Discurso no Senado Federal

INCOERENCIA DO TRATAMENTO DISPENSADO PELA JUSTIÇA AOS POBRES EM NOSSO PAIS, DESTACANDO O CASO DOS SEM-TERRA PRESOS EM PERNAMBUCO POR CRIME FAMELICO.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), JUDICIARIO. POLITICA SOCIAL. :
  • INCOERENCIA DO TRATAMENTO DISPENSADO PELA JUSTIÇA AOS POBRES EM NOSSO PAIS, DESTACANDO O CASO DOS SEM-TERRA PRESOS EM PERNAMBUCO POR CRIME FAMELICO.
Aparteantes
Moreira Mendes, Romero Jucá.
Publicação
Publicação no DSF de 18/09/1999 - Página 24596
Assunto
Outros > COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), JUDICIARIO. POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • APOIO, COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), JUDICIARIO, IMPORTANCIA, NECESSIDADE, INVESTIGAÇÃO, PUNIÇÃO, CORRUPÇÃO, DESEMBARGADOR, AMBITO NACIONAL.
  • CRITICA, TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), AUSENCIA, CONCESSÃO, HABEAS CORPUS, TRABALHADOR, SEM-TERRA, AUTOR, CRIME, ROUBO, OBJETIVO, SUPRIMENTO, NECESSIDADE.
  • CRITICA, GOVERNO FEDERAL, AUSENCIA, INTERESSE, SOLUÇÃO, POBREZA, PAIS, ESPECIFICAÇÃO, INEFICACIA, JUSTIÇA, BENEFICIO, CIDADÃO, BUSCA, RENDA.

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, os comentários feitos pelo Senador Romero Jucá anteciparam, de certa forma, parte do meu discurso, porque, na primeira parte de seu pronunciamento, S. Exª fez menção ao problema da Justiça em nosso País no que diz respeito aos desmandos que ocorrem nas instâncias do Judiciário, desmandos estes que, como em qualquer outro âmbito, precisam ser apurados, investigados e punidos.  

No meu Estado, há várias denúncias envolvendo juízes e desembargadores, e, com certeza, o que ocorre em outros Estados da Federação também ocorre naquele pequeno Estado do Acre, que, graças a Deus, hoje começa a ter uma nova cara, a partir do esforço do Governo do Estado e das pessoas que têm nos ajudado a fazer com que os princípios do Estado de Direito e as instituições voltem a prevalecer.  

Mas o que vou falar relativamente à Justiça talvez tenha a ver com uma avaliação mais ampla do seu funcionamento no tocante ao tratamento dos erros praticados pelos indivíduos e pelas instituições de um modo geral.  

Para tanto, Sr. Presidente - muito me honra que, neste momento, esteja presidindo a sessão o meu Colega de Bancada do Estado do Acre, o médico Tião Viana -, vou partir de um caso bem localizado, particular. A minha intenção é ilustrar o que ocorre na relação entre aqueles que têm a obrigação de fazer justiça e aqueles que deveriam ser corrigidos por um ato de justiça. No meu entendimento, fazer justiça não é fazer vingança. Fazer justiça é, por meio das instituições, corrigir aqueles que praticam delitos frente às regras previamente instituídas pela sociedade, numa espécie de pacto de convivência.  

No dia 15 do corrente, o Pleno do Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus para um caso que nos permite refletir muito. Há algumas semanas, o jornal Correio Braziliense publicou matéria sobre esse mesmo caso, que ocorreu no Município de São Bento do Una, em Pernambuco.  

O título da matéria foi: "Sem-terra podem pegar dez anos de cadeia por roubar bodes para alimentar filhos". Nela se relatou que a Polícia de Pernambuco manteve cinco homens presos por 183 dias, pelos seguintes delitos: roubo qualificado, esbulho possessório e formação de bando.  

Segundo a matéria, a lei esconde a anatomia dos fatos. Os presos José Caetano, Fabiano de Jesus, José Francisco, Cícero de Melo e Brasiliano Brito foram para a cadeia porque roubaram oito bodes. Roubaram para comer, para alimentar suas famílias. E ficaram até o dia 15 na cadeia pública da cidade, porque tanto o Juiz de São Bento, Gilvan Macêdo dos Santos, quanto o Tribunal de Justiça de Pernambuco negaram-lhes habeas corpus , o que permitiria que eles respondessem ao processo em liberdade.  

No Código Penal, o fato de roubar para saciar a fome é tipificado como crime famélico, e, sendo crime famélico, há uma atenuante de pena. A história desse chamado crime famélico começou em 3 de março, numa jornada de fome na Fazenda Santa Rita, quando sequer a "quarenta", que é uma mistura de fubá, sal e água morna, havia para alimentar esses homens e suas famílias.  

A "quarenta" do Nordeste deve ser semelhante à jacuba do Norte, que é uma mistura de farinha, água, pimenta e sal. Comíamos isso quando não havia o alimento correto para as atividades no roçado, principalmente no Estado do Pará, no Município de Santa Maria, onde morei com minha família, quando era ainda criança, durante um ano e oito meses. Aprendemos com os caboclos do Amazonas e do Pará a comer a jacuba, que é a "quarenta" do Nordeste. E nem a "quarenta" aqueles homens que foram presos tinham para comer!  

Sr. Presidente, Srs. Senadores, esses cinco presos são membros de um acampamento do MST na localidade de Santo Espírito, ocupada há oito meses por 53 pessoas. No dia prisão, os sem-terra estavam famélicos. Ainda assim, fizeram uma reunião para que fosse decidido se roubariam ou não os bodes.  

Fico imaginando uma família que não tem o que dar aos filhos. As esposas não têm como atender às necessidades das crianças. São cinco pais de família e cinco mães, e, pelo relato do jornal, eram 17 crianças, somando todas as famílias. Fizeram uma reunião para decidir se roubariam ou não os bodes do fazendeiro mais próximo.  

Um dos presos chamado Brasiliano, um senhor de 44 anos, disse: "Nunca roubei na vida. Fiz isso para salvar meus três filhos".  

Segundo os sem-terra presos, foram os choros das crianças - e só os cinco presos têm, juntos, 17 filhos - o combustível da ação. Cícero, um dos presos, disse: "Não podia deixar minha família morrer de fome".  

Há um episódio interessante: no caso do roubo dos bodes, o crime famélico sequer foi aproveitado pelas famílias dos sem-terra. Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, olhem que coisa absurda: os agentes que prenderam os cinco sem-terra recolheram a carne dos animais e a usaram para fazer um churrasco. Enquanto isso, os presos eram encaminhados à cadeia pública da cidade.  

Vejam como a Justiça é cega com relação ao desespero da fome e muito eficiente para atingir os pequenos! O promotor local, Alexandre Bezerra, alegou uma "subtração de animais caprinos". Por isso, ele pediu uma pena de quatro a dez anos de prisão para o grupo.  

Existe uma frase que diz: "Conhece-se a grandeza dos poderosos pela forma como tratam os fracos". É muito fácil ser rigoroso com cinco famílias famintas de sem-terra e com 17 crianças chorando de fome e condená-las a uma pena de quatro a dez anos de cadeia por "subtração de caprinos", com certeza, de um fazendeiro rico. E quanto a prender os criminosos do "colarinho branco", aqueles que desviam verbas do Orçamento, aqueles que praticam crimes de lesa-pátria e crimes contra a humanidade? Depois irei citar alguns crimes bastante bárbaros, cujos praticantes estão impunes até hoje.  

Ser forte com os fracos é muito fácil. Agora, podemos medir a grandiosidade de um juiz, a sua capacidade de ser justo, quando vemos que ele faz valer a devida dimensão de sua força, fazendo justiça contra os poderosos.  

Aliás, Sr. Presidente, o ato de justiça talvez seja uma das funções mais sacerdotais que existem. O rico pode gabar-se por ser rico; o belo, por ser belo; o forte, por ser forte, mas ao justo não é dado o direito de gabar-se por ser justo. Se porventura eu me gabar por ser justa, estou admitindo a possibilidade de ter uma outra saída que não seja a justiça. E se vislumbro uma outra saída que não seja a justiça, de fato não sou justa. Então, ao justo só existe uma saída: ser justo, justo e justo!  

É por isso que o Rei Salomão, quando foi instado pelas duas mulheres que alegavam ser ambas a mãe do filho, só teve uma saída para ser justo. Ele, que era um sábio, disse: "Partamos, então, a criança ao meio e vamos ver o que acontece". Uma das mães, que não era a legítima, disse: "Tudo bem! Pode parti-lo ao meio. Dá-me o pedaço do meu filho". E a mãe legítima disse o seguinte: "Deixe que ela leve o menino. Eu o quero vivo. Pode levá-lo!". E o Rei Salomão disse: "O menino é filho daquela que a ele renunciou por amor, porque a que não teve amor e preferiu parti-lo ao meio não é a verdadeira mãe".  

A justiça é um valor do qual não temos como abrir mão. E, para sermos justos, muitas vezes, temos de buscar a sabedoria. Isso sequer chega perto da ação desse juiz que, covardemente, prende essas pessoas.  

O Sr. Romero Jucá (PSDB - RR) - Permite-me V. Exª um aparte?  

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Concedo o aparte a V. Exª.  

O Sr. Romero Jucá (PSDB - RR) - Senadora Marina Silva, quero aplaudir o discurso de V. Exª e registrar que é duplamente lamentável o fato que V. Exª noticia. Primeiramente, lamento o ato em si, a ação legal e covarde da prisão, a forma como ocorreram esses fatos. O segundo fato a lamentar é que esse ato de arbitrariedade social e política ocorreu no meu Estado de Pernambuco. Sou oriundo de Pernambuco, que, na verdade, tem uma tradição de democracia e de responsabilidade. Portanto, é extremamente lamentável que isso tenha ocorrido lá. Ao tratar dessa questão e ao abordar, no início da sua fala, as considerações que fiz no plenário há pouco tempo, V. Exª só reforça a necessidade e a própria expectativa da sociedade de que tenhamos a condição de fazer justiça de uma forma diferente. Entendo que a CPI do Judiciário e, posteriormente, a reforma do Judiciário seriam - e podem ser ainda - momentos em que se tenha condição de construir uma justiça social, que não seja cega para os corruptos do "colarinho branco" ou para os meliantes de alto coturno, que seja uma justiça arguta, que enxergue longe ao prender alguém que pegou alguns bodes para matar a fome de sua família. Estranhamos esse fato, porque, funcionando mal a Justiça do Brasil, como podemos entender que, num rasgo de rapidez e de visão de profundidade, tenham agido dessa forma, mantendo presos durante seis meses alguns agricultores que roubaram cinco bodes? Realmente, é de se levantar suspeita em relação à forma como isso ocorreu. Quem patrocinou essa ágil ação da Justiça? Quero parabenizar V. Exª por suas palavras. Temos de nos posicionar politicamente para buscarmos uma Justiça diferente da existente hoje no Brasil. Não sou advogado, não sei qual o caminho técnico para isso, mas, sem dúvida alguma, quantas vezes forem necessárias, somarei minha voz a de V. Exª e a de todos os outros políticos que têm compromisso com a mudança do País, para que tenhamos condições de evitar que situações como essa ocorram ou que se repitam fatos mais graves, como os que aconteceram no Mato Grosso, Roraima e Alagoas. Estávamos conversando com a Senadora Heloisa Helena sobre a necessidade de a CPI convocar a Juíza de Alagoas que fez denúncias necessárias. Pergunto: será que, para investigar os desembargadores ou os crimes de Alagoas, é preciso que essa Juíza seja assassinada também? É esse o critério que vamos criar? É preciso que haja corpo para que haja ação? Na verdade, de um lado, muitas denúncias não são investigadas, e, de outro lado, sofre, com isso, um agricultor que, num determinado momento, matou um bode para saciar a fome de sua família. Infelizmente, hoje há dois pesos e duas medidas, que precisam ser equacionados. Parabéns pelo pronunciamento.

 

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Agradeço a V. Exª o aparte, que incorporo ao meu pronunciamento.  

O interessante, Senador Romero Jucá, é que este caso teve que vir ao Supremo Tribunal Federal porque o Tribunal de Justiça do Estado de V. Exª não permitiu habeas corpus . Eles foram de instância em instância e só conseguiram porque contavam com o apoio, a mobilização e a sensibilidade dos setores organizados, dos sindicatos, do Movimento dos Sem-Terra, de advogados. Caso contrário eles iriam ficar mofando na cadeia, cumprindo, talvez, penas de 4 a 10 anos. E só houve essa saída por causa da ação do grupo organizado. Se fossem pobres anônimos, que roubaram porque estavam famintos, mas que não tinham nenhuma vinculação a grupo organizado, com certeza, eles estariam na cadeia.  

Infelizmente, Sr. Presidente, não vejo a mesma disposição da Justiça para prender os "tubarões" que cometeram os crimes do colarinho branco e contra os direitos humanos. Poderia apresentar um rosário de exemplos como:  

a) O caso Coroa-Brastel, na década de 80;  

b) O caso dos empresários corruptos na época do Collor/ PC Farias;  

c) O caso Carandiru, onde ocorreu todo um processo e desconhece-se o resultado da apuração do massacre de 119 pessoas;  

d) O caso da Candelária, em que crianças não tiveram garantido o seu direito constitucional e acabaram chacinadas. O que ocorreu com todos os envolvidos?  

e) O caso de Eldorado de Carajás, em que negados a terra, os direitos elementares e até um simples transporte para os agricultores participarem de audiência com o Governador Almir Gabriel em Belém, os sem-terra caminharam a pé e encontraram traiçoeiramente a morte;  

f) O famoso caso "Pau Brasil", em que teria a justiça encerrado a apuração dos fundos eleitorais atribuídos ao ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf. Teria tido o mesmo rigor?  

g) E o que diremos do caso João Canuto, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, assassinado em 1985, que, mesmo tendo o Brasil recebido advertência internacional da OEA, segue sem solução? Esse caso ficou anos paralisado nas gavetas das principais autoridades do Estado, pois o processo envolve o ex-prefeito de Rio Maria - Pará, e foi confessado pelo próprio executor do atentado que se encontra evadido sem que as autoridades saibam onde encontrá-lo. Não se tem o desdobramento desse caso bárbaro que internacionalmente é conhecido.  

Todos os casos citados não tiveram desfecho criminal em relação às ilicitudes apontadas pela imprensa. Nos chamados "crimes de sonegação fiscal", há registros de algumas condenações de empresários em Minas Gerais e Rio Grande do Sul, mas isso é exceção. O que prevalece na punição ao crime no Brasil é a máxima de que o Direito Penal brasileiro só se destina aos mais pobres.  

O crime do "colarinho branco", de acordo com o que nos afirma o Procurador Regional da República, Dr. Mário Luiz Bonsaglia, em seu texto "A lei como causa da impunidade dos crimes fiscais", foi concedido, pela primeira vez, em 1934, como "toda uma gama de delitos mais sofisticados de fundo econômicos e perpetrados por pessoas das camadas sociais superiores."  

Desse tipo de crime, uma das principais modalidades é o crime fiscal. Esse que atinge a todos nós, porque afeta principalmente o Tesouro público. Incompreensivelmente esse crime não é punível quando o criminoso paga o débito!  

Ainda conforme o texto citado acima, houve um período em que foram tomadas medidas mais rigorosas, com base no Decreto nº 982/93, do então Presidente Itamar Franco, que permitia às unidades da Receita Federal encaminhar ao Ministério Público as notícias de infração que acionavam imediatamente a investigação e a punição. Mas isso durou muito pouco. Em 1995, o Presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei nº 9.249, que de novo restringia as ações de investigação e punição e permitiam a extinção da punibilidade mediante o pagamento de débito fiscal. A essa condescendência ainda foi adendada, em 1996, a Lei nº 9.430, que veda aos órgãos de fiscalização comunicarem os delitos imediatamente ao Ministério Público, devendo isso ser feito apenas após todo o processo administrativo fiscal. Isso, na prática é decretar a prescrição prévia dos delitos, se considerarmos a histórica morosidade da burocracia brasileira.  

O que se conclui, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, é que o Estado tem mostrado a sua face mais dura para os pobres, enquanto trata com bastante complacência as classes privilegiadas economicamente  

Por tudo isso caímos na desconfiança quando os mandatários desse Estado fazem gestos públicos que pretendem significar preocupações com o desenvolvimento socialmente justo do país, como é o caso agora da apresentação do PPA. E não só pelas razões que já apresentei até aqui.  

A leitura do Caderno "Brasil", página 11, da Folha de S. Paulo de ontem é bem ilustrativa do que estou dizendo. Veremos ali quatro matérias que, em seu conjunto, nos dizem a mesma coisa: O ESTADO NÃO ESTÁ PREOCUPADO COM A POREZA EM NOSSO PAÍS.  

A primeira matéria intitulada "Social não recebe verba programada" informa que o Proger que tem 1,6 bilhões do programa "Brasil em Ação", que reúne prioridades do governo, teve repasse zero até agora. Informa também que foi atingida pela contenção a própria rede de proteção social, base de um acordo com o BID, com repasses de menos de 10% do previsto. E, no geral, até agora foram liberados apenas 34,66% de todo o "Brasil em Ação".  

Não adianta a discussão técnica do PPA, sem segurança política de sua execução.  

O governo não deu sinal de que vai garantir a execução do PPA. Os sinais dados até agora são contrários a isso.  

A segunda matéria dessa página informa que o atraso de três meses no fornecimento das cestas básicas causaram ameaças de saques no Nordeste. Um total de 8,6 milhões de pessoas deixaram de receber as cestas.  

Dos 98,2 milhões orçados para as cestas, foram liberados até agora 46,2%, portanto menos da metade do valor e já estamos a menos de 4 meses do final do ano.  

A terceira matéria diz que 1.200 trabalhadores tentaram saquear um supermercado no centro de Maceió. O supermercado, para evitar o saque, negociou a doação de 500 kg de alimentos. Essa doação alimentará os trabalhadores por dois dias.  

A notícia do saque mostra a população entregue a si mesma e criando suas próprias soluções.  

A quarta matéria dá a notícia de que o Superintendente da SUDENE pediu demissão do cargo em função de ingerências do Ministro Fernando Bezerra na nomeação de cargos de confiança do órgão. Diz ainda que os prefeitos dos municípios onde há frentes de trabalho estão pressionando a SUDENE por mais recursos.  

A notícia da SUDENE permite a pergunta sobre se essas verbas – que já são tão poucas – não serão, no próximo ano, usadas eleitoralmente nas eleições municipais, transformando FOME em voto.  

Conclusão 

O que se percebe nas quatro notícias é que as ações do Governo estão girando em torno da mesma questão, mas não atacam o problema principal: a garantia política da execução dos projetos do PPA. O Plano, nesse contexto, fica como um parafuso espanado que não adianta mais apertar porque ele não cumpre mais sua função.  

Fica clara aqui a grande responsabilidade do Congresso Nacional como instituição, neste momento, particularmente a atuação da Comissão Mista que está tratando do tema da pobreza e buscando formular e abrir espaço para as informações de quem já está formulando e tendo experiências de resultados nessa área e acredito que o Executivo deveria proceder da mesma forma.  

O Sr. Moreira Mendes (PFL - RO) - Permite V. Exª um aparte?  

A SRA. MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Concedo o aparte ao querido Senador de Rondônia, meu vizinho de Estado e, com certeza, das mesmas agruras no que se refere à Justiça.  

O Sr. Moreira Mendes (PFL - RO) - Eminente Senadora, estou ouvindo atentamente seu pronunciamento, com o qual concordo inteiramente. Entretanto, da minha modesta experiência de advogado, quero fazer uma defesa do Judiciário, que, às vezes, é colocado injustamente no limbo. Essa questão da impunidade, que é uma realidade nacional da qual não podemos nos furtar e contra a qual me insurjo a todo momento, na verdade, existe muito mais por deficiência da lei do que por omissão dos juízes. Essa é uma questão técnica que precisa ficar clara. Evidentemente que pode haver exceções nesse meio, mas, na sua maioria, os juízes agem de acordo com o que está prescrito na Lei - e eles não podem agir de forma diferente. A reflexão que pretendo fazer é que nós, aqui no Congresso, devemos ter a coragem de modificar as leis que precisam ser modificadas. Vou citar um exemplo sobre a questão dos crimes eleitorais. Quem de nós já viu alguém ser punido por crime eleitoral? Porque é letra morta na lei, é feito para não ser cumprido. O juiz não tem como avançar, porque a lei é feita de tal forma a ficar apenas no papel. Não estou dizendo com isso que o Judiciário não tenha que ser revisto como um todo. Essa questão, sobretudo dos tribunais, tem que ser analisada em profundidade, porque há abusos, mas, lá na primeira instância, naquele interior de comarca, o juiz está ali praticando o seu ofício de acordo com a lei, que precisa ser mudada. A lei, realmente, da forma que está, só pune o mais fraco e não vai nunca alcançar aquele, como V. Ex.ª citou, do colarinho branco. Deixo, aqui, esta reflexão: nós, no Congresso Nacional, temos que ter a coragem de mudar a legislação, de forma a permitir que o juiz realmente aplique aquilo que está na lei. Os prazos são muitos, os recursos são muitos, a possibilidade que o advogado tem de manipular o processo para levar tempo é uma prática que eu cansei de usar como advogado. De qualquer forma, parabenizo V. Exª pela coragem e pelo conteúdo do pronunciamento que faz, importantíssimo e que serve como alerta para a nação.  

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Agradeço o aparte de V. Ex.ª. Com relação à reforma do Judiciário, há um trabalho sendo feito por uma colega, a Deputada Zulaiê Cobra, do PSDB, e fico feliz por ser uma mulher quem está à frente desse assunto. Espero que a sensibilidade feminina, nesse processo de reforma, realmente dê uma contribuição para que a Justiça possa funcionar como elemento de correção dos problemas da sociedade, das instituições e que, acima de tudo, não use de dois pesos e duas medidas.

 

Meu prezado Senador, também no caso dos crimes do colarinho branco há a uma tipificação clara: delitos praticados por pessoas ricas. São, portanto, delitos sofisticados, de fundo econômico, perpetrados por pessoas de camadas sociais superiores. É assim que é tipificado o crime do colarinho branco, assim como também existe uma tipificação para o caso do roubo dos caprinos feito pelos sem-terra. Só que, neste caso, o juiz consegue agir de pronto e prende-os, enquanto que, no caso do colarinho branco, não há a mesma eficiência, capacidade e competência. Muitas vezes, nem é preciso recorrer-se, pois sequer se consegue entrar na Justiça, como no caso de um vereador do Estado do Acre que, antes mesmo de chegar à delegacia, já tinha recebido o habeas corpus por meio de um telefonema do juiz. E tratavam-se de R$500 mil desviados da Câmara dos Deputados, não de caprinos roubados para matar a fome de dezessete crianças.  

É essa justiça que estou questionando e para a qual espero que, com a reforma do Judiciário, possamos ter uma resposta.  

Vejo que aquele conjunto de vaga-lumes já começa a piscar na minha frente, Sr. Presidente, e vou tentar concluir o meu raciocínio dizendo que um país onde os pobres merecem todo o rigor da Justiça e os ricos são tratados impunemente pelos crimes e delitos que praticam precisa reformular-se. E volto agora para o exemplo do Rei Salomão Os ensinamentos mais profundos nos mostram que para os pequenos o julgamento e o rigor da lei devem ser menores; para os maiores, o julgamento e o rigor da lei devem ser maiores, de acordo com a tipificação do crime.  

E continuo citando exemplos da Bíblia, porque talvez eu a conheça um pouco mais. Na época de Moisés, o povo judeu tinha um governo teocrático, nos moldes de produção asiáticos. Para os historiadores e sociólogos que gostam de trabalhar com essa categoria, o povo judeu também fazia parte de um modo de produção asiático e tinham um governo teocrático. E dentro desse modelo de governo, instituíam-se as penas por sacrifício. Naquele tempo, possuir uma fazenda de bois, de cabras e de ovelhas significava muita riqueza, e quando um príncipe ou um rei praticava um delito era obrigado a pagar sacrificando a Jeová vários bois, várias cabras e ovelhas. E um pobre, quando praticava um delito, sabem o que tinha que sacrificar? Uma pombinha, algo insignificante. Portanto, a pena de quem tem informação e conhecimento, de quem sabe o que está fazendo e faz deve ser maior do que a de quem é obrigado a fazer por uma necessidade. É claro que quando se tratava de ceifar a vida de alguém, tanto para um quanto para outro a pena era a mesma, mas estou falando de tipificação de delito, que, no caso, é bem clara.  

Sr. Presidente, darei continuidade ao meu pronunciamento na segunda-feira, abordando a parte social dessa luta em favor da justiça. Enquanto existirem pessoas que não têm salário, que não têm terra, que não têm educação, que não têm saneamento, não haverá justiça.  

O Cristovam, ontem, fez uma bela exposição na Comissão da Pobreza dizendo quais são os pontos principais que deveriam ser apresentados pelo Congresso Nacional como medidas concretas de erradicação da pobreza. Ele disse que se as pessoas não têm educação, se as pessoas não têm saneamento, se as pessoas não têm saúde, não têm justiça, elas continuam pobres. E se continuamos, além de pobres de dinheiro, pobres de justiça, somos os mais pobres do mundo, porque somos pobres de espírito. É isso que acontece com a Justiça brasileira quando trata os pobres famélicos, que roubam bodes e pães, ou saqueiam supermercados, como acontece no Nordeste na época da seca, com todo o rigor da lei e deixa impunes aqueles que estão saqueando os cofres públicos, seja por meio de obras superfaturadas ou de desvio e sonegação fiscal.  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/09/1999 - Página 24596