Pronunciamento de José Fogaça em 27/08/1999
Discurso no Senado Federal
REFLEXÕES SOBRE AS LIÇÕES LEGADAS A SOCIEDADE BRASILEIRA PELA 'MARCHA DOS 100 MIL'.
- Autor
- José Fogaça (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
- Nome completo: José Alberto Fogaça de Medeiros
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
MOVIMENTO TRABALHISTA.:
- REFLEXÕES SOBRE AS LIÇÕES LEGADAS A SOCIEDADE BRASILEIRA PELA 'MARCHA DOS 100 MIL'.
- Aparteantes
- Gilberto Mestrinho.
- Publicação
- Publicação no DSF de 28/08/1999 - Página 22392
- Assunto
- Outros > MOVIMENTO TRABALHISTA.
- Indexação
-
- ANALISE, RESULTADO, OBJETIVO, MANIFESTAÇÃO COLETIVA, MARCHA, BRASILIA (DF), DISTRITO FEDERAL (DF), PROTESTO, POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA, GOVERNO.
O SR. JOSÉ FOGAÇA
(PMDB - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nós temos a obrigação de, após um acontecimento tão importante como o de ontem, vir a esta tribuna, ao plenário do Senado, para trazer as nossas reflexões, porque, afinal de contas, foi este o mandato e é esta a tarefa que, em princípio, e que, basicamente, a população dos nossos Estados nos confere, ou seja, não nos omitirmos diante dos fatos e expressarmos o nosso pensamento.
Em primeiro lugar, Sr. Presidente, eu gostaria de dizer que o mais importante de uma manifestação como essa, de um evento dessa natureza, é aquilo que dele podemos extrair, aquilo que dele podemos tirar como aprendizado, como lição, talvez até num sentido um pouco diferente daquele que os latinos usavam para a palavra experiência. Experiência significa aprender com a morte, que vem do latim experire , que é uma variante de exspirare. Para os antigos romanos, experiência é aprender com a morte. Por isso é que algumas pessoas resistem tanto em aprender com a experiência, em tirar lição dos fatos. Talvez por isso. Mas para nós, aqui, é importante, neste momento, nos valermos da experiência e tentar fazer algumas reflexões, tentar aprender com a vida, que é o novo sentido que devemos dar a essa palavra, a esse conceito.
Em primeiro lugar, a questão da mudança de rumos. Ouvi vários oradores da Oposição cobrarem, no dia seguinte após a manifestação, que o Governo mudasse rumos e atendesse às suas expectativas. Então, lição nº 1: no regime presidencialista, um presidente não pode mudar de rumo, mesmo em função de uma manifestação aqui, de uma reivindicação lá, de uma demanda de agricultores ou de um caminhonaço. No regime presidencialista, a estabilidade exige que o presidente mantenha o seu rumo. O regime parlamentarista é que tem essa flexibilidade. Pode-se trocar de chefe de Estado como trocar de política econômica a cada dia, ou até doze vezes por ano, como chegou a ocorrer no parlamentarismo italiano. No regime presidencialista, para que a autoridade do presidente, que deve ser mantida durante todo o seu mandato, seja preservada, para que a confiança interna e externa na sua autoridade seja preservada, o presidente tem que manter o rumo, sob pena de, em função de uma oscilação irresponsável, em função de uma leviana mudança para atender clientelisticamente ou esporadicamente ou eventualmente pressões daqui ou dali, perder a autoridade, desmoralizar-se institucional e enfraquecer-se em seu poder de governar, ou seja, haverá a perda real, efetiva da governabilidade. Portanto, para gerar confiança na sua autoridade, é preciso que o Presidente mantenha a sua política. Mudar a política em função de movimentos políticos ou sociais significa perder autoridade, perder força, perder governabilidade.
Quando lutamos pelo regime parlamentarista, em 93, recordo-me que o Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, que sempre foi parlamentarista, se submeteu à manifestação do PT na época. Como havia a possibilidade de, em 94, o Lula chegar ao poder como presidente, empalmando todo o poder da cadeira presidencial, foi esquecido ali o quanto é importante para o sim e para o não, para a vitória e para a derrota, para perder e para ganhar, para ser governo ou para ser oposição aperfeiçoar, modernizar e democratizar as instituições. Tratou-se ali de manter a idéia do presidencialismo, aderindo a campanha maciçamente e fazendo vitorioso o regime presidencialista. Nada a condenar, apenas essa é uma lição, um custo que a História cobra logo ali adiante. Não é possível querer que um regime presidencialista mude suas convicções profundas, estabelecidas de maneira absolutamente aberta e transparente. O Governo tem as suas convicções no campo econômico, está pondo em prática essas convicções e precisa mantê-las, porque os resultados virão justamente pela manutenção da sua firmeza na conduta da política econômica. De modo que é lamentável, mas essa é a lição nº 1.
No regime parlamentarista, há a possibilidade imensa e até infinita de mudança de rumo. Nos regimes parlamentaristas, movimentos políticos, ondas políticas produzem resultados institucionais sem nenhuma ameaça à instabilidade e à governabilidade. Muda-se um primeiro-ministro, mudam-se as composições parlamentares com uma facilidade extrema e com uma segurança enorme. É evidente que o novo primeiro-ministro assume com toda força, e o regime se recupera dentro das suas próprias dificuldades. Então, esta é a lição: no regime presidencialista, pode-se fazer oposição, pode-se criticar, pode-se bater no Presidente, até agredi-lo, pode-se até dizer palavras impróprias contra ele, mas não se pode querer que o Presidente eleito majoritariamente pelo voto - porque eleito no regime presidencialista ele tem 4 anos - se enfraqueça, se debilite, enfim, que se torne ingovernável, perca a sua capacidade de governar. Não se pode querer.
Então, faço essa constatação porque penso que seria imensamente positivo, generoso, do ponto de vista político, que houvesse essa flexibilidade de um Presidente. Vêm os agricultores pedindo 40% de anistia: atenda-se! Vem a oposição pedindo mudança de rumos na política econômica: mude-se!
Ora, isso, evidentemente, é fantástico, é maravilhoso do ponto de vista da própria criação política, da geração democrática. Mas o regime presidencialista é infenso a isso. O regime presidencialista não dá, não propicia, não abre, não permite possibilidades dessa natureza. Só quem não conhece o mecanismo presidencialista é que supõe possa, democraticamente, ou seja, pela via de manifestações dessa ordem, obrigar o Presidente a mudar de rumos, ou até obrigar o Presidente a renunciar.
Então, parece-me que isso não é, neste momento, um custo maior e tão difícil para nós refletir e observar. Com o regime presidencialista é isso que está aí: todo mundo tem o direito de protestar mas tem que saber que é o Presidente que tem a democrática, constitucional e intocável competência, porque a intocabilidade é a forma de garantir a democracia e a intangibilidade do Presidente é a essência da democracia no presidencialismo. Quem quer mudar de governante a toda hora, de mês em mês, de semana em semana ou de ano em ano, não pode ter lutado pelo presidencialismo como lutaram em 1993! Não pode.
Então, Sr. Presidente, Srs. Senadores, não posso deixar passar essa oportunidade sem escrever no quadro: lição nº 1.
O Sr. Gilberto Mestrinho (PMDB - AM) - Permite-me V. Exª um aparte?
O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB - RS) - Senador Gilberto Mestrinho, pediria a S. Exª que me desse mais um pouco de tempo para levar adiante algumas reflexões. Em seguida, com muita honra e com grande satisfação, vou conceder-lhe o aparte.
A outra lição que considero importante, lição nº 2: no Brasil os governos caíram, os governos foram derrubados, houve desestabilização e ferimento da democracia em razão de duas causas explicitamente. De um lado, uma grave e uma enorme pressão política e demandas sociais não controladas e não atendidas; de outro lado, um grupo autoritário, longamente articulado e preparado para tomar o poder a qualquer tempo e a qualquer momento. A par disso, necessariamente, um governo vivendo uma situação de falta de rumos, de falta de objetivos e de perda de controle das suas diretrizes políticas, sociais e econômicas.
Quando o ex-Deputado Federal, ex-Governador e grande vulto da política brasileira Carlos Lacerda pressionou contra Getúlio Vargas, em 1954, em uma grande mobilização nacional, em uma grande convocação ao povo brasileiro contra Getúlio, essas condições existiam: havia um governo enfraquecido, debilitado, com rumos pouco claros; havia grupos políticos nas sombras tramando pelo poder; e havia uma Oposição que não media conseqüências, não media os resultados, sobre os quais não teria controle, da sua ação política. E o resultado foi não a renúncia, mas o suicídio de Getúlio Vargas. E o País viveu os seguintes dez anos em sobressalto.
No interregno do Governo de Juscelino Kubitschek, embora tenha sido um período de grande crescimento econômico, de grande expansão, houve duas tentativas de golpe militar: Aragarças e Jacareacanga. Então, foram dez anos de vicissitudes, que culminaram com a intervenção militar em 1964, porque João Goulart tinha um governo de rumos pouco definidos, tinha contra si manifestações da esquerda nas ruas, com demandas intensas, e tinha, nas sombras, um grupo que tramava a tomada do poder. Em 1964, portanto, também estavam dadas essas condições: um grupo nas sombras, um governo sem definições e uma Oposição irresponsável. Isso tudo estava dado.
Hoje, felizmente, nenhum desses três elementos existem mais. Não há nenhum grupo articulado, organizado, longa e adredemente preparado, para assacar o poder, para assaltar a República a qualquer momento, como houve no Brasil desde a década de 20. Desde 1922, essas tentativas vieram sucessivamente sendo postas em prática no Brasil. Felizmente, após 1985, na virada deste século, isso foi inteiramente derrotado e dissipado da vida brasileira. Não há mais grupos de conspiração às sombras no Brasil.
Em segundo lugar, também não há, pelo menos majoritariamente, uma Oposição irresponsável, porque se fora irresponsável, ela teria, toda ela, aderido ao discurso primitivo que alguns setores que coordenavam a manifestação usaram ontem no palanque, ao pedir a derrubada de Fernando Henrique Cardoso e de Marco Maciel para a realização de eleições gerais no País. Um discurso golpista, sim, mas confinado a um grupelho, a pequenas e escassas manifestações, porque no bojo, no conjunto, no todo da manifestação, independentemente do que queiram dizer nas meias palavras, nas entrelinhas ou queiram deixar a entender, o fato é que essa passeata de ontem não foi pela derrubada do Presidente Fernando Henrique. Se o fora, haveria, sim, baderna, violência e, possivelmente, até morte e sangue, o que viria a ser prejudicial tanto para o Governo como para a própria Oposição.
Segunda lição: não há mais posturas, majoritária e predominantemente, irresponsáveis na Oposição brasileira. Tenho certeza de que foi a voz dos líderes mais maduros que fez com que a manifestação fosse isto: uma crítica à política econômica e a certos resultados de momento que estamos vivendo em função dessa política econômica.
O terceiro ponto que considero importante e que faz com que aquelas condições que permitiam a prática golpista historicamente repetida no Brasil é que este Governo tem rumo, tem uma política econômica traçada, tem um projeto definido e sabe aonde quer chegar. Poderá até não chegar, poderá até fracassar, porque ele quer chegar a um ponto em que haja extraordinário nível de desenvolvimento, extraordinária capacidade produtiva do setor agrícola e uma taxa de desemprego menor do que a histórica de 5%, que sempre houve no Brasil, e quer, evidentemente, elevar o padrão dos trabalhadores e das pessoas que, com seu esforço e seu braço, constróem a riqueza do Brasil.
E para isso ele quer gerar confiança interna e externa. E um governo gera confiança sendo sério, tratando as contas públicas com seriedade, fazendo as reformas do Estado que estão sendo feitas para chegar a um objetivo.
Essa é a segunda lição. Não há mais oposição irresponsável; não há mais grupos à sombra, tramando pelo poder, e temos um Governo com uma definição muito clara, independentemente do quanto discorde a Oposição dessa definição. Mas ela existe, é uma definição, e o Governo pensa que ele será triunfante ao final dos seus quatro anos.
A outra constatação importante, que me parece não deva ser esquecida, é que a manifestação de ontem teve, sim, uma conotação política. Ela não foi uma manifestação da voz espontânea das ruas. E isso não a desqualifica, não lhe tira a legitimidade. Como disse a Senadora Marina Silva, S. Exª se orgulha de que tenha sido política. Sim, foi política.
Uma grande coordenação de partidos políticos convocou as suas bases, principalmente as bases sindicais, que têm boa estrutura e organização, e realizou essa manifestação de viés oposicionista, legítima, democrática, respeitável, reconhecida como algo absolutamente natural e, às vezes, até necessário e saudável dentro da democracia. Mas foi uma manifestação de viés político-partidário.
E toda manifestação político-partidária sempre tem uma segunda intenção, que também é legítima, que é, um dia, chegar ao poder; capitalizar situações de dificuldade em seu favor para, amanhã, quem sabe, chegar ao poder. Nada contra, nada a reparar nisso, mas também é uma lição.
Ou seja, a terceira lição é que essa manifestação é o que é, foi o que foi; ela não é o que não é e não foi o que não foi; ela não foi a grande e espontânea manifestação popular. Ela não foi o sonho de alguns, evidentemente, minoritários e, felizmente, sufocados, no bojo de um comando maduro. A meu ver, ela não foi uma manifestação espontânea, inteiramente aberta, de pessoas que queriam derrubar o Presidente da República na manhã seguinte e ver o País jogado ao caos. Não foi. Ela foi uma manifestação organizada por partidos políticos, com viés político-partidário.
O Sr. Gilberto Mestrinho (PMDB - AM) - V. Exª me permite um aparte?
O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB - RS) - Antes de encerrar, Sr. Presidente, não posso abster-me de conceder a palavra a essa figura eminente do Senado, esse grande amazonense que é o Senador Gilberto Mestrinho.
O SR. PRESIDENTE (Luiz Otávio) - Eu só gostaria de lembrar a V. Exªs que realmente não vamos poder mais prorrogar a sessão.
O Sr. Gilberto Mestrinho (PMDB - AM) - Sr. Presidente, vamos ser um pouco mais tolerantes, não nos atenhamos ao relógio, porque o Senador Fogaça está fazendo um dos mais lúcidos discursos já pronunciados nesta Casa. S. Exª começou abordando os acontecimentos de ontem e falando da necessidade de reflexão, como se recordasse os versos de Drummond: "A festa acabou, o povo sumiu. E agora, José"? Com a expressão "E agora, José?", ele está dando uma orientação à sociedade brasileira de como refletir sobre a nossa realidade. Tivemos uma manifestação democrática, mas partidária, oposicionista. Não foi uma manifestação da sociedade brasileira. Este País não pode, pela manifestação de 50, 60 ou 100 mil pessoas, interpretar o sentimento de 160 milhões de brasileiros, que querem a tranqüilidade do trabalho, a recuperação dos postos de trabalho que foram perdidos, que o País cresça e melhore. O Brasil tem dificuldades que não são inerentes ou exclusivas suas. Se analisarmos, veremos que toda a América Latina está vivendo esse processo. Buenos Aires, onde vive um terço da população da República Argentina, tem 24,1% de desempregados, portanto, vive uma crise social terrível. O Chile, que foi modelo, está enfrentando o mesmo problema. Os outros países, nem se fala! O Equador, coitado, entrou em moratória! Se passarmos para o mundo desenvolvido, veremos que lá também, como informou o Senador Fogaça, fazem-se manifestações. Mas nos regimes parlamentares, somente quando a sociedade se manifesta na sua maioria é que o governo muda o rumo. Agora mesmo, um dos políticos de maior evidência, de maior esperança no mundo ocidental, o Ministro Tony Blair, da Inglaterra, que chegou a alcançar 78% de aprovação, está com 49%, conforme pesquisa publicada no seu país. Há uma crise internacional e é impossível satisfazer as aspirações de todos. S. Exª, então, citou os pontos racionais que devem ser levados em conta para que não se atropelem os fatos, como ensinava Nelson Rodrigues, e se dê valor às versões. Senador José Fogaça, o discurso de V. Exª honra esta Casa e faz a sociedade pensar. Muito obrigado.
O Sr. Agnelo Alves (PMDB - RN) - V. Exª me permite um aparte?
O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB - RS) - Obrigado, nobre Senador Gilberto Mestrinho.
Incorporo essa manifestação ao meu pronunciamento, mas não vou poder conceder um aparte ao Senador Agnelo Alves, porque o Senador Amir Lando está aguardando para fazer o seu pronunciamento.
Encerro e agradeço a tolerância do Sr. Presidente.
Muito obrigado.
cit$ ¿