Discurso no Senado Federal

ESCLARECIMENTOS SOBRE A PROPOSTA DE REFORMA DO PODER LEGISLATIVO. REFORMULAÇÃO DO SISTEMA FINANCEIRO HABITACIONAL.

Autor
Alvaro Dias (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/PR)
Nome completo: Alvaro Fernandes Dias
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA HABITACIONAL.:
  • ESCLARECIMENTOS SOBRE A PROPOSTA DE REFORMA DO PODER LEGISLATIVO. REFORMULAÇÃO DO SISTEMA FINANCEIRO HABITACIONAL.
Publicação
Publicação no DSF de 10/06/1999 - Página 14851
Assunto
Outros > POLITICA HABITACIONAL.
Indexação
  • DEFESA, OBJETIVO, PROPOSTA, REFORMULAÇÃO, REFORÇO, LEGISLATIVO.
  • ANALISE, CRISE, SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO (SFH), RESULTADO, INEFICACIA, ADMINISTRAÇÃO, RECURSOS, PROVOCAÇÃO, DESEQUILIBRIO, ALTERAÇÃO, NORMAS, AGRAVAÇÃO, SITUAÇÃO, MUTUARIO, AUMENTO, PRESTAÇÕES, SALDO DEVEDOR, INADIMPLENCIA, PERDA, IMOVEL.
  • COMENTARIO, CRITICA, MARCO AURELIO ROSA, ADVOGADO, REFORMULAÇÃO, LEGISLAÇÃO, PREJUIZO, MUTUARIO, UTILIZAÇÃO, FINANCIAMENTO, PLANO DE EQUIVALENCIA SALARIAL, AQUISIÇÃO, CASA PROPRIA.
  • LEITURA, DECLARAÇÃO, JUIZ, INCONSTITUCIONALIDADE, DECRETO LEI FEDERAL, REGULAMENTAÇÃO, LEILÃO, SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO (SFH), AUTORIZAÇÃO, HIPOTECA, IMOVEL, DEVEDOR, AUSENCIA, DIREITO DE DEFESA, MUTUARIO.
  • INFORMAÇÃO, ENCAMINHAMENTO, EXPEDIENTE, ADVOCACIA, SENADO, SOLICITAÇÃO, AVALIAÇÃO, POSSIBILIDADE, DECRETAÇÃO, INCONSTITUCIONALIDADE, DECRETO LEI FEDERAL, IMPEDIMENTO, FAVORECIMENTO, AGENTE FINANCEIRO, SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO (SFH), PREJUIZO, MUTUARIO, INADIMPLENCIA.

O SR. ÁLVARO DIAS (PSDB-PR. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, antes do pronunciamento que devo fazer nesta tarde, eu gostaria de, sucintamente, trazer um esclarecimento em função do que tenho ouvido a respeito da proposta, recentemente apresentada, que pretende uma reforma no Poder Legislativo, nas suas três instâncias de atuação.  

A pretensão de redução do número de cadeiras é linear, não diz respeito apenas a Estados de determinada Região do País. Não há nenhum tipo de preconceito. Não se trata de uma postura elitista. Trata-se apenas de propor uma reforma que venha a fortalecer o Poder Legislativo.  

Ouvi também uma crítica dando conta de que estamos pretendendo a "fujimorização" do Brasil com o enfraquecimento dos Poderes. É risível essa afirmação, já que a pretensão que temos com a proposta é exatamente o oposto: é o fortalecimento do Poder Legislativo, que hoje vive um momento de desgaste sem precedentes. O Poder Legislativo já está tremendamente debilitado. Não há como enfraquecê-lo mais. O que queremos é exatamente o fortalecimento desse Poder. Mas esse tema será, sem dúvida, sempre polêmico e nós teremos a oportunidade de debatê-lo intensamente, com muita seriedade, já que a proposta que apresentamos é uma proposta séria.  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ocupo a tribuna, desta feita, para tratar de um assunto que angustia milhões de brasileiros e que se apresenta, em princípio, com a face rósea, para depois transformar-se em autêntico inferno. Refiro-me, Sr. Presidente, à angustiante questão que envolve o Sistema Financeiro de Habitação no Brasil.  

Ao estudar os problemas nos quais o Sistema Financeiro da Habitação está envolto, constatei, estarrecido, que os seus mutuários, em esmagadora maioria, vão, em pouquíssimo tempo, do sonho dourado ao mais terrível pesadelo, ao se depararem com prestações crescentes e um saldo devedor que não conseguem pagar.  

"Dos 2,35 milhões de contratos ativos existentes no País, 350 mil estão com prestações em atraso. Da inadimplência crônica à retomada do imóvel pelo banco, é uma amarga experiência que outras milhares de famílias estão passando. E o mais grave: o problema atinge brasileiros de todas as faixas de renda."  

A observação é de um técnico e expõe a face cruel do sistema, que não poupa mutuários, estejam eles em que camada dos escalões sociais estiverem, contanto que necessitem apelar para o Sistema Financeiro da Habitação a fim de realizar o sonho da casa própria e que, em pouco tempo, pode virar pesadelo.  

E por quê, Srs. Senadores?  

Porque o problema da inadimplência do Sistema Financeiro da Habitação resulta não só da crise econômica instaurada no País, como também de sua própria estrutura mal desenhada. Com ele ocorre verdadeiro paradoxo. Vejamos: foi criado como "política social", mas logo adotou um esquema eminentemente empresarial no tratamento das questões habitacionais, gerando incontáveis contradições que prejudicam enormemente os adquirentes da casa própria e os empurram para a falência total, e não resta dúvida de que a falência dos mutuários implica, necessariamente, na falência do próprio Sistema.  

Não hesito em afirmar que a crise do Sistema Financeiro da Habitação tem origem no distorcido processo de administração dos seus recursos. Estudiosos da questão apontam o ano de 1983 como aquele em que as inconsistências do Sistema emergiram sob a forma de um significativo desequilíbrio entre as fontes supridoras de recursos e as crescentes necessidades sociais de habitação. Essa situação de desequilíbrio provocou alterações nas normas que regem o Sistema, e aí as coisas se complicaram, pois foram tantas e tais alterações que acabaram por envolver o Sistema em um emaranhado de normas que o desfiguraram completamente.  

Hoje, o mutuário se depara com incompreensíveis regras, que se sucedem no universo normativo do Sistema Financeiro da Habitação, e se vê inerte diante delas. Afinal, são, sem exagero algum, milhares de atos, leis, decretos, resoluções, circulares, etc., que levaram um renomado jurista a afirmar, de forma categórica, que:  

"O Banco Central, ao longo dos anos, e após sucessivas reformas na legislação, veio aprimorando a ‘arapuca’ do direcionamento dos recursos, no âmbito do SFH".  

A citação é do jurista Marco Aurélio Rosa, em artigo sob o título: "A Equivalência Salarial nos Contratos do SFH", publicado na Revista Ajuris. Essa "arapuca", tão bem denominada pelo jurista, afeta todos os mutuários, pois, invariavelmente, todo financiamento - mesmo aqueles cobertos pelo Fundo de Compensação de Variações Salariais - torna-se um problema, a curto ou médio prazo, seja qual for a condição financeira do adquirente da casa própria.  

Um exemplo dessa "arapuca": um cálculo apresentado pelo banco financiador, seja referente à prestação ou ao saldo devedor, passa a ser um dogma estigmatizado, pois, apoiados em supostas formas de reajuste e em interpretações unilaterais da legislação, os financiadores creditam índices e evoluem dívidas, segundo fórmulas as mais mirabolantes e absurdas possíveis. Vejam a denúncia que faz o advogado Marco Aurélio Rosa na Revista dos Juízes do Rio Grande do Sul , ao tratar daquilo que ele mesmo chama de "engodo" que permeia os cálculos efetuados com base na tabela Price, comumente utilizada pelo SFH:  

"Para se ter em mente a rigidez do mundo das fórmulas e dos cálculos do SFH, basta ter presente que, para a apuração apenas das parcelas de amortização e juros da primeira prestação de um financiamento no Plano Equivalência Salarial, é necessário equacionar o seguinte:  

 

(((1+11,39/1.200)^(120)*11,39,11/1.200)/(1+11,39/1.200)^(120)^-1))*VF*1.15" 

 

Observem, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que essa equação, de acordo com o advogado que a denunciou, é apenas uma das muitas fórmulas que têm sido utilizadas para aferição do encargo financeiro e seus componentes dentro do Sistema Financeiro da Habitação brasileiro.  

Eis o irônico da questão: o Sistema foi concebido com o objetivo social de sanar o déficit habitacional do País, mas sobrevive e move-se em bases indiscutivelmente contraditórias e distorcidas. O resultado é um total desajuste entre o retorno dos empréstimos e a evolução dos saldos devedores dos contratos, cujo cálculo das prestações e dos juros acentua o enorme fosso gerado pelas distorções do modelo.  

Mas a situação daqueles mutuários não regidos pelo Fundo de Compensação de Variações Salariais é ainda mais absurda, chegando mesmo às raias do desespero. Permitam-me explicar:  

Ao atingir 95% do prazo de resgate, os mutuários percebem que pouco ou nada amortizaram do saldo devedor. Vou repetir: ao chegar a 95% do prazo de resgate, os mutuários não regidos pelo FCVS percebem que pouco ou nada amortizaram do saldo devedor. Parece incrível, mas é a pura verdade. Durante esse período todo, o dinheiro que desembolsaram cobriu quase que apenas juros, taxas e seguros. Repito: juros, taxas e seguros. Resta, então, ao desesperado mutuário requerer a dilação do prazo para pagamento. O Sistema lhe concede 50% além do prazo originalmente estabelecido, mas o absurdo, que nem Franz Kafka explica, continua, pois, ao final desse novo prazo, ainda resta um significativo resíduo de saldo devedor, o qual terá que ser pago em 48 horas, segundo cláusula contratual imposta pelo agente financiador, em outras palavras, pelo banco.  

Conclusão: do ponto de vista do mutuário, a situação é aflitiva, de desespero mesmo e, do ponto de vista dos gerentes do Sistema, a situação é caótica, ou seja, o SFH está à beira da falência. De um lado, os bancos alegam que a atualização do saldo devedor e das prestações é fundamental para a paridade entre o índice aplicado na Caderneta de Poupança e os contratos do SFH e, do outro lado, os mutuários alegam que suas dívidas são irreais e que as contas da Caixa Econômica, baseadas em índices mirabolantes e fórmulas esotéricas, não fecham nunca. No final, quem sai perdendo mesmo são os mutuários; afinal, já diz o ditado popular: "a corda sempre quebra do lado dos mais fracos", especialmente no Brasil.  

Numa primeira análise da questão, chega-se à conclusão de que a possibilidade de haver negociação é muito grande, e realmente é. A maioria dos contratos tem reajuste pelo Plano de Comprometimento da Renda, que prevê que o valor da prestação não pode superar 30% da renda do mutuário. Essa restrição, em tese, abre as portas para renegociação quanto ao valor da prestação. Mas é só, pois os financiamentos só possuem esse limite de comprometimento da renda no momento de fechar o contrato. Na prática, os encargos mensais têm crescido mais do que os mutuários têm condições de pagar. Essa é a dura realidade.  

Mas existe ainda um outro complicador: os reajustes das prestações mensais não são uniformes. Variam de acordo com o tipo de contrato. Nos financiamentos antigos, as prestações são reajustadas pela equivalência salarial e, com isso, o saldo devedor acaba por aumentar demais, já que as prestações só aumentam quando sobe o salário. No final do contrato, o resíduo está enorme.  

Seja qual for o tipo de contrato, entretanto, o mutuário depara-se com a permanência dos juros altos e, em algum momento, vê-se obrigado a quitar uma dívida para a qual não está absolutamente preparado. O mais diabólico, porém, é que, de fato, quem adquire sua casa própria pelo Sistema Financeiro Habitacional vê-se compelido a pagar um altíssimo custo, mas pelo dinheiro emprestado, e não pelo valor do bem financiado. É realmente uma situação kafkiana.  

Os absurdos, contudo, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não param por aí, e ouso dizer mesmo que a situação mais grave ainda não foi exposta. Refiro-me ao aspecto da inadimplência e do leilão dela resultante.  

As taxas e os juros incompreensíveis e exorbitantes cobrados pelo Sistema levam muitos proprietários à inadimplência, e um número muito grande deles não consegue negociar as prestações ou o saldo devedor e, por conseqüência, acabam perdendo seus imóveis, colocados a leilão pelo banco credor. Esse leilão é regido por uma lei, de tal forma draconiana, que arrepia juristas do País inteiro, seja ele advogado, seja ele julgador. Trata-se do malfadado Decreto-Lei nº 70, de 1966. Ele rege os leilões do sistema, já que regula a execução da hipoteca. Foi idealizado para favorecer o credor, pois lhe faculta executar a hipoteca do imóvel do devedor, permitindo-lhe realizar o leilão sem dar ao mutuário o sagrado direito de defesa. Doutrinadores que analisaram o decreto concluíram que a simples existência dele já é lesiva ao mutuário, pois que instaura um processo de cobrança especial e sumária, diferenciado dos processos de execução que regem as demais formas de contrato.

 

Não resta qualquer sombra de dúvida de que a execução especial prevista no Decreto-Lei nº 70/66 é totalmente incompatível com a ordem constitucional vigente no País. O juiz Amir Finocchiário Sarti, ao julgar um agravo de instrumento originário do meu estado, o Paraná, e cuja decisão está publicada na Revista do Tribunal Regional da 4ª Região, afirma alto e bom som:  

"O Decreto afronta, ostensivamente, entre outros, pelo menos os princípios do juiz natural, do contraditório e do devido processo legal, fulminando os incisos 35, 54 e 55 do art. 5º da Carta Magna. A execução nele prevista é privada, levada a efeito pelo credor sem controle jurisdicional imediato e sem possibilidade de qualquer defesa direta por parte do executado, que só tem uma cruel alternativa: purgar a mora (saldar o débito) ou sofrer inexoravelmente a perda do imóvel hipotecado, em leilão particular, tudo num retrocesso que rompe o fio da história, volvendo à fase mais primitiva do direito romano".  

Também a juíza Ramza Tartuce, do Tribunal Regional da 3ª Região, verberou contra o malfadado decreto-lei. Ela disse que "ele fere o direito da parte de somente se ver privada de seus bens por ordem judicial, como lhe assegura a Carta Magna" e argumentou:  

"Ora, se a norma constitucional, em seu artigo 3º, estatui, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil construir uma sociedade justa, livre e solidária; promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e a todos assegura igualdade perante a lei, garantindo a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5º) e, além disso, assegura que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal e, por fim, ao Poder Público atribui competência para promover programas de moradia e a melhoria das condições habitacionais (art. 23, inciso IX), é um contra-senso permitir que esse mesmo sujeito de direitos seja usurpado de um bem, sem lhe assegurar um pronunciamento judicial. Mas o Decreto-Lei 70/66 o permite."  

É por essa e por outras, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que o homem brasileiro é levado a descrer nas leis do seu país.  

O decreto-lei é tão absurdo, que o juiz Finocchiário Sarti chegou mesmo a dizer:  

"O Poder Judiciário não pode simplesmente ficar assistindo a realização desta forma violentíssima de cobrança extrajudicial, que permite seja o suposto devedor desapossado do imóvel hipotecado antes mesmo de poder valer-se de qualquer oportunidade de defesa. A Justiça não pode cruzar os braços, mantendo-se insensível diante de tão delicada, por vezes até dramática situação".  

Mas acontece, Sr. Presidente, que os juízes não têm o poder de modificar a lei, ainda que a considerem injusta. Podem não aplicá-la, como fizeram nesses casos por mim aqui destacados. O controle da constitucionalidade da lei cabe ao Supremo Tribunal Federal e também ao Senado, que a suspende após o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, podendo a Mesa da Casa, na forma do art. 103, inciso II da Carta Cidadã, propor Ação de Inconstitucionalidade. Por isso, entendo que o Decreto-Lei nº 70/66 não pode mais prevalecer e comunico à Casa que já encaminhei à Advocacia-Geral do Senado um expediente pedindo que o órgão proceda a uma cuidadosa avaliação da sua constitucionalidade, à luz da nova Carta Magna e levando em conta a jurisprudência mais recente. O objetivo é lograr a decretação, no todo ou em parte, da inconstitucionalidade do decreto editado com a nítida intenção de favorecer os agentes financeiros do Sistema Financeiro da Habitação, em detrimento dos mutuários levados à inadimplência.  

É tempo de cessar a enormidade da injustiça que arrepia juízes e advogados e que fere a nossa consciência de povo civilizado. Nessa luta, tenho a certeza de contar com a solidariedade de todo o Senado.  

Sr. Presidente, Srs. Senadores, essa é uma questão fundamental para o povo trabalhador do País, afinal, ao lado do emprego, a casa própria é, sem dúvida, a maior aspiração da família. Não podemos, com um decreto draconiano que coloca à margem do direito de morar dignamente milhares de brasileiros, permitir a existência de instrumentos dentro do sistema financeiro do País que têm possibilitado generosos lucros todos os anos.  

Por essa razão é que faço oficialmente, formalmente, solicitação à Advocacia-Geral do Senado para que realize um estudo aprofundado da questão jurídica, a fim de que se possa propor medida legal, lançando mão da prerrogativa de que dispõe a Mesa do Senado da República, no sentido de decretar a inconstitucionalidade dessa medida perniciosa aos interesses de uma sociedade justa, fraterna e solidária.  

Muito obrigado, Sr. Presidente.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/06/1999 - Página 14851