Discurso no Senado Federal

REPUDIO AS AÇÕES MILITARES DA OTAN CONTRA A IUGOSLAVIA, DESPREZANDO A SOLUÇÃO PACIFICA PARA A QUESTÃO DO KOSOVO.

Autor
Geraldo Cândido (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Geraldo Cândido da Silva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL.:
  • REPUDIO AS AÇÕES MILITARES DA OTAN CONTRA A IUGOSLAVIA, DESPREZANDO A SOLUÇÃO PACIFICA PARA A QUESTÃO DO KOSOVO.
Publicação
Publicação no DSF de 28/05/1999 - Página 13303
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • JUSTIFICAÇÃO, ENTRADA, REQUERIMENTO, SENADO, SOLICITAÇÃO, ADOÇÃO, VOTO, REPUDIO, AÇÃO MILITAR, ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DO ATLANTICO NORTE (OTAN), PAIS ESTRANGEIRO, IUGOSLAVIA, PREJUIZO, PACIFICAÇÃO, SOLUÇÃO, CONFLITO, GRUPO ETNICO, BUSCA, AUTONOMIA.

O SR. GERALDO CÂNDIDO (Bloco/PT-RJ) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no mês passado dei entrada em requerimento para que esta Casa adotasse, em nome do Congresso Nacional, um voto de repúdio às ações militares desenvolvidas pela Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN, com apoio, melhor dizendo, sob as ordens dos Estados Unidos da América, contra a Iugoslávia, desprezando a solução pacífica para a questão do Kosovo.  

Pode parecer, aos menos avisados, que esta questão não tem grande importância para nós brasileiros, sendo a Iugoslávia um país tão distante e com o qual praticamente não temos relações. A estes, procurarei mostrar adiante que isto nos diz respeito, sim, e muito mais de perto do que mostram as aparências.  

A outros, os bombardeios podem parecer justificados, já que é revoltante ficar de braços cruzados frente à "limpeza étnica" perpetrada por Milosevic contra os kosovares. Até mesmo a expressão "limpeza étnica" nos traz imediatamente à memória o massacre dos judeus por Hitler.  

É esta a justificativa oficial para os bombardeios: "intervenção humanitária". Com ela, buscam nos colocar num dilema: ou apoiamos os ataques, ou estaremos apoiando, mesmo que indiretamente, um ditador sanguinário que oprime, massacra e quer expulsar todo um povo de sua terra.  

Deste ponto de vista, reforçado pela mídia televisiva, que nos mostra diariamente os sofrimentos e o desespero de multidões de kosovares expulsos de seus lares, a flagrante violação do Direito Internacional, que é cometida pela OTAN, não passa de filigrana jurídica.  

Voltarei adiante a este assunto da violação das normas internacionais. No momento, quero frisar que a aceitação deste argumento depende integralmente da aceitação da boa fé e da pureza de propósitos de quem o usa para justificar o emprego da força.  

É evidente que não há como apoiar Milosevic, em particular o que ele faz com o povo kosovar. Mas vale perguntar: é possível acreditar na boa fé e na pureza de propósitos da OTAN e dos Estados Unidos?  

Se é assim, como explicar que nada tenha sido feito contra a Turquia, que massacra os Kurdos? Que, ao contrário, no mesmo ano em que os massacres atingiram seu ápice, 1994, ela tenha se tornado o maior importador de equipamento militar americano?  

Como explicar que nada tenha sido feito contra o governo colombiano onde, de acordo com as estimativas do próprio Departamento de Estado, a quantidade anual de assassinatos políticos cometidos pelo governo e por seus associados paramilitares é similar ao de Kosovo, e onde os refugiados destas atrocidades somam bem mais de um milhão? Que, ainda assim, este é o maior beneficiário da assistência militar americana no Hemisfério Ocidental?  

Claro que a Colômbia e a Turquia explicam suas atrocidades, que os Estados Unidos apoiam, alegando que se defendem de guerrilhas terroristas. Mas esta, também, é a justificativa de Milosevic...  

E a invasão e os massacres dos Timorenses do Leste pela Indonésia apoiada pelos americanos, contra os quais muitas vozes brasileiras se levantaram - próximos que somos por falarmos a mesma língua, como explicar que não tenha sido respondida pela OTAN?  

Citemos um exemplo contrário: quando, em 1978, o Vietnã invadiu o Cambodja para terminar com as atrocidades de Pol-Pot, hoje bem conhecidas de todos, e alegando auto-defesa devido a ataques armados do Khmer Vermelho em áreas fronteiriças, foram duramente condenados pelos Estados Unidos por sua "violação ultrajante" do direito internacional. E os Estados Unidos reconheceram o Kampuchea Democrático como o governo oficial do Cambodja, devido à sua "continuidade" em relação ao regime de Pol-Pot, como explicou o Departamento de Estado.  

Lembremos que este mesmo argumento de "intervenção humanitária" foi usado para justificar o ataque japonês à Manchúria, a invasão de Mussolini na Etiópia e a ocupação de partes da Tchecoslováquia por Hitler. Realmente, este argumento serve para muitas coisas...  

Alguém poderia argumentar que, "desta vez", as intenções americanas são puras. É muito difícil retrucar a quem não quer ver - o pior cego, no dito popular. Mas digamos, para dialogar, que este argumento pudesse ser aceito. Mesmo assim, teríamos que verificar se os resultados correspondem às intenções alegadas.  

O que se viu foi justamente o contrário. Com o início dos bombardeios, longe de diminuir, as agressões aos kosovares foram brutalmente intensificadas, como resposta do regime sérvio, o que foi facilitado pela saída dos observadores internacionais. As levas de refugiados kosovares que a televisão mostra são, na verdade conseqüência da ação da OTAN. Como declarou o General-Comandante Wesley Clark, era "inteiramente previsível" que o terror e a violência sérvios se intensificariam após os bombardeios. Além disto, como também era inteiramente previsível, o poder de Milosevic, longe de ser enfraquecido, foi reforçado pelo apoio praticamente unânime dos sérvios que, compreensivelmente, se sentem agredidos.  

Pensemos agora nas conseqüências futuras. A curto prazo, pode-se aceitar como evidente o que disse o Financial Times de 27 de março: "cada bomba que caia sobre a Sérvia e cada assassinato étnico em Kosovo sugere que será escassa a possibilidade de que sérvios e albaneses vivam ao lado um do outro em alguma espécie de paz".  

Com relação a mais longo prazo, não posso deixar de citar um artigo do Le Monde Diplomatique de 13 de abril intitulado "É preciso saber terminar uma guerra":  

"O novo curso do presidente Clinton comporta o risco de criar nos Balcãs um caos persistente, cujos custos serão pagos pelos povos da região e cuja gestão caberá amanhã, evidentemente, à Europa". E continua: "Contrariamente à maioria dos governos do continente, que reafirmam a necessária intangibilidade das fronteiras, certos dirigentes americanos - e britânicos - já evocam, após uma fase de protetorado, uma possível independência do Kosovo. Ora, isto poderia arrastar a região numa engrenagem ainda mais catastrófica". Depois de mostrar como isto tenderia a criar enormes tensões territoriais visando a criação de uma Grande Albânia, uma grande Sérvia, uma Grande Croácia, o fim dos acordos de Dayton, da Boznia-Herzegovina e assim por diante, conclui: "Material para alimentar décadas de combates, de massacres e, certamente, de limpezas étnicas - esta deixaria de ser uma exceção, tornar-se-ia regra".  

Exagero? Talvez. Impossível? Certamente que não!  

Vê-se assim que a agressão, muito longe de concretizar as intenções que alega, não somente já teve resultados contrários como, ainda, arrisca piorá-los muito mais. Perde, assim, sua única justificação.  

Mas não é só isto. Oficialmente, também, alegou-se que o recurso à força foi a última saída, já que tinham fracassado as negociações pacíficas. Só que, desmentindo ainda mais as alegações da OTAN, esta história foi mal contada.  

Entre os dias 6 e 23 de fevereiro, foi feita uma convenção em Rambouillet. Os membros ocidentais convocados - Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França e Itália - concordaram no processo de autonomia gradativa em Kosovo, com acordo também do Governo iugoslavo. Mas, no último dia da convenção, o acordo foi entregue com um "Apêndice B", que não tinha aparecido antes. O texto integral do Acordo, incluindo o apêndice, foi recentemente publicado na Internet pelo Le Monde Diplomatique . 

Lendo este apêndice, entende-se facilmente o porquê do fracasso das negociações. Este apêndice contém disposições como as seguintes:  

Seções 6a e 6b: "A OTAN será imune a todo processo legal, seja civil, administrativo ou criminal". "O pessoal da OTAN, sob quaisquer circunstâncias e a qualquer tempo, será imune à jurisdição das Partes com respeito a quaisquer ofensas civil, administrativas criminais ou disciplinárias que possam ser cometidas por eles na RFI (República Federal da Iugoslávia)".  

Seção 8: "O pessoal da OTAN gozará, juntamente com seus veículos, navios, aviões e equipamentos, livre e irrestrita passagem e acesso desimpedido através da FRI incluindo o espaço aéreo e águas territoriais. Isto inclui, mas não é limitado a, direito de acampamento, manobra, acesso e utilização a quaisquer área ou facilidades necessárias para apoio, treinamento e operações."  

Seção 11: "À OTAN é garantido o uso de aeroportos, estradas, ferrovias e portos sem pagamento de taxas ou encargos ocasionados por mero uso."  

Seção 15: "As partes (o Governo iugoslavo) deverão, sob simples requisição, garantir todos os serviços de comunicação, inclusive broadcast, necessários para a operação, como determinado pela OTAN. Isto inclui o direito de utilizar tais meios e serviços como requerido para assegurar completas condições de comunicação e o direito de utilizar todo o espectro eletromagnético para este fim, sem custos."  

Seção 22: "A OTAN poderá, na condução das operações, ter necessidade de executar melhorias ou modificações em certas infra-estruturas na RFI, tais como estradas, pontes, túneis, prédios e sistemas utilitários"  

Em resumo: ou submissão completa ou bombardeio.  

E, antes do bombardeio começar, a Iugoslávia pediu a revisão do acordo. Não foi aceito.  

Fica claro, assim, que tanto a "intervenção humanitária" como o fracasso das pretensas negociações não passaram de pretextos para a guerra.  

Volto agora, como disse no início, à questão da violação do Direito Internacional. Cito Noam Chomsky, num artigo publicado na Internet, que recomendo a todos e do qual tirei outros dados citados aqui:  

"Há um regime de direito e ordem internacionais, compulsório para todos os países, baseado na Carta das Nações Unidas e resoluções subsequentes e nas decisões da Corte Internacional de Justiça de Haia. Em suma, a ameaça de uso da força está banida exceto quando tiver sido autorizada explicitamente pelo Conselho de Segurança da ONU depois que este tiver concluído que os meios pacíficos falharam, ou em autodefesa contra um "ataque armado" (um conceito estreito) até que o Conselho aja."  

Mais adiante, no seu artigo, ele lembra que "a França propôs uma resolução do Conselho de Segurança da ONU para autorizar o envio de mantenedores da paz da OTAN. Os Estados Unidos cabalmente recusaram, insistindo "em sua posição de que a OTAN deve ser capaz de agir independentemente da Nações Unidas", como explicaram funcionários do Departamento de Estado".

 

O ataque à Iugoslávia aparece agora, na sua inteireza, como manifestação do desprezo ao direito internacional por parte da "globalização" norte-americana - eu prefiro o termo "imperialismo", que tem a vantagem de não ser um eufemismo, mas concedo em usar o termo da moda, que muitos preferem. Para consolidar a hegemonia inconteste nos campos econômico, comercial e político, que conquistou desde o fim da guerra fria, a "globalização" norte-americana quer completá-la nos campos estratégico e militar afirmando seu direito de atuar como polícia do mundo e intervir onde bem lhe aprouver, sem ter de dar satisfações a ninguém.  

A que isto leva? Quem garante que, cobiçando as ricas reservas petrolíferas venezuelanas, os Estados Unidos, não resolvam atacar este país, argumentando, digamos, com os massacres de índios da Floresta Amazônica? Ou invadir o Brasil, pretextando a destruição da Amazônia e seus reflexos na ecologia mundial ou ainda os massacres de índios ou chacinas de camponeses? Não é preciso lembrar que, volta e meia reaparecem propostas de internacionalização da Amazônia, e é notório o interesse americano pela sua diversidade biológica.  

Seja como for, não é possível que o mundo aceite que um país, seja ele a maior potência mundial, se arrogue o direito de destruir normas internacionais que custaram muito sangue e sofrimento para serem consolidadas. A história deste século está cheia de exemplos das conseqüências deste tipo de atitude, e ainda está bem presente na nossa memória a Segunda Guerra Mundial.  

O repúdio à agressão contra a Iugoslávia, portanto, não diz respeito apenas aos sérvios. Diz respeito a todos os povos do mundo e, se nosso país, como afirma pela voz de seus diplomatas, quer mesmo construir um mundo livre de guerras e em que todos os povos tenham seus direitos reconhecidos e permaneçam livres de agressões, então é preciso que nos associemos ao coro de protestos que se levantam contra esta guerra bárbara.  

Precisamos exigir o fim dos bombardeios, o retorno das populações albanesas sob proteção da ONU, a retirada das forças sérvias do Kosovo e a retomada das negociações com vistas a uma solução pacífica do conflito.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/05/1999 - Página 13303