Discurso no Senado Federal

TRANSCURSO, HOJE, DOS 111 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA.

Autor
Geraldo Cândido (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Geraldo Cândido da Silva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • TRANSCURSO, HOJE, DOS 111 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA.
Publicação
Publicação no DSF de 14/05/1999 - Página 11456
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, BRASIL, OPORTUNIDADE, DENUNCIA, CONTINUAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.

O SR. GERALDO CÂNDIDO (Bloco/PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, exatamente há 111 anos, a Princesa Isabel assinava a Lei Áurea, que acabava com a escravidão no Brasil. O ato da assinatura da Abolição da Escravatura foi comemorada com uma grande festa pelos abolicionistas, republicanos, por aqueles que lutaram por uma sociedade libertária e igualitária, uma sociedade melhor.  

O ato da Abolição da Escravatura não significou o fim da miséria, da situação de vida daqueles que viviam nas fazendas de café e de cana-de-açúcar, trabalhando apenas por um prato de comida e por um teto para morar. A verdade é que, nos dias de hoje, continuamos a ter nesse País uma quantidade imensa de escravos, chamados escravos brancos. Recebemos, com freqüência, denúncias de trabalhos escravos no interior do Brasil, no Centro-Oeste, no Nordeste, nas regiões canavieiras; em alguns lugares, há até mesmo trabalhos escravos, onde o cidadão trabalha tanto por um prato de comida, sem sequer receber salário. E o pior: esse trabalho escravo é, muitas das vezes, feito por menores de 12 a 15 anos de idade.  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, é importante registrar aqui essa data de hoje: os 111 anos da Abolição da Escravatura no Brasil. Preferimos chamar não de Dia da Abolição da Escravatura, mas de Dia Nacional de denúncias contra o racismo e contra a discriminição dos excluídos.  

Os escravos antigos não recebiam salário, mas tinham alimentação, moradia e também o chicote. O escravo moderno não tem moradia, nem alimentação; no entanto, tem o chicote. Sobrou apenas isso para eles, que constituem hoje os milhões de excluídos do País.  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no dia 13 de maio de 1888 - há 111 anos - o Brasil assistia à Princesa Isabel, ocupando o trono em função do afastamento de seu pai, D. Pedro II, assinar a Lei Áurea que extinguia a escravidão, encerrando quatro séculos de exploração oficial da mão-de-obra africana em nosso País.  

Durante muito tempo, a propaganda oficial fez dessa data um de seus maiores argumentos para defender a suposta tolerância em relação aos negros, apresentando a Abolição da Escravatura como fruto da bondade de uma princesa. É o mesmo que dizer que a História se faz por vontade própria e não pela ambição coletiva dos donos do poder ou pela força das aspirações de um povo.  

Na verdade, o processo que resultou na Abolição da Escravatura pouco tem a ver com as razões humanitárias. A estrutura escravocrata da economia brasileira, não obstante sua importância interna, começou a sofrer pressão desde o século XVIII, pois não mais se compatibilizava com as novas idéias e concepções acerca do trabalho. A Revolução Industrial expandia-se no mundo desvinculada do escravismo, em oposição a ele, sobretudo no que se refere ao alargamento dos mercados consumidores e à concorrência de produtos obtidos sem o trabalho escravo.  

O golpe mais profundo e o mais conseqüente viria em 1808, capitaneado por uma Inglaterra ávida de mercados para os seus produtos manufaturados: o tráfico foi declarado ilegal. O comércio inglês, então senhor de metade do montante do comércio mundial, depois de haver-se aproveitado largamente dos lucros do tráfico, sentia-se superior aos interesses dos setores escravocratas, motivado pelo propósito de penetrar na África, introduzindo manufaturados e comprando matérias-primas.  

Explicam-se, desse modo, as pressões exercidas pela Grã-Bretanha sobre o Governo brasileiro, especialmente no que tange à proibição do tráfico, que acabaria minando os próprios alicerces da instituição escravista.  

Outro fator importante foi a resistência negra, traduzida em revoltas sangrentas, como queima de engenhos e destruição de fazendas, que se multiplicaram nas últimas décadas do século XIX, aumentando o custo e impossibilitando a manutenção do sistema.  

Foi assim que chegamos ao 13 de maio de 1888, quando negros de todo o País puderam comemorar com euforia a liberdade recém-adquirida, mas acordando no outro dia com uma dúvida atroz: o que fazer com essa tal liberdade? Para muitos, a resposta seria permanecer nas fazendas, realizando o mesmo trabalho, agora sob piores condições, pois, não sendo mais um investimento, a liberdade que o negro agora experimentava era ser livre para " escolher a ponte sob a qual preferia morrer ". Sem terras para cultivar e enfrentando no mercado de trabalho a competição dos imigrantes europeus, em geral subsidiados por seus países de origem e incentivados pelo Governo brasileiro, os brasileiros descendentes de africanos passaram a favelados, meninos de rua, vítimas da violência policial, discriminados pela Justiça e pelo mercado de trabalho, invisíveis nos meios de comunicação, com seus valores, sua religião e sua cultura negados. Cidadãos de uma "democracia racial" em que o lugar de destaque que ocupam é a miséria e a destituição.  

Embora hoje conste da legislação brasileira, de forma clara e objetiva, que a prática do racismo é crime inafiançável, nos deparamos com ele de maneira explícita em nosso cotidiano.  

Mas quais as origens do racismo no Brasil? O racismo brasileiro remonta ao período colonial, quando o negro é introduzido como mão-de-obra escrava, como já sabemos, visando atender a interesses mercantis.  

Segundo a professora de história Eliane Yambanis Obersteiner, "a estrutura econômica e social que inaugura a colonização portuguesa na América assenta-se em princípios sociais e religiosos que buscam justificar, de forma ética e moral, a exploração do negro. Os colonizadores, oriundos de um mundo em que a nobreza estava decadente, vêm para a América imbuídos de um ranço medieval — o ideal de fidalguia". Ser filho de alguém, possuir uma origem de nascimento, é o que os identifica. A vinda para a América significa restaurar o poder econômico já distante.  

Portanto, "torna-se possível compreender o papel parasitário desempenhado pelo branco na estrutura produtiva. Quanto menos fizer, maior seu símbolo de poder, já que outros, seus subordinados, farão por ele".  

Assim, o trabalho no Brasil já nasce desprestigiado, como algo inferior, realizado por alguém igualmente inferior.  

Já a Igreja Católica colabora com a inserção do negro como escravo, tranqüilizando eventuais crises de consciência da elite, fervorosamente religiosa. Os negros - na interpretação da igreja, desprovidos de alma, pois renegavam o Deus católico e, portanto, compactuavam com o demônio - deveriam pagar em vida por essa heresia. A escravidão seria, então, a penitência.  

Essas explicações disfarçam, é claro, os verdadeiros interesses na escravidão que são os interesses econômicos: eram necessários braços para viabilizar a empresa colonial. Uma vez escravo, o negro dava lucro de duas maneiras: barateando a produção, já que seu trabalho é forçado, e transformando-se em mercadoria, pois o tráfico negreiro era uma das principais formas de acumulação para os países envolvidos nessa atividade.  

Mesmo os negros que se convertiam à fé católica não eram absorvidos da penitência da escravidão, fato que só vem confirmar a questão como econômica. Portanto, a Abolição da Escravidão, em 13 de maio de 1888, não garante ao negro sua plena inserção social como cidadão.  

No que diz respeito ao reconhecimento de que há discriminação no Brasil e de que são necessárias políticas para vencer essa situação, parece que, até agora, os negros só são reconhecidos como elementos da cultura. Tanto é assim que, no Orçamento Federal, os recursos destinados à questão racial aparecem vinculados ao Ministério da Cultura, para a comemoração de eventos, tombamento de monumentos, etc. Por que não aparecem no Ministério da Educação, para incrementar o ingresso da população negra nas escolas desde o ensino fundamental até a universidade? Por que não aparecem no Ministério do Trabalho, para financiar programas de capacitação profissional ou estimular a geração de empregos?  

Em suma, talvez agora, nesse momento de grave crise moral, política e econômica em que o Brasil se encontra, seja o instante ideal para profundas transformações de consciência que se revertam em ações contra a histórica e abominável discriminação racial.  

Era o que eu tinha a dizer.  

Muito obrigado.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/05/1999 - Página 11456