Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM A MEMORIA DE DOM HELDER CAMARA.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM A MEMORIA DE DOM HELDER CAMARA.
Aparteantes
Edison Lobão.
Publicação
Publicação no DSF de 31/08/1999 - Página 22573
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, HELDER CAMARA, BISPO, ESTADO DO CEARA (CE), ARCEBISPO, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), ELOGIO, VIDA, DEFESA, DIREITOS HUMANOS.
  • REGISTRO, APRESENTAÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, REQUERIMENTO, HOMENAGEM, HELDER CAMARA, ARCEBISPO.

A SR.ª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em primeiro lugar, lamento a perda de Dom Hélder Câmara, personalidade de grande vulto para a Igreja Católica, o povo brasileiro, os setores progressistas da Igreja e para todos os homens de bem, que vêm lutando pela vida, pela liberdade, pela democracia e pela justiça social.  

Acima de tudo, como disse o próprio Dom Hélder quando falou para a imprensa, em 1977, após nove anos de silêncio, imposto pelo AI-5, da Ditadura Militar: "Quanto mais negra a noite, mais carrega em si a madrugada", frase inspiradora, que transmitiu esperança para todos aqueles que, como ele, lutavam pela justiça, pelo retorno das liberdades democráticas e, principalmente, pela defesa dos oprimidos.  

Dom Hélder morreu aos 90 anos, quase junto com o século do qual foi testemunha e no qual atuou bravamente, como poucos homens o fizeram. Foi o mais importante líder da Igreja brasileira na história, tendo fundado, em 1952, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, primeira entidade do mundo a reunir todos os bispos de um país. Esse tipo de organização episcopal só passou a ser recomendado pela Igreja Católica depois do Concílio do Vaticano II (1962/1965), que renovou as práticas da Igreja e no qual Dom Hélder teve participação fundamental. Foi por conta de sua ação que a opção preferencial pelos pobres, uma das resoluções do Concílio, foi realmente adotada.  

Após a criação da CNBB, nunca mais a Igreja brasileira foi a mesma. Já em suas primeiras reuniões, a entidade defendia a necessidade da reforma agrária como solução dos problemas urbanos.  

Nomeado arcebispo de Olinda e Recife, em abril de 1964, foi acusado de comunista por suas denúncias de violação de direitos humanos no regime militar e por seus trabalhos com movimentos populares. Criou as famosas Comunidades Eclesiais de Base, das quais tenho muito orgulho de ter feito parte e de ter iniciado minha participação política dentro dessas comunidades, ao lado de pessoas como o Bispo Dom Moacyr, que até hoje é uma referência para todos nós, na Amazônia, como sinônimo de luta pela democracia, pela liberdade e pelos direitos humanos. Essas Comunidades de Base muito fizeram e continuam fazendo pelos pobres e humildes de nosso País.  

Por sua postura e seu prestígio internacional, Dom Hélder tornou-se o inimigo número um do regime militar, que proibiu qualquer menção ao seu nome nos meios de comunicação.  

No início dos anos 70, o Presidente Médici chegou ao cúmulo de mover uma campanha secreta contra a candidatura de Dom Hélder ao Prêmio Nobel da Paz. Isso nunca impediu que Dom Hélder continuasse atuando politicamente, criticando constantemente o capitalismo, os Estados Unidos e a ditadura militar.  

Em maio de 1969, um de seus principais assessores, Padre Henrique, foi seqüestrado, torturado e assassinado. No dia seguinte, Dom Hélder reuniu dez padres e outros dez mil anônimos para acompanhar o cortejo até o cemitério, a quase 15 quilômetros de distância, no outro extremo da cidade de Recife.  

Dom Hélder descobriu muito cedo, no comando de obras sociais, que uma só andorinha não faz verão e que a pobreza não resulta da indolência, mas de estruturas injustas.  

Sobre o Nordeste, onde as estruturas injustas pouco mudaram neste século, costumava dizer: "Não se pode acusar quem tem sede de justiça. No Nordeste, Jesus Cristo se chama José".  

Dom Hélder sabia o que estava falando. Questionado sobre o porquê de seu interesse pela justiça social, costumava responder que esse era o dever de qualquer sacerdote. Lembrava, contudo, que ele mesmo conhecera a fome e a miséria:  

"Vi minha mãe chorar e o meu pai ficar calado de amargura, quando não havia o que comer, quando não dava para dividir o pão entre os filhos."  

Na sua morte, Dom Hélder esteve, como sempre, ao lado do povo, que, por duas horas, caminhou ao lado do seu caixão, chorando e cantando.  

Numa procissão inesquecível, mais de duas mil pessoas fizeram questão de seguir o cortejo de Recife até Olinda, local do enterro.  

Foram muitas as definições e os apelidos que recebeu em sua trajetória como religioso: "Bispo do Povo", "Evangelizador de palavras doces", "Defensor corajoso dos direitos humanos", "Referência histórica na luta contra a ditadura militar", "Irmão dos pobres", "Um profeta deste século", "Dom da paz".  

No entanto, este homem, que na sua morte foi chamado de "grande humanista" e de "sábio" por personalidades como Jacques Chirac, Presidente da França, gostava mesmo do que lhe falaram os meninos de Olinda, após assistir o filme "ET": "Ele é feio e bonzinho, assim como o senhor". Esse era Dom Hélder.  

Como disse Cristovam Buarque, em artigo recente, Dom Hélder era um "santo rebelde".  

Dom Hélder foi um "santo rebelde" porque era um santo que acariciava para dar conforto aos pobres e gritava para denunciar a injustiça da sociedade. Diferentemente de outros santos, ele não se conformava apenas em ajudar aos pobres; ele queria fazer uma revolução que eliminasse a pobreza, mas, diferente de outros rebeldes, não se conformava em esperar o dia da revolução. Ele cuidava dos pobres, enquanto a revolução não chegava.  

Dom Hélder morreu quando a população brasileira, mais uma vez, procurava soluções para a erradicação da miséria.  

Saibamos honrar a sua santidade e a sua rebeldia, lutando, a cada dia, por um país socialmente justo e fraterno. Rezemos por ele, na certeza de que a sua visão particular da morte seja uma premonição:  

"Tenho grandes esperanças de que haja enormes surpresas na outra vida. Vamos descobrir, um dia, que Deus é muito mais humano que os homens."  

O Sr. Edison Lobão (PFL - MA) - V. Exª me concede um aparte?  

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Concedo o aparte ao Senador Edison Lobão.  

O Sr. Edison Lobão (PFL - MA) - Senadora Marina Silva, V. Exª, na tarde de hoje, presta uma homenagem a uma das mais extraordinárias figuras da Igreja Católica no mundo inteiro. Aprendi a admirar Dom Hélder Câmara desde o momento em que cheguei ao Rio de Janeiro, estudante ainda, há algumas décadas, e ele era o Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro. Hoje, depois de tantos anos e conhecendo um pouco a vida de São Paulo como conheço, tenho a firme convicção de que a vida de Dom Hélder muito se assemelha à vida de São Paulo. Este sempre foi um insatisfeito com as conquistas que obtinha em favor da humanidade. Assim também era Dom Hélder, que se colocou a serviço dos desvalidos, dos mais pobres, dos mais sofridos, dos desassistidos, dos perseguidos. Essa era a vocação de Dom Hélder Câmara, e aquela era a vocação também de S. Paulo. S. Paulo esteve muito tempo perseguindo os cristãos, quando ainda era Saulo, mas supondo-se a serviço de Cristo. Depois, já convertido, passou a ser ele próprio perseguido por tudo quanto representava em benefício da humanidade. Cumprimento V. Exª, portanto, pelas homenagens que faz a esse sacerdote extraordinário da Igreja de Cristo. Ele foi um exemplo a ser seguido.  

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Senador Edison Lobão, incorporo o aparte de V. Exª ao meu discurso. Compreendi a comparação que V. Exª faz entre Dom Hélder Câmara e o apóstolo Paulo, à luz do contexto histórico em que o próprio arcebispo caraterizou como alguns pecados de juventude. Eu diria que, se Paulo foi tão aguerrido em perseguir àqueles que serviam a Cristo, quando descobriu a verdade de Cristo como único Salvador, foi mais aguerrido ainda em defender Sua causa. Assim, Dom Hélder pode muito bem ser comparado ao apóstolo.  

Srs. Senadores, não sou especialista em estudos escatológicos, mas, por essa visão do que seria a morte e a descoberta que ele esperava fazer após a morte, de que Deus é muito mais humano do que os homens, eu ousaria tecer alguns comentários. Dom Hélder foi um homem de fé e, neste momento, independentemente de confissão religiosa, milhares e milhares de pessoas, de credos religiosos diferentes, rendem as mesmas homenagens ao arcebispo.  

Dizem alguns estudiosos da Bíblia que quando morremos vamos para um lugar, que segundo a Igreja Católica é o purgatório. Com alguns estudos mais aprofundados, descobrimos que é o hades, que seria dividido em duas partes: uma delas seria a profundeza das trevas - que na nossa linguagem seria o inferno - e a parte superior significaria ficar embaixo do trono de Deus. Tenho absoluta certeza de que aqueles que se dedicaram à causa da vida, da justiça, da liberdade e do socorro aos menos favorecidos ficarão na parte superior do hades. É lá que espero esteja Dom Hélder Câmara.  

Há uma parábola muito bonita na Bíblia - a de Lázaro e do rico insensível -, contada por Jesus Cristo, portanto merecedora de toda a credibilidade possível. Havia um homem muito rico, que se banqueteava, mas não se importava com os pobres. Certo dia um pobre chamado Lázaro, cheio de feridas e muito esquelético, implorava por um bocado de comida, mas infelizmente o homem rico, pela sua insensibilidade, foi incapaz de lhe dar um pouco de pão. Então Lázaro, juntamente com os cães, alimentava-se daquelas pequenas porções que sobejavam da mesa do rico.  

Um belo dia, morreram ambos e foram para o hades. Só que Lázaro, o pobre, estava no seio de Abraão, ou seja, embaixo do trono de Deus; e o outro, o rico, poderoso, estava naquela parte mais baixa, das profundezas, ou seja, no inferno. E clamava: "Pai Abraão, diga a Lázaro que traga um pouquinho de água para pôr na minha boca, porque este lugar é terrível e eu morro de sede". E a resposta de Abraão foi: "Do lugar em que estás, não poderás ir até Lázaro e, do lugar em que Lázaro está, ele não poderá vir até você, pois a única possibilidade de vocês dois se encontrarem era quando ainda estavam lá na Terra". Então ele se virou para Abraão e disse: "Então deixa pelo menos eu voltar à Terra e dizer aos meus irmãos, que também são muito ricos, que não façam isso; que usem de misericórdia para com aqueles que não têm nada, que usem de justiça para com os injustiçados, que falem a verdade com os que estão sendo enganados, para que eles não venham para este lugar terrível onde estou". E ele disse mais uma vez: "Se não acreditaram naquilo que foi dito pelos profetas Jonas, Abraão, Elias, Moisés, todos eles, quanto mais acreditarão em alguém que morreu e ressuscitou, porque, com certeza, vão pensar que é um delírio, uma assombração".

 

Então, não há saída para aqueles que não fazem o bem enquanto estão vivos. E é por isso que eu tenho absoluta certeza de que, neste momento, o lugar de Dom Hélder é no seio de Abraão. E de lá ele deve estar torcendo para que este Brasil melhore, para que este País cumpra o preceito máximo das exigências feitas por Deus para que se vá para o seio de Abraão.  

São muitas as exigências - dez mandamentos -, impossíveis até para os seres normais cumprirem; mas Deus é tão misericordioso que resumiu-as em apenas uma. Qual é essa exigência? Que amemos uns aos outros, como Ele nos ama. E Deus nos ama com uma renda mínima básica. Ele não deixa faltar água a ninguém, não deixa faltar sol a ninguém, não deixa faltar ar a ninguém, não deixa faltar nada básico à existência de todos os seres, sejam pecadores, sejam santos.  

Tenho certeza de que essa misericórdia e esse amor, que é a função essencial, foi vivida por aquele que fez exatamente o que Cristo disse: "Quando estava preso, tu me visitaste" — e ele visitou muitos presos nas prisões da ditadura —; "quando estava faminto, tu me alimentaste" — e ele alimentou muitas crianças famintas naquele Nordeste e por onde passou. E disse mais ainda: "Quando sentia frio, tu me acolheste; quando faltou a verdade, tu me disseste a verdade." E aí alguém perguntou: "Mas quando, Senhor, nós te fizemos isso?" E Jesus respondeu: "Sempre que fizestes a estes pequeninos, ao mais insignificante deles, a mim o fizestes."  

Dom Hélder viveu tudo isso, e sinto-me emocionada com estas palavras, porque, embora minha ideologia tenha influência marxista, socialista - quando aluna de História estudei todas essas teorias, que muito me encantaram - o que mais me encantou, e que constitui a base da minha ideologia, foi uma única coisa: o Cristianismo. Na Bíblia, encontrei todas essas verdades, desde a renda mínima do Eduardo Suplicy até as admoestações aos políticos mais poderosos. E eu diria que, se levarmos a sério os ensinamentos que nos tocam a alma, com certeza eles brotarão pelo nosso coração. E, se brotarem do nosso coração, farão nossas ações mais perfeitas e brilhantes, como as de Dom Hélder. A exemplo dele, todos os pecados da juventude serão perdoados, e não simplesmente pelo pedido de perdão, mas pela ação prática que transforma a ação, não importando a idade do homem, não importando o momento que estejamos vivendo.  

Concluo esta homenagem a Dom Hélder contando outra parábola muito interessante, da qual ninguém se excluirá. É a estória de que não precisamos nos preocupar com o tempo de fazer o bem. Para tudo há um tempo, mas o tempo de fazermos o bem tanto pode ser vinte anos atrás como agora. Somos eternamente condenados a fazer o bem, e esta é a diferença do fazer o bem que Dom Hélder fez: se eu fiz o bem até hoje, mas amanhã desistir de fazê-lo, o passado não conta para que eu vá para o seio de Abraão; por outro lado, se não fiz o bem a vida toda, mas no último momento decidi fazê-lo, isso conta para a ida para o seio de Abraão.  

Então, tenho certeza de que o Congresso Nacional aprovará amanhã o requerimento de homenagem a Dom Hélder, numa demonstração que os símbolos, as figuras míticas da nossa História deixam as páginas em branco para que possamos escrever nelas a nossa própria História. Chico Mendes, com certeza, hoje é maior do que era quando pessoa, mas a página está em branco para que todos os defensores da ecologia possam nela assinalar sua parte da História na defesa da ecologia. Dom Hélder, defensor dos direitos humanos, deixa uma página em branco para que todos os que se identifiquem com seus ideais acrescentem sua história de defesa dos direitos humanos. Todas as pessoas que estão acima do seu tempo passam a ser maiores do que foram no seu tempo, porque cada um de nós imprime a parte boa da nossa vida, projeta a parte boa dos nossos sonhos e das nossas esperanças na figura dessas pessoas.  

Tenho certeza de que o Congresso Nacional projetará as suas esperanças, as suas alegrias, a sua democracia na página em branco que Dom Hélder deixa para que escrevamos justiça aos pobres, por intermédio de leis que favoreçam a sociedade e que acima de tudo dêem um basta a essa política que faz com que os excluídos continuem a clamar embaixo da mesa do rico avarento.  

Muito obrigada.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 31/08/1999 - Página 22573