Discurso no Senado Federal

DESENCANTO COM O SISTEMA PRESIDENCIALISTA BRASILEIRO, RESPONSAVEL PELA ATUAL CRISE POLITICA.

Autor
Bernardo Cabral (PFL - Partido da Frente Liberal/AM)
Nome completo: José Bernardo Cabral
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SISTEMA DE GOVERNO.:
  • DESENCANTO COM O SISTEMA PRESIDENCIALISTA BRASILEIRO, RESPONSAVEL PELA ATUAL CRISE POLITICA.
Aparteantes
Ramez Tebet.
Publicação
Publicação no DSF de 19/06/1999 - Página 15733
Assunto
Outros > SISTEMA DE GOVERNO.
Indexação
  • ANALISE, CONFLITO, PODERES CONSTITUCIONAIS, BRASIL, DISPUTA, INFLUENCIA, CARGO PUBLICO, FALTA, APOIO, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DA SOCIAL DEMOCRACIA BRASILEIRA (PSDB), DECISÃO, PRESIDENTE DA REPUBLICA.
  • DEFESA, SISTEMA DE GOVERNO, PARLAMENTARISMO, PREVENÇÃO, CRISE, ATUALIDADE.
  • REGISTRO, INFERIORIDADE, REPUTAÇÃO, CLASSE POLITICA, OPINIÃO PUBLICA, PREJUIZO, ESTADO DEMOCRATICO, RISCOS, DITADURA.
  • DEFESA, LEGISLATIVO, NECESSIDADE, PRESERVAÇÃO, DEMOCRACIA.

O SR. BERNARDO CABRAL (PFL-AM. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, em determinadas horas, talvez fosse melhor não desempenhar mandato eletivo. Não pelas frustrações, pelo desencantamento, pelo desconforto para dar resposta a certas indagações.  

Ainda há pouco, um velho amigo, colega de profissão, com quem várias vezes tive encontros na Ordem dos Advogados do Brasil, no Instituto dos Advogados Brasileiros, ao longo dos últimos vinte anos, perguntava-me: "O que é que se passa em Brasília? Que confronto existe entre os Poderes? Ora o Poder Legislativo com o Judiciário, ora o Executivo com o Legislativo. Um desencontro a apontar caminhos que não se sabe qual a solução". E me dizia ele: "O que é que está por trás de tudo isso? Em que ponto da história do Brasil um Ministro da Justiça não pôde fazer o seu subordinado hierárquico?" E eu a escutar, a ouvir, já sabendo no meu íntimo o que é um país fora do trilho democrático. Mal me preparava para talvez balbuciar uma resposta, quem sabe sem muita convicção, quando ele continuou a indagação: "E o Presidente da República, que nomeia um auxiliar de terceiro escalão, e o seu próprio Partido não lhe dá o apoio necessário para justificar seu ato? O que há por trás de tudo isso?"  

Eu lhe disse que, ainda anteontem, li um artigo de um cidadão - cujo nome não vem ao caso registrar - que fazia uma profunda restrição ao Presidente da República. Relembrava os seus tempos de Senador e de cultor da Sociologia, para, nos tempos atuais, manchar toda a sua biografia. O artigo era penosamente crítico, desmoralizante até.  

Fiquei meio perplexo, Sr. Presidente. Eu, que comecei a fazer política em 1962, quando me elegi Deputado Estadual da minha terra, época em que as assembléias eram tidas, na maioria, por um valor, em que se apontava aquele que não estava à altura de exercer o mandato eletivo, concedido pelo povo com a segurança das urnas. Vê-se hoje que o Parlamento está absolutamente sofrendo restrições. Não importa que nele existam as exceções; elas estão em toda regra para comprovar a sua existência.  

Ainda ontem, num programa político de televisão, ouvi o que se disse do Congresso brasileiro, que ele estava de cócoras, rastreando, arrastando-se por um caminho que não se pode conceber num sistema sério de Governo.  

Só há uma resposta: o mal desse sistema presidencialista de governo. Respeito os que o defendem, mas tenho a convicção de que, se tivéssemos um sistema parlamentarista de governo, isso não estaria acontecendo.  

Ao responder a esse meu colega de profissão, eu lhe disse: "Veja o que é o destino! O Presidente Fernando Henrique Cardoso, que defendeu o sistema parlamentarista ao longo de toda a Assembléia Nacional Constituinte, seria um Chefe de Estado imbatível". Naquela função, ao se deslocar para o estrangeiro, representando o seu País, com as condições intelectuais que ornam a sua personalidade, dificilmente Sua Excelência sofreria esse tipo de críticas. Mas ao ser, ao mesmo tempo, Chefe de Governo e Chefe de Estado, como é típico do presidencialismo, não há como essas restrições desaparecerem. E uma coisa envolve a outra, uma coisa contamina a outra, a mostrar que sequer na nomeação de um funcionário de terceiro escalão - se fosse de um Ministro de Estado, vá lá a campanha! - o Senhor Presidente da República escapa das agressões, que lhes são atinentes porque é Chefe de Governo. Ainda há pouco, eu ouvia V. Exª lembrar a anistia, que passou e que hoje é esquecida.  

Essa pergunta, Sr. Presidente, seguida de tantas outras que me fez esse meu colega, são as mesmas que o povo brasileiro está fazendo. O que se passa com os homens públicos? Onde é que está a ética? Onde é que a postura pessoal está morando? Qual a roupagem que hoje veste um político? As profissões estão-se abastardando; ora é um médico que causa a morte do seu cliente, um advogado que se apropria da renda do seu patrocínio em função de alguém que lhe confia a causa, numa apropriação que jamais havia em passado recente. Os prédios que caem, os economistas que erram.  

Sr. Presidente, agora sou eu quem pergunta à Casa: o que é que se passa neste País? Como é que as pessoas se entregam, deixando que o lado moral se acople, se junte, se faça nexo das desonestidades? Ora é um grampo que explode, a revelar conversas que deveriam, na intimidade, ser apreciadas; ora é a desconfiança que se põe de que alguém está se locupletando no cargo público, como se hoje estivesse se tornando simples tomar posse num ministério ou numa secretaria de Estado para ampliar a sua conta bancária e, de lá, sair com o manto da impunidade a lhe dar a auréola de santo, porque, daí a pouco, cai no esquecimento.  

As perguntas que o povo faz, Sr. Presidente, são aquelas que começam a minar o regime democrático, a mostrar que, daqui a pouco, pode vir alguém com tradições de um Fujimori para fechar o Congresso, que já lhe põe tantas dúvidas da necessidade do seu funcionamento. Por igual ao Judiciário, ficando apenas o Executivo.  

Este País, Sr. Presidente, nasceu de uma República sob o signo de uma ditadura, proclamada sem que o povo dissesse se a queria. Agora, acostumado sempre ao lado do tacão, do poder, da coação, o povo entende que o Governo é fraco. Não é o Governo que é fraco em si - e não falo deste, que, de vez em quando, mostra a sua fraqueza -; fracos, Sr. Presidente, são os homens que não têm a compostura para assumir a responsabilidade dos atos que lhe são inerentes. E falo, como quando aqui no começo registrava, do desencanto que começa a tomar conta dos que fazem política por idealismo, e é claro que muitos dos que aqui se encontram - quando falo aqui, digo o Congresso, e quando me refiro a Congresso, falo de Câmara e Senado - não o estão por mera vaidade ou por uma ambição desmedida, mas pela vocação de servir. Aquele mandato que lhes é dado não é apenas em branco, mas na confiança de que quem o recebeu não trairá o que o povo quer. Há falta de responsabilidade, de compostura, de disciplina, de organização, e não há como se sustentar alguma organização se não houver disciplina, se a hierarquia não for respeitada, porque senão nós chegaremos na baderna.  

Sr. Presidente, eu, que já passei dos sessenta anos, que já vi muita coisa neste País, que fui cassado pelo chamado governo militar e perdi dez anos de meus direitos políticos e o lugar de professor na faculdade, e tudo isso foi esquecido em favor de dias melhores pelo meu País, já começo a ficar descrente, a achar que não valeu a pena, que não valeram a pena tantos sacrifícios, porque as coisas começam a se repetir. É incrível o fato de que somos capazes de prever o que acontece, porque a previsão chega a ser recidiva, num instante em que não sabemos para onde estamos caminhando.  

Há uma revolta latente no meio popular. Há um descontentamento que ora se nota na invasão de um prédio público, ora na ocupação feita por aqueles a quem se convencionou chamar de trabalhadores do Movimento dos Sem-Terra. Mas tudo isso, Sr. Presidente, é um espectro que se põe para a frente sem que se esqueça o que está vindo do passado, como num filme, como numa reprise que vivemos quando era preto-e-branco e que hoje nos chega colorido.  

Eu me dou conta, Sr. Presidente, de que este País precisa encontrar o seu caminho. Não há como uma nação se pôr de joelhos, porque ninguém de joelhos é abraçado, a posição é desconfortável. É preciso que se esteja de pé, sem se omitir, sem fugir, sem desertar. E nós estamos vendo que quem está sendo sacrificado é apenas o Poder Legislativo. As primeiras pedras são sempre atiradas contra o Parlamento. Esquecem-se de que, do taquígrafo, do funcionário comum, do funcionário mais graduado ao Parlamento, aqui se trabalha, aqui se produz. Não importa que em determinadas horas encontremos o Senado como hoje. É mais um instante que precisamos corrigir. É preciso saber aquilo que se tem para dar, para que, no instante em que se fizer o exame, a análise e a crítica, diga-se, pelo menos, que há uma minoria, e que essa minoria pode ser composta na exceção, para que não sejamos colocados todos, como se diz no Nordeste, "no mesmo balaio".  

Ah, Sr. Presidente, o que vem por aí - e não quero fazer uma profecia pessimista, mas é o que se anuncia, se vislumbra - são dias pouco confortáveis. Quando, há um ou dois meses, me aconselharam a retirar a placa oficial do automóvel que uso para o serviço do Senado e nele colocar uma placa fria, porque eu poderia ser motivo de vaias, a minha resposta foi que jamais faria isso, porque o uso para o trabalho e do trabalho para a minha residência.  

Quem tem fachada de catedral, Sr. Presidente, e fundos de bordel que se acautele, porque o povo está vendo dos dois lados. O povo já não entende, já não aceita isso, porque reclama uma postura coerente.  

Eu gostaria de estar fazendo um discurso por escrito, denso, escorreito, com cautela e dentro de um tema mais ameno. No entanto, minha consciência me agride, Sr. Presidente, e reclama que é preciso que alguma coisa seja feita, e que o Parlamento dê esse passo, sem sair da sua caminhada retilínea, mas também sem ficar na sua acomodação, desprezando o blablablá que possa ser entendido por outros que não vêem que estamos prestando um grande serviço à Nação.  

O Sr. Ramez Tebet (PMDB-MS) - Permite-me V. Exª um aparte, Senador Bernardo Cabral?  

O SR. BERNARDO CABRAL (PFL-AM) - Parlamento fechado é ditadura implantada; ditadura implantada é o povo sem voz; e o povo sem voz é um eco que não existe. E como quero que ele exista, Sr. Presidente, ouço o Senador Ramez Tebet.  

O Sr. Ramez Tebet (PMDB-MS) - Perdoe-me, mas entendo que se V. Exª tivesse trazido até mesmo um roteiro para a sua explanação, se tivesse trazido o seu discurso escrito, talvez ele não ecoasse da forma como está ecoando nos meus ouvidos e penetrando fundo na minha consciência. V. Exª aborda a crise que existe no País - crise evidente, Senador Bernardo Cabral. Eu diria crise de autoridade, porque nunca se viu ao que se está assistindo hoje neste País. Faço essa crítica de forma altamente construtiva, porque talvez o Presidente da República, pela formação parlamentarista que acredito que tenha, Constituinte de 1988 que defendeu o sistema parlamentarista, se esqueça que estejamos no sistema presidencialista. Porque, positivamente, creio que a História não registra o caso de um Presidente da República que tenha nomeado um auxiliar e colocado-o imediatamente sob investigação. Aí, cumpre citar aquele provérbio latino:

o tempora, o mores! . Sabe por quê? Porque, a meu ver, se se trata de um agente de confiança do Presidente da República e se Sua Excelência acha que esse agente de confiança merecia ser investigado, não deveria tê-lo nomeado. Mas também me espanta que o nomeado tenha aceito um cargo de confiança para ser investigado. Quer dizer, positivamente, isso fere a lógica, isso fere o bom senso. Eu diria que isso agride o raciocínio de quem quer que seja. Então, essa é uma crise de autoridade. Muito bem, V. Exª também disse, acertadamente, que talvez o Congresso Nacional esteja até no pelourinho da opinião pública, sim. Mas por que isso? Porque a opinião pública está insatisfeita com as suas instituições de um modo geral. A opinião pública quer resultado. Agora mesmo, quero ir para a tribuna para demonstrar como a concentração de renda no País, ao invés de diminuir, tem aumentado, segundo estudos de eminente professor da Unicamp. Então, a opinião pública tem razão de se rebelar. E se rebela contra quem? Justamente contra quem tem responsabilidade de resolver os seus problemas. Mas, Senador Bernardo Cabral, não sei se V. Exª concorda comigo, o Congresso Nacional tem trabalhado. Essas CPIs têm produzido efeito. Além disso, temos elaborado e votado leis, embora as mais importantes a Nação ainda esteja aguardando, como a reforma tributária e a reforma política. O meu aparte é mais para parabenizar V. Exª, que sempre traz à consideração do Senado e à consideração da consciência nacional a sua palavra de homem ponderado, equilibrado, vivido, de emérito jurista e constitucionalista, Relator da Constituição de 1988, portanto o seu maior conhecedor. Que todos nós ouçamos as ponderações de V. Exª. Vamos prosseguir nesse trabalho, que não é trabalho a ser feito da noite para o dia, não é trabalho de 24 horas, mas não pode parar, porque a Nação brasileira realmente está exigindo providências para tudo o que está acontecendo. Felicito V. Exª.  

O SR. BERNARDO CABRAL (PFL- AM) - Senador Ramez Tebet, em primeiro lugar, agradeço a V. Exª pelo aparte. Juntamente comigo, agradecem uma centena de jovens estudantes que estão na galeria do Senado, porque acabam de ouvir uma assertiva rigorosamente verdadeira: o País está em crise; e o que é mais grave, crise institucional, porque não há crise política.  

Ouso afirmar que nenhuma autoridade se afirma pela omissão, referindo-me à declaração de V. Exª de que o Presidente da República, talvez ainda voltado para a época em que defendia o parlamentarismo, esquece-se de que estamos no presidencialismo, porque abre mão do seu poder de nomear um cidadão, ou, se o nomeia, logo após manda investigá-lo. E, abrindo mão da autoridade, está-se omitindo.  

Essa mocidade agradece a V. Exª pelo aparte, porque me permite fazer as considerações que faço. Quando se diz que o exemplo é que frutifica, nada mais certo. Que possam esses jovens estudantes que aqui se encontram freqüentando, visitando, olhando, analisando o que se passa no Senado colher que a vida pública é feita de muitos percalços, de desencontros, mas, outras vezes, nos permite atingir o nosso objetivo.  

Ontem, na seqüência de perguntas que me faziam, a resposta a uma delas era do próprio interlocutor, que dizia: "Ainda bem que os militares estão fora de toda essa confusão, ainda bem que não foram convocados" - lembrando o episódio de 1964. E alguém ao meu lado anunciava: "Não estão porque estão sendo mal pagos, estão recebendo soldos pequenos, estão todos atravessando uma crise".  

Portanto, o País está numa crise, que não é mais latente, uma crise que está aí aos olhos de todos. E estamos querendo resolvê-la - como se fosse possível - empurrando com a barriga, deixando como está para ver como fica, incorrendo em omissão de autoridade.  

Ora, o eminente Senador Ramez Tebet dá o seu aparte com a responsabilidade de quem foi advogado ao longo da vida inteira, Governador do seu Estado, membro e depois dirigente da OAB - Ordem dos Advogados do Brasil. E eu, Sr. Presidente, que fui Relator da Constituinte, que fui Ministro da Justiça, devo registrar que o cargo que mais alegria me deu quando o exerci e que mais me honrou foi o de Presidente da OAB, pois nessa Organização aprendemos - e a frase é minha, talvez não seja perfeita - que o advogado é o cirurgião plástico do fato. E V. Exª acaba de demonstrar isso no aparte.  

Nessa cirurgia, ao trazer o fato à sua presença, ao quebrar estruturas que possam estar sendo demasiadas, seja na defesa que faz ou na acusação que promove, o advogado fica de um lado, porque não dá para estar dos dois lados ao mesmo tempo. Isso acabaria ferindo o preceito bíblico de que ninguém pode servir a dois senhores concomitantemente. É por isso que o eminente Senador Ramez Tebet diz que se atreve a interromper meu discurso, quando lhe respondo que só o enriquece.  

Não há roteiro, não precisamos realmente de fazê-lo, porque o povo está indicando, Sr. Presidente. O povo está reclamando, pedindo, reivindicando que se ponha um freio, que se coloque um paradeiro nessa crise institucional, que todos sabemos como está começando, mas que nenhum brasileiro será capaz de dizer de como será seu término, de que forma se dará a conclusão.  

Por isso, vejo que contribuí para alguma coisa. Aos poucos que aqui estávamos juntaram-se outros mais a dizer que estamos cumprindo o nosso dever. E, se o cumprimos, o povo há de registrar que ele não está só, porque esta é a sua Casa, é aqui que ecoam os clamores populares, é aqui que suas reivindicações são registradas.  

Nesta manhã de sexta-feira, quero dizer mais uma vez aos meus eminentes colegas Senadores: nenhuma autoridade se afirma pela omissão.  

Muito obrigado.  

 

iZ W


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/06/1999 - Página 15733