Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO VIGESIMO ANIVERSARIO DA ANISTIA NO BRASIL.

Autor
Roberto Freire (PPS - CIDADANIA/PE)
Nome completo: Roberto João Pereira Freire
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO VIGESIMO ANIVERSARIO DA ANISTIA NO BRASIL.
Publicação
Publicação no DSF de 19/08/1999 - Página 20623
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, BRASIL, PREDOMINANCIA, AUTORITARISMO, EXCLUSÃO, CLASSE SOCIAL, LUTA, LIBERDADE, DEMOCRACIA.
  • COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO, ANISTIA, BRASIL, IMPORTANCIA, HISTORIA, CONSTRUÇÃO, ESTADO DEMOCRATICO.

O SR. ROBERTO FREIRE (Bloco/PPS-PE. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, senhores e senhoras que muito nos honram com sua presença, representando os milhares de cidadãos brasileiros anistiados.  

A democracia, infelizmente, não é uma tradição que nos acompanha historicamente. O autoritarismo - e todas suas práticas e seus efeitos - chegou com as caravelas e marcou profundamente a nossa cultura política nestes 500 anos de existência do Brasil como projeto de nação. A história brasileira não tem sido outra, senão a luta pela ampliação dos espaços de liberdade, luta árdua, diuturna, que ceifou, pelos anos afora, milhares de vidas que acreditaram na utopia da felicidade e de uma sociedade mais justa.  

Não seria incorrer em equívoco afirmar, com todas as letras, que a exclusão social é uma das pesadas marcas que nos perseguem. Foi assim na relação com os índios, nos primórdios da colonização até os dias de hoje; com os negros, que eram mercadorias, semoventes, na época da escravidão, e que nem direito à alma podiam ter; com os milhões de pobres de ontem e de hoje, cerceados no acesso aos bens e à própria cidadania. Tal exclusão social só se manteve pela violência no passado e só se mantém nos dias atuais em virtude da negligência e da insensibilidade das nossas elites.  

Aliás, o autoritarismo e a exclusão social e política foram dois instrumentos fundamentais para alicerçar os pactos e acordos de elite que vêm empurrando o nosso destino. O povo nem sempre esteve na linha de frente dos chamados grandes acontecimentos nacionais, e bastaria citarmos dois deles para que isso ficasse comprovado: o advento da Independência e a Proclamação da República. Talvez nasça desse fenômeno a nossa distorcida democracia de massas, ainda eivada de vícios e privilégios, portanto não compatível com os estágios mais avançados proporcionados pela civilização nesta virada de século.  

Não somos hoje um País sem democracia. Mas precisamos reconhecer: se ela prevalece, deve-se à teimosia e à vontade férrea do nosso povo por mais liberdade. Ante os muros duros do autoritarismo, a democracia conseguiu instalar-se em suas fendas, alargou-as, rompeu e derrubou colunas, espraiou-se pela cidades e pelos campos. Transformou-se em vontade coletiva e proclamou a sua necessidade de ampliar-se cada vez mais, não aceitando qualquer tipo de tutela ou controle.  

O sentimento por liberdade, mesmo na autoritária sociedade brasileira, não admite mais ficar preso em redomas de vidro. Ele precisa de ar para respirar e expandir-se.  

E é desse sentimento de liberdade que tratamos nesta tribuna. Hoje comemoramos uma data importante: os vinte anos da anistia promulgada em 1979, que abriu uma nova página de esperança para todo o povo brasileiro.  

Mesmo sendo uma instituição voltada para estabelecer a concórdia e a repactuação em sociedades fraturadas politicamente, poderíamos afirmar que, no caso brasileiro, a anistia tem servido também para atestar e desnudar o caráter atrasado de nossas estruturas de poder, públicas ou privadas. Suas edições, só para ficarmos nesses dois últimos séculos, são contadas às dezenas – quase sempre restritas e concebidas sem vocação universal.  

Houve adoção de mecanismos de anistia em 1818, 1822, 1825, 1835, 1844, 1875, 1892; durante vários governos da República Velha; em 1930, quando Getúlio Vargas assumiu o poder; em 1934 e 1945 e em 1946, quando da redemocratização; em 1956, com Juscelino Kubitschek; em 1961 e 1963, esta última no Governo Jango.  

Nesse contexto, a anistia de 1979 poderia ser entendida erroneamente como mais uma concessão de um regime isolado ou uma espécie degradada de indulto geral, subordinada à eficácia da Lei de Segurança Nacional. Mas ela cumpriu função importante, pois permitiu a libertação de dezenas de presos de consciência e trouxe para o cenário político milhares de cidadãos proscritos por mais de uma década pela ditadura militar. Os grilhões que cerceavam a liberdade estavam rompidos.  

A anistia de 1979, ampliada mais decisivamente com a Constituição promulgada em 1988, já em pleno regime democrático, deixou de ser apenas um acontecimento de rotina para projetar a imagem do Brasil que realmente queremos. Diríamos, foi uma virada histórica, um passo largo no sentido de acreditar ser possível deixar para trás, um dia, o nosso legado autoritário.  

A anistia de 1979 pode ser medida em números. Permitiu a libertação imediata de 200 presos políticos; recuperou os direitos de 128 brasileiros banidos e de 4.877 políticos que tiveram seus mandatos populares cassados; viabilizou a volta de 10 mil exilados, obrigados a deixar a sua pátria, e tornou sem efeito a punição a 263 estudantes, atingidos pelos decretos da ditadura. Mais de 500 mil pessoas tiveram processos e outras punições de caráter político anulados. A política brasileira, com isso, começava a oxigenar-se.  

Como não estamos subindo a esta tribuna para falar às gerações passadas, fazemos questão de evidenciar as dificuldades e os embates que estiveram presentes na luta pela conquista da anistia promulgada em 1979. Se é verdade que no interior das forças governistas algumas poucas vozes corajosas proclamaram a sua necessidade, também é verdade que, no campo oposicionista, havia ações em sentido contrário, que buscavam mitigá-la, obstaculizá-la, controlá-la.  

Debito ao Encontro Nacional do Movimento Democrático Brasileiro – MDB –, realizado em maio de 1971, na cidade de Recife, o início da grande marcha pública da luta pela anistia em nosso País, transformada em um amplo movimento de massas capaz de mobilizar milhares de pessoas em praças públicas. A tese já havia sido aprovada no VI Congresso clandestino do Partido Comunista Brasileiro – PCB –, em 1967, mas coube ao MDB, como Partido legal, levá-la ao Congresso, Assembléias Legislativas, Câmaras de Vereadores, abrindo espaços para incorporar ao movimento amplos setores de uma sociedade civil latente, porém ainda cerceada e amedrontada pela força do terror.  

Lembro que, no próprio encontro aludido do MDB, a tese, acompanhada também da proposta de Constituinte, não gozava de unanimidade. De um lado, a favor de sua aprovação, alinharam-se políticos novos e emergentes, e entre eles citamos os pernambucanos Marcos Freire, Jarbas Vasconcelos e Fernando Lyra, o paulista Freitas Nobre, os gaúchos Nadyr Rosseti e Alceu Colares, o carioca Lysâneas Maciel, todos esses juntos conosco, os comunistas. Em nome da prudência e imaginando não ser o momento para forçar o avanço da democracia, ficaram contra a proposta figuras de reconhecidos compromissos com a liberdade, como Tancredo Neves, Thales Ramalho, Ulysses Guimarães – para citarmos alguns –, sendo que este último viria a se transformar, logo adiante, no símbolo nosso da resistência cívica.  

Alimentaram a luta outras iniciativas. Em 1974, Terezinha Zerbini, representando a OAB, lança o Movimento Feminino pela Anistia. Em 1978, é fundado o Comitê Brasileiro pela Anistia, com a incumbência de coordenar todas as ações nesse campo. Ainda em 1978, com o saudoso Senador Teotônio Vilela presidindo a comissão mista do Congresso Nacional, tivemos o privilégio de coordenar, logo após a sanção da anistia, a edição de um livro – que alguns dos senhores inclusive já receberam - que considero quase um vade-mécum, porque nele se encontram – e os senhores verão – não apenas a tramitação da anistia no Congresso, mas aquela vivida nos cárceres, nos exílios, nos movimentos sociais que a apoiavam.  

À mesquinharia do governo militar, que enviou e forçou a aprovação no Congresso de um projeto de anistia restrita, pois imaginava ser possível ainda controlar a avalanche democrática que crescia em todo o País, temos exemplos de grande altivez, pessoas que, como falei, mesmo sendo sustentáculos do regime, se posicionavam pela liberdade. Lembro-me do Deputado Djalma Marinho, da Arena do Rio Grande do Norte, autor de uma emenda que, naquele momento de discussão e debate, transformava aquela anistia em ampla, geral e irrestrita. Essa emenda foi derrotada no plenário da Câmara dos Deputados por apenas quatro votos. E, naquela época, a Oposição, restrita ao Movimento Democrático Brasileiro, tinha uma minoria expressiva, porque a maioria da Arena não se poderia falar de nenhuma expressão.  

Os avanços democráticos de um país sempre são conquistas coletivas, e não obra de uns poucos. Em relação à anistia não seria diferente. Teotônio Vilela, merecidamente, ao sair percorrendo o Brasil, visitando cadeias e participando de debates em recintos públicos ou privados, simbolizou a conquista que aqui comemoramos. E não foi por outro motivo que, quando imaginei esta comemoração, entreguei-a ao Instituto Teotônio Vilela, como uma forma de reverenciar aquela figura. Porém, outras lideranças, não menos importantes, não podem ser esquecidas e citamos algumas delas, que estão na minha memória e nas gloriosas páginas da História deste País: Marcos Freire, Ulisses Guimarães, Nelson Carneiro, Antônio Mariz, Franco Montoro, Humberto Lucena, dentre centenas de outros. Isso sem contar os milhões de brasileiros, vivos, que continuam sustentando essa bandeira e contribuindo para alargar os ideais de liberdade em nossa Pátria.  

Como todos sabemos, a anistia, restrita em 1979 e ampliada pelo entendimento liberal da Justiça e pela Constituição de 1988, ainda não está completa se tomarmos a democracia como um processo em permanente ampliação. E aqui se encontra presente um representante de marinheiros e fuzileiros navais que ainda não estão contemplados pela anistia, talvez o único caso neste País, de forma inconcebível e incompreensível. Estima-se que mais de mil pessoas prejudicadas em seu exercício profissional durante o regime, incluindo vários militares, vêm tendo os seus direitos reduzidos e infelizmente até sendo suprimidos no atual Governo de Fernando Henrique Cardoso. Um paradoxo, tendo em vista que foi o próprio Presidente um dos principais interlocutores da luta pela anistia no Brasil. Ele próprio, um anistiado.

 

Para nós que lutamos pela anistia política, que agora comemoramos, queremos mais. Não aceitamos a atual estrutura de poder que ainda mantém privilégios e, portanto, não rasgou definitivamente o pacto de elites que há tantos anos infelicita o nosso povo. Nesse sentido, até do ponto de vista simbólico, proclamamos a necessidade da anistia para os quase 50 milhões de brasileiros pobres, excluídos da repartição das nossas riquezas, que não são poucas.  

Vamos além. É preciso anistiar, de uma vez por todas, a cidadania brasileira e a liberdade política e partidária, ainda hoje vergonhosamente ameaçadas por forças restauradoras. Inclusive, hoje, pela manhã, numa reedição de rolo compressor a que assistíamos quando aqui, neste Congresso, existia a Arena, está-se tentando criar uma legislação sobre reforma política e eleitoral própria daqueles que pretendem cercear a liberdade.  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, hoje é um dia de reflexão. Se queremos olhar para o futuro, o maniqueísmo de nada vale. Se apontamos fatos do passado é muito mais para reafirmar consciências no futuro e não para ficar fazendo um acerto de contas que nunca teria fim. O Brasil no século XX errou muito. Se queremos ser uma Nação realmente soberana e democrática do século XXI, esses erros não podem persistir. O povo já tomou consciência desse fato e nossas elites devem saber disso.  

A nossa geração trouxe a democracia até aqui. Pagamos o preço da supressão das liberdades por um regime de sombras, tempo de chumbo que bloqueou o exercício pleno da cidadania, distorceu o quadro partidário e atrasou as soluções para a grave crise que solapa as bases da Nação. Apesar dos pesares, essa geração cumpriu com o seu papel.  

A anistia permitiu a volta à política de toda uma geração de patriotas, refazendo elos de ligação entre os sonhos do passado e a utopia contemporânea, essa mais complexa, embora mais rica em possibilidades e soluções. Que a anistia de 79 sirva para lembrar às gerações mais novas e futuras que nenhuma causa é perdida, que nenhum tipo de arbítrio é eterno e que toda forma de cerceamento se desmancha no ar. A liberdade tarda, mas não falha. (Palmas)  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/08/1999 - Página 20623