Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO VIGESIMO ANIVERSARIO DA ANISTIA NO BRASIL.

Autor
Alvaro Dias (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/PR)
Nome completo: Alvaro Fernandes Dias
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO VIGESIMO ANIVERSARIO DA ANISTIA NO BRASIL.
Publicação
Publicação no DSF de 19/08/1999 - Página 20626
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, REGIME MILITAR, AUTORITARISMO, BRASIL, LUTA, RETORNO, LIBERDADE, DEMOCRACIA.
  • HOMENAGEM, VITIMA, MORTE, TORTURA, DITADURA, ESPECIFICAÇÃO, ESTADO DO PARANA (PR), COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO, ANISTIA, BRASIL.

O SR. ÁLVARO DIAS (PSDB-PR. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no dia 28 de agosto de 1979, o General João Baptista Figueiredo, então ocupando a Presidência da República, sancionava a Lei da Anistia que havia remetido ao Congresso Nacional. Com esse gesto, afirma Elio Gaspari, "encerrou uma noite de 15 anos".  

Vinte anos se passaram depois desse gesto. O Brasil mudou profundamente. Os anos de chumbo ficaram para trás. Com a Constituição de 88, a "Constituição Cidadã" do saudoso Ulysses Guimarães, iniciamos uma caminhada na direção da construção do Estado Democrático de Direito, animados por uma esperança que, apesar dos percalços, ainda permanece viva e atuante.  

Talvez, para boa parte das novas gerações, não fique perfeitamente claro o alcance desta comemoração. Afinal, vinte anos é o espaço de uma geração. E, nos dias que correm, com a aceleração do tempo histórico, quando um ano é "passado", corremos o risco, nós, os de ontem, de parecermos saudosistas em busca de um tempo perdido que jamais há de voltar!  

Na verdade, não se trata de voltar ao passado. Trata-se, sim, de fazer da memória do passado o cimento essencial da construção do futuro. Costuma-se dizer que um povo sem memória é um povo sem rumo - e isso é uma rigorosa verdade. É com a memória que tecemos a História e é pela História que alicerçamos nossa esperança. Estão cheios de razão os filósofos quando alertam que o presente não passa de um momento fugidio; o que existe mesmo de concreto é o passado, que já se concretizou e que precisa ser assumido com os seus erros e acertos, para podermos construir um futuro melhor.  

Hoje, olhar para vinte anos atrás significa lançar um olhar compreensivo e abrangente para um período extremamente denso da História deste País e, por que não dizê-lo, da história pessoal de muitos dos que aqui se encontram, de muitos de nós.  

O ano de 1964 foi um marco significativo.  

Nossa geração - a dos que já passamos da quadra dos 50 - mal entrava na vida adulta. Tempos de mudanças, de questionamentos, de contestação e de loucuras. Os jovens, queríamos mudar o mundo. Os diversos movimentos, fossem de caráter religioso, político, artístico ou social, apontavam para um mundo novo, diferente. Palavras como paz, justiça, amor, solidariedade, liberdade, constituíam o tema permanente daqueles movimentos sociais que abalavam as estruturas e as certezas.  

Mil novecentos e sessenta e quatro foi um corte abrupto. Início de um período que, ainda naquele instante, não medíamos todo o alcance que teria.  

Em 1968, uma densa cortina de silêncio, medo e repressão se fecha sobre todo o País. As garantias constitucionais são suspensas. O Congresso despachado para casa. O Judiciário domesticado. As cassações vão acontecendo em levas. E, o mais terrível: começa o império do aparelho repressivo, que, assumindo vida própria, parece escapar ao controle dos seus próprios criadores. Prisões arbitrárias, desaparecimentos, tortura e assassinatos passam a fazer parte do dia-a-dia de cada brasileiro. O ar pesado desses anos de chumbo, anos cinzentos, contrasta com a euforia dos anúncios oficiais e oficialistas, que saturam os meios de comunicação e tentam criar a imagem de um País alegre e feliz debaixo do tacão do autoritarismo.  

Pouco a pouco, começa a se articular a resistência democrática a esse estado de coisas. Dentro do partido consentido de Oposição - o nosso MDB -, vamo-nos juntando todos os que desejavam o retorno à democracia, superando diferenças pessoais, ideológicas e políticas. E, desde o início, começa a tomar forma uma reivindicação que passará a fazer parte permanente da pauta das oposições: a anistia ampla, geral e irrestrita.  

Era consenso da maioria que o retorno do País ao Estado de Direito exigia, como medida prévia, essa decisão essencial. Tínhamos clara consciência de que não se pode construir o futuro sem, antes, passar a limpo o passado. E isso queria dizer começar de novo, criar um novo início.  

Porém, é preciso repetir: os tempos eram duros, e a esperança tinha de ser reconstruída a cada momento, a cada derrocada, a cada golpe. Como diz a bela letra de Chico Buarque e Caetano Veloso, a tarefa era "ir levando":  

"Mesmo com o nada feito  

Com a sala escura  

Com o nó no peito  

Com a cara dura  

Não tem mais jeito  

A gente não tem cura".  

Aos poucos, íamos encontrando as brechas que nos permitiam respirar um pouco de ar puro.  

No Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas, nas Câmaras de Vereadores, os poucos políticos de Oposição usavam a tribuna como um instrumento privilegiado para denunciar os abusos e as arbitrariedades. Na sociedade civil, além da articulação em torno da Oposição legal - o MDB -, multiplicavam-se as associações de base, que ofereciam uma base para o processo de resistência: nas igrejas, nos sindicatos, nos movimentos populares.  

Em 1972, o MDB assumia, como elemento programático, a luta pela anistia, por eleições livres e pela convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Logo após, em 1974, era criado em São Paulo o primeiro núcleo organizado em prol da anistia: o Movimento Feminino pela Anistia, sob a coordenação de uma mulher admirável, a Drª Terezinha Zerbini. O tema começa a ganhar terreno e a conquistar a atenção nacional e internacional.  

Das lideranças políticas, merece destaque, sem dúvida, a figura ímpar do Senador Teotônio Vilela, que, oriundo do partido de apoio ao governo autoritário, empenhou-se de corpo e alma no processo de devolver ao País a esperança de se reconciliar com os ideais democráticos. A Igreja Católica, em documento oficial da CNBB, assume a Anistia como parte de seu Plano de Ação Pastoral, abrindo amplo espaço para o crescimento do movimento.  

Mas vale registrar aqui que a primeira manifestação em favor da anistia ocorreu já em dezembro de 64, poucos meses depois do Golpe Militar, com o apelo que o saudoso e notável pensador católico, Tristão de Athayde, fez ao Marechal Castello Branco, e que o primeiro projeto de lei de anistia apresentado no Congresso Nacional foi do Senador Josaphat Marinho, do MDB da Bahia.  

No Paraná, o meu Estado, o clamor organizado pela anistia tem seu início na Cidade de Londrina, então um forte núcleo de oposição ao regime, repercutindo rapidamente por todo o Estado.  

Gostaria, aqui, de rememorar alguns nomes de companheiros que, em meu Estado, foram vítimas desse tempo soturno e triste. A lembrança não tem por finalidade ressuscitar ódios ou remexer velhos rancores, porque esses já estão sepultados, mas guardar para a História fatos que jamais deverão acontecer novamente.  

Esta é a tarefa da Memória: não despertar raivas, mas manter viva a lembrança do que jamais deverá voltar. Esta é a nossa tarefa: lembrar, rememorar, incomodar profeticamente a lembrança desta Nação, para que o passado nunca mais retorne para nos assombrar.  

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, como diz o Poeta, é nossa tarefa:  

"Morder o fruto amargo e não cuspir  

mas avisar aos outros quanto é amargo,  

cumprir o trato injusto e não falhar  

mas avisar aos outros quanto é injusto"  

para podermos aguçar em todos a necessidade de criar "o plano de um mundo novo e muito mais humano" (Geir Campos).  

Dizia, então, que gostaria de relembrar alguns companheiros que, no Paraná, sofreram, na carne, os horrores dos anos cinzentos, começando pelos dois estudantes mortos, já em 1970, pelas forças da repressão - o Antônio dos Três Reis Oliveira e José Idésio Brianezi.  

Em seguida, alguns dos que foram presos e torturados, especialmente no decorrer da famigerada "Operação Marumby", desencadeada em 1975, logo após a vitória eleitoral do MDB em 1974, como o Dr. Aldo Fernandes, juiz de Direito; Genecy de Souza Guimarães, vereadora em Londrina; Ildeu Manso Vieira, Walter Pecoits, João Alberto Einecke, Antonio Narciso Pires, Abelardo Moreira, Luiz Gonzaga Ferreira, o saudoso Manoel Jacynto Correia e tantos outros, cuja enumeração ocuparia um longo tempo, mas que podem ser relembrados em três obras importantes - Por Dentro do MDB-Paraná , do Jornalista Sylvio Sebastiani; Memórias Torturadas (e Alegres) de um Preso Político, de Ildeu Manso Vieira e Resistência Democrática - Repressão no Paraná , do Jornalista Milton Ivan Heller.  

Muitos desses companheiros, após a anistia, retomaram a militância política e continuam dando notável contribuição para o desenvolvimento e o progresso do País, como prova viva de que a pacificação nacional só nos trouxe benefícios.  

A conquista da anistia, é importante que se registre, não foi um ponto final na luta pela retomada do Estado de Direito, mas o seu passo inicial. Ela não foi, como bem sublinha o jurista Hélio Bicudo, "um favor, mas uma exigência da sociedade brasileira", resultado de uma longa, por vezes dolorosa e persistente luta por parte dos que aspiravam a retomada dos ideais democráticos.  

Anistia não é amnésia, não é esquecimento, não é falta de memória. A ausência de memória não constrói uma nação. Como ensina o escritor Umberto Eco, "não há sobrevivência sem memória", pois quando numa sociedade "uma censura qualquer apaga uma parte da memória, a sociedade conhece uma crise de identidade".  

Sem querer estabelecer a mínima identificação com o terrível horror do Holocausto, que marcou definitivamente a História como a possibilidade concreta de o Mal tornar-se tão denso a ponto de sufocar todos os resquícios de humanidade do homem, como o singularíssimo exemplo da diabólica possibilidade que surge de uma radical liberdade humana, desligada de qualquer controle transcendente e surda a toda interpelação ética, podemos recordar o que Elie Wiesel, esse profeta da lembrança, nos ensina: "Contemos histórias, a fim de lembrar como é vulnerável o homem quando em face de um mal insuperável. Contemos histórias, para não permitir que o carrasco tenha a última palavra. A última palavra pertence à vítima. Cabe à testemunha captar essa palavra e trabalhá-la e, então, comunicar esse segredo aos outros..."

 

Essa premente necessidade de dar testemunho dos horrores da história, essa decisão de dar testemunho é fundamental para que possamos manter abertas as possibilidades de um "novo caminho", que são as possibilidades da esperança.  

A Anistia não nos deve fazer esquecer os horrores do arbítrio e do autoritarismo. A Anistia não é impunidade. Ela não foi criada "para os fantasmas dos mortos e desaparecidos", como diz o jornalista Álvaro Caldas. Ela foi o primeiro passo, fundamental e indispensável, para que os valores democráticos retornassem à vigência. Relembrá-la é não permitir que caia no esquecimento o fato de que este País permaneceu soterrado sob uma ditadura que durou 20 anos.  

Talvez, como adverte Eric Hobsbawm, estejamos vivendo uma época que cria a ilusão de um eterno presente, em que o passado e o futuro pouco importam. Nesta perspectiva, lembrar constitui um ato doloroso, mas certamente necessário para nos arrancar do comodismo do esquecimento.  

A Anistia é, acima de tudo, uma questão política e ética. Politicamente, permitiu que os anistiados, os perseguidos, as vítimas, enfim, voltassem à vida civil e à vida política. Eticamente, abriu espaço para a "cura", podemos dizer, daquelas feridas tão profundas que nenhum remédio jurídico poderia sanar, bem como produziu um "atalho moral" que, desviando-se dos caminhos tortuosos da discussão legal das responsabilidades de ambos os lados, criou as possibilidades para que as forças políticas e morais desta Nação se entregassem à tarefa prioritária de reconduzir o País ao Estado Democrático de Direito, através das eleições livres e da Constituinte.  

Hoje, ao comemorarmos os 20 anos da Lei da Anistia, queremos ampliar a consciência nossa e das novas gerações acerca da história recente deste País. Queremos relembrar a Anistia como um dos passos decisivos na caminhada pela reconquista da democracia. Mais ainda, queremos reavivar os nossos compromissos não apenas com o Estado democrático, mas com a solidariedade, com o respeito à pessoa humana, com a justiça social.  

A Anistia cobriu os crimes políticos de duas décadas. Mas não pode - nem deve - cobrir os crimes sociais que ainda constituem a grande vergonha deste País. O historiador José Murilo de Carvalho, há pouco, afirmava, de modo incisivo e direto, que "ao final do quinto século, é preciso admitir que nossos melhores sonhos têm sido sistematicamente frustrados por nossa incapacidade de torná-los realidade". E perguntava se o oba-oba e o ufanismo fácil seriam capazes de encobrir o fato de sermos, ainda, uma das sociedades mais desiguais e injustas do globo; de sermos campeões da violência na casa e na rua; de termos destruído boa parte de nossas belezas naturais pela predação incansável e ininterrupta...  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Srªs e Srs. Visitantes, esta modesta contribuição para a comemoração dos 20 anos de promulgação da Lei Anistia quer ser, na verdade, um libelo de esperança.  

Como nos ensina o apóstolo Paulo, "não temos aqui cidade permanente e esperamos a que há de vir". Cada um de nós é, portanto, um homem-em-êxodo, um ser-em-terra-estranha, em busca de sua pátria definitiva. Somos, enfim, retirantes em busca do futuro. Como escreve D. Pedro Casaldáliga, somos caminhantes da esperança que cantam a vida, o pranto da terra, a luta do povo e a esperança do homem. Dele é este "Epílogo Aberto", com o qual gostaria de encerrar este meu modesto pronunciamento, que ofereço a todos quantos construíram, com seu trabalho e com sua dor, essa história de luzes e sombras que hoje relembramos:  

"Perguntas-me tantas coisas, inefáveis!  

Somente sei que não sei muito do que antes sabia (decorado, por decreto).  

Somente sei que sou mais livre,  

que aprendo a fazer o Homem fazendo-me Pobre.  

Ratifico, em todo caso, que vou dar-me o régio gosto de seguir sendo poeta.  

De viver na Utopia (que chamamos Evangelho).  

De morrer na Esperança."  

Muito obrigado. (Palmas)  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/08/1999 - Página 20626