizado Especial de Causas Trabalhistas, nos moldes do que já existe hoje com relação aos Juizados Especiais Civis e Criminais, tornando mais célere a solução dos conflitos, mesmo com a adoção da fusão acima proposta.  

e) Democratizar a administração do Poder Judiciário com eleições diretas para todos os cargos diretivos dos Tribunais, devendo o Colégio Eleitoral se constituir de todos os juízes de 1ª e 2ª instâncias, vinculados a um determinado tribunal, com critérios limitadores da reeleição e obrigatoriedade de rodízio nos cargos de direção.  

f) É válido pensar-se também em um Supremo Tribunal Federal com atribuições apenas constitucionais, deslocando-se sua competência residual para o Superior Tribunal de Justiça;  

g) É inadiável a extensão do combate ao nepotismo a todos os ramos do Judiciário;  

h) Viável, igualmente, é a implantação de um sistema remuneratório que possa equiparar os membros dos Três Poderes, escalonando-se os subsídios dos demais juízes a partir dos subsídios dos Ministros do STF, mantendo-se um diferencial de 5% da escala remuneratória entre os tribunais e as respectivas instâncias inferiores.  

i) Implantação de um órgão de controle, cujo caráter interno ou externo deve ser objeto de amplo debate, já que existe uma unanimidade entre os estudiosos do assunto quanto à necessidade de tal controle, havendo apenas divergência com relação à sua modalidade.  

j) Ampliar os mecanismos que permitam a solução de conflitos jurídicos através da mediação e de acordo, sem que isso signifique desprestígio à atividade jurisdicional dos magistrados, que sempre serão chamados a dar a última palavra quando não se chegar a um denominador comum.  

Essas são, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, algumas das idéias que me ocorrem, e que aqui lanço como contribuição ao debate que entendo dever se travar neste momento crucial desse importante Poder da República, que, se de um lado deve ser preservado como instituição essencial ao regime democrático e ao próprio Estado, de outro, não pode permanecer imune às transformações que toda a sociedade brasileira almeja e espera, de modo a que ele possa exercer, em sua plenitude, as relevantes funções para as quais historicamente foi criado.  

Muito obrigado, Sr. Presidente.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/05/1999 - Página 10706