Discurso no Senado Federal

PESAR PELO FALECIMENTO DO FUNDADOR DA TANZANIA, JULIUS NYERERE. REFLEXÕES SOBRE A SITUAÇÃO CALAMITOSA DA AFRICA, ESPECIALMENTE DE ANGOLA E MOÇAMBIQUE.

Autor
Roberto Saturnino (PSB - Partido Socialista Brasileiro/RJ)
Nome completo: Roberto Saturnino Braga
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA INTERNACIONAL.:
  • PESAR PELO FALECIMENTO DO FUNDADOR DA TANZANIA, JULIUS NYERERE. REFLEXÕES SOBRE A SITUAÇÃO CALAMITOSA DA AFRICA, ESPECIALMENTE DE ANGOLA E MOÇAMBIQUE.
Aparteantes
Bernardo Cabral, Heloísa Helena.
Publicação
Publicação no DSF de 19/10/1999 - Página 27819
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, JULIUS NYERERE, FUNDADOR, PAIS ESTRANGEIRO, TANZANIA, DEFESA, SOCIALISMO.
  • ANALISE, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, MANUTENÇÃO, GUERRA, PAIS ESTRANGEIRO, AFRICA, ESPECIFICAÇÃO, MOÇAMBIQUE, ANGOLA, AUMENTO, FOME, MISERIA, INCIDENCIA, EPIDEMIA, MUTILAÇÃO, MORTE, POPULAÇÃO.
  • DEFESA, INTERVENÇÃO, GOVERNO BRASILEIRO, AUXILIO, EXTINÇÃO, GUERRA, CUMPRIMENTO, ACORDO, PAZ, PAIS ESTRANGEIRO, AFRICA.

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Sr as e Srs. Senadores, inicio meu pronunciamento com a expressão de um lamento pelo falecimento, ocorrido na sexta-feira última, do grande líder africano Julius Nyerere, fundador da Tanzânia, a unidade entre a antiga Tanganica com Zanzibar. Já apresentei um requerimento de expressão de pesar do Senado a ser comunicado ao Governo e ao povo da Tanzânia pela Embaixada.  

Neste pronunciamento, em que vou abordar questões ligadas ao continente africano, começo exatamente pela expressão de pesar profundo pela perda do cenário político mundial de uma das principais lideranças que, durante um certo tempo, conduziram a África para o chamado socialismo africano. Esse movimento contou com vários líderes de reconhecimento internacional, de grande valor, que praticamente fundaram seus respectivos países quando os livravam da condição de colônia após a II Guerra Mundial. Dentre eles destacam-se: Kwame Nkrumah, da República de Gana; Jomo Kenyatta, do Quênia; Agostinho Neto, de Angola; Samora Machel, de Moçambique; Patrice Lumumba, do Congo.  

Essas lideranças conduziram aquele continente a uma nova concepção política de libertação do colonialismo e da implantação de um sistema que tendia para o socialismo e que produzia ascensão econômica dos respectivos países dentro de uma linha desenvolvimentista marcada pela presença forte das iniciativas do Estado.  

Ocorre, Sr. Presidente, que, antes mesmo do completo desmoronamento do sistema soviético, com o enfraquecimento e a afirmação da unipolaridade - processo que não aconteceu de um minuto para o outro, mas que foi, durante alguns anos, manifestando-se -, esse conjunto de países e outros países do Norte da África foram um a um forçados a abandonar o caminho do socialismo africano, que tinha produzido bons resultados, para render-se — essa é a expressão correta — à globalização do neoliberal, do unilateralismo, da unipolaridade, que está, na verdade, devastando aquele continente.  

Nobres colegas, a África é um continente que interessa muito a nós, brasileiros. Interessa-nos economicamente, pela complementaridade que existe entre economias da África e a nossa economia, um sistema que tem um potencial de desenvolvimento de trocas comerciais muito interessante. Pertencemos ambos ao sistema econômico e estratégico do Atlântico Sul, que nos coloca juntos em muitas linhas de desenvolvimento dos nossos interesses.  

A África nos interessa também histórica e culturalmente, pelos profundos laços que nos unem nesse sentido. Sofremos uma influência cultural africana muito acentuada em nosso País e, por outro lado, exercemos sobre a África, por meio da liderança política de que o Brasil desfruta nesse sistema do Atlântico Sul de uma influência cultural importante. A África, afinal, também nos interessa afetivamente, porque a nossa população negra, esse contingente enorme da população brasileira, vê a África com olhos de interesse, atenção e identificação étnica e cultural.  

Pois bem, Sr. Presidente, a África está sendo dizimada — essa é que é a verdade nua e crua — pela pobreza; pela reversão daquele processo desenvolvimentista desencadeado nos anos 50 e 60; pela doença, especialmente pela AIDS, mas não apenas por ela, e sim por uma série de epidemias que estavam em processo de extinção e que exatamente reverteram esse processo de retração para se expandirem a taxas altamente preocupantes; por lutas internas que duram muitos anos em vários países e que têm episódios de maior ou menor atividade, mas que estão presentes em vários pontos do continente africano; pelo cinismo e pelo abandono das nações ricas do globo que outrora exerceram domínio colonialista naquele continente e que hoje o entregam à sua própria sorte, a esse processo de dizimação que tem muito haver com o processo de globalização, com o processo de financeirização da economia mundial e exploração através destes processos financeiros. Eu diria até - e este sentimento perpassa a mente de quase todo os observadores do mundo - que essas nações mais ricas do globo chegam a ocultamente se regozijarem com o que está sucedendo na África, que para eles, em uma observação absolutamente fria, significa um freio ao crescimento da população mundial que a eles preocupa muito, como, aliás, preocupa a todos os cidadãos do mundo.  

Agora, nós brasileiros, por todas essas razões de natureza histórica, econômica, cultural e afetiva, de maneira nenhuma, Sr. Presidente, podemos embarcar nesse sentimento cínico, nessa apreciação cínica do que ocorre com a África. Não podemos deixar-nos levar por este sentimento abominável que infelizmente existe na maioria das nações mais ricas do globo.  

Devemos, temos obrigação, temos sentimento e inclinação para olhar para a África com atenção, com solidariedade e com disposição de ajudar. Por que não? Com toda a precariedade dos recursos de que dispomos, com toda a precariedade do estado em que se encontra a nossa economia, devemos que ter essa disposição de ajuda a nações com as quais temos uma profunda ligação.  

Refiro-me à África como um todo, mais especialmente a África negra, àquele conjunto de países de população negra que tem uma relação mais forte com a população negra do nosso País, com nossas origens.  

Ao referir-me à África negra, falo especialmente de Moçambique e Angola, que são as duas grandes colônias que falam a nossa língua e que têm uma proximidade muito grande com a história brasileira.  

Ao destacar Moçambique e Angola, quero dizer que falo de maneira mais aflitiva de Angola, dada a situação dramática que aquele país vive momentaneamente. É um país mergulhado numa guerra interna de cerca de 25 anos que devasta sua economia. Sua economia se encontra em estado de colapso, como em colapso está a sua moeda. É um país que vê ressurgirem doenças que estavam quase em extinção, como a poliomielite e a doença do sono. A fome e a mutilação estão matando centenas de milhares de cidadãos seus, enquanto o Primeiro Mundo assiste a tudo isso de uma forma impassível. E são nações que propiciaram um acordo de paz firmado em 1994 entre o Governo oficial de Luanda e o comando da guerrilha, que hoje ocupa mais de metade do solo angolano, liderada pelo Sr. Jonas Savimbi. Esse acordo de paz foi desrespeitado pelo Sr. Savimbi sem que as nações que assistiram, intermediaram e propiciaram esse acordo fizessem alguma coisa, um gesto sequer para que ele fosse cumprido.  

O que fazem os países ricos do mundo para não intervirem de uma forma ou de outra, diplomaticamente que seja, mas de maneira incisiva, para forçar o Sr. Savimbi a cumprir o acordo de paz estabelecido e que pode ser a única forma de se trazer para Angola uma paz que recupere a economia e a vida daquela população, que está sendo dizimada pela pobreza, pela miséria, pela fome e pelos ferimentos da guerra?  

As nações ricas estão muito interessadas no petróleo, firmaram-se acordos de exploração do petróleo angolano. Angola é um país que tem riquezas muito importantes, petróleo em relativa abundância, jazidas de diamantes, um solo fértil, já foi um dos produtores importantes de café no mundo. Tudo isso está praticamente paralisado numa situação de guerra que já dura 25 anos. Enquanto isso, as nações ricas estão interessadas no petróleo. Com esse interesse, fizeram um adiantamento ao Governo de Angola de US$900 milhões, a fim de que possa comprar armamento para enfrentar a guerrilha que deveria ter sido forçada, de uma forma ou de outra, a cumprir o acordo de paz, que não cumpriu.  

As nações ricas estão interessadas em ganhar dinheiro, vendendo armas, explorando o petróleo angolano, comprometendo a economia de Angola - não sei por quanto tempo - e as receitas de petróleo e fazendo esse adiantamento de fornecimento de armas, para que o Governo angolano possa enfrentar as armas da guerrilha do Sr. Savimbi.  

O Brasil não pode assistir a essa situação de forma impassível e tranqüila. O Governo brasileiro tem de mover-se de alguma maneira, procurando intermediações e convocando os países mais poderosos do mundo, as potências, especialmente a norte-americana, para que se movam também no sentido de fazer cumprir o acordo de paz. Não é possível assistir impassivelmente à liquidação de uma nação inteira e à devastação da sua população pela guerra, pela fome e pela miséria.  

Nós, Senadores brasileiros, temos de nos manifestar, fazendo chegar aos centros políticos de decisão do mundo, por intermédio da nossa representação, esse desejo do Brasil de participar e de retomar uma iniciativa de intervir diplomaticamente, mas com força e decisão, para que aquela guerra encontre um fim e para que a população angolana possa respirar e tratar da sua sobrevivência e da sua economia, tão depauperada por esses 25 anos de guerra.  

O Sr. Bernardo Cabral (PFL - AM) - Permite-me V. Exª um aparte?  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) - Ouço V. Exª com prazer.  

O Sr. Bernardo Cabral (PFL - AM) - Senador Roberto Saturnino, um aparte geralmente revela o respeito e a atenção que se tem pelo orador. Não lhe preciso ressaltar essa circunstância, porque V. Exª há muito é credor da minha modesta admiração.  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) - Senador Bernardo Cabral, essa dileção é especialmente minha em relação à presença e à atuação de V. Exª.  

O Sr. Bernardo Cabral (PFL - AM) - O fio condutor filosófico do seu discurso é uma das maiores preciosidades que se pode medir neste momento por uma dupla circunstância de coincidências. Em 1967 – isso dá uma idéia de como já estamos ficando velhos –, tive a honra de ser seu colega na Câmara dos Deputados, e, ao longo desse tempo, V. Exª não perdeu o sentido exato da sua atuação. V. Exª lembrava ainda há pouco Kwame Nkrumak e o que era a África. Estou vindo agora – cheguei anteontem – da 19ª Conferência Bienal da Associação dos Juristas Mundiais, em que estava presente o Presidente da Suprema Corte de Angola. Quando V. Exª fala agora, parecer que ouço a repetição do que me disse aquele Presidente. Curiosamente, Sua Excelência falava que as sepulturas sem nome não eram causadas pelos pelotões de fuzilamento, mas pela fome, que levava parte da população. Algum desavisado, quando ouve alguém falar sobre a África, poderia perguntar por que não se fala do problema do Brasil. V. Exª está certo ao mostrar que os países de Primeiro Mundo, os ricos, não estão indiferentes apenas ao problema, mas eqüidistantes da solução. Quis ouvi-lo, por saber que a matéria seria desta natureza, e cumprimento-o. Se for pouco o cumprimento, considere-me solidário à sua manifestação.

 

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) - Muito obrigado, Senador Bernardo Cabral. A sua solidariedade e o seu cumprimento são altamente estimulantes para mim. Mas o que especialmente me toca é que V. Exª tenha essa compreensão e esse sentimento de indignação com o que ocorre em Angola e com a atitude de frieza, de distanciamento e de abandono por parte das grandes potências, interessadas, sim, no petróleo, em cujas negociações estão presentes, fazendo contatos e adiantamentos na perspectiva puramente econômica ou financeira de colocarem seus interesses em jogo. Mas não têm nenhum interesse ou sensibilidade pela sorte da população de Angola.  

Nós, brasileiros, temos obrigação moral, cultural e histórica – para não dizer sentimento socialista, por se tratar de um sentimento particular meu, por ter sido um dos que olharam com tanta atenção para o socialismo africano que emergia nos anos 50 e 60 – de recuperar, de resgatar laços muito profundos de cultura, de afetividade e de história que temos com as populações da África, da África negra e muito especialmente de Angola – mais do que de Moçambique, porque a nossa população negra veio em proporção muito maior justamente de Angola.  

A Srª Heloisa Helena (Bloco/PT - AL) - Concede-me V. Exª um aparte.  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) - Ouço V. Exª com prazer.  

A Srª Heloisa Helena (Bloco/PT - AL) - Senador Roberto Saturnino, fiz questão de fazer um aparte mesmo sabendo que o tempo de V. Exª está esgotado para dizer da minha emoção com seu pronunciamento e com o aparte do Senador Bernardo Cabral, demonstrando solidariedade à África, à nossa África. Tive oportunidade de, por muito tempo, estudar as estatísticas sociais especialmente relacionadas à saúde, em função de uma imposição da minha atividade antes de entrar na política. O mais doloroso é que todos os acontecimentos na área social, especialmente na área de saúde, os acontecimentos que V. Exª mencionou, a pobreza, a fome, doenças que hoje recrudescem com muito mais força, essa mesma realidade que vemos na África estamos vendo no Brasil. Isso é muito mais doloroso, porque as grandes nações não estão apenas frias, distantes e indiferentes. Elas patrocinam essa pobreza, essa miséria, esse sofrimento. Quando falamos da África, não devemos ter apenas um sentimento de solidariedade para com nossos irmãos excluídos e miseráveis, mas devemos parar para pensar um pouco na nossa realidade e no que pode ser o nosso futuro. Se hoje não existem as guerras, o sentimento ético ou religioso, ninguém sabe o que acontecerá no futuro no Brasil. Por isso, tenho ainda mais indignação com relação ao Governo Federal, porque caberia ao Brasil criar, interferir, insurgir-se contra essa ordem miserável que divide, que cria um verdadeiro abismo entre os que comem e os que não comem neste País. O Brasil poderia fazer isso. Com seu grande potencial de recursos hídricos, de áreas agricultáveis, o Brasil poderia inserir-se na globalização de forma diferenciada; e não o faz, não pensa nos seus humilhados, excluídos, famintos brasileiros, não pensa nos famintos da América Latina ou da África. Quando se fala em Fundo Monetário Internacional – de fato, não uma instituição de caridade, mas uma instituição financeira que representa os interesses das grandes nações e do capitalismo internacional –, não há jeito de eu não interferir no debate. Sempre me lembro do parasitoidismo, um fenômeno biológico que acontece entre as mesmas espécies animais e que, como o parasitismo, se trata de uma condição em que o parasita necessita do hospedeiro vivo, uma ambivalência entre o predador e a caça. O Fundo Monetário Internacional, até no seu parasitismo, está acabando com o hospedeiro. No mínimo, talvez o FMI seja saprófita da humanidade. Isso me dói muito mais como brasileira, como mulher da América Latina, excluída, marginalizada, que vê os nossos irmãos africanos submetidos à fome, à miséria e ao sofrimento, como no Brasil. E o Governo Federal hoje simplesmente fala de mais uma contribuição contra inativo, vendendo uma mentira para a opinião pública, dizendo que isso vai resolver o problema da pobreza do Brasil. Desculpe-me, mas tive de aparteá-lo, emocionada pelo pronunciamento sobre a África. Muito obrigada.  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) - Agradeço, Senador Heloisa Helena, o seu aparte. V. Exª não tem que se desculpar, mas eu tenho de agradecer a V. Exª essa contribuição, essa ligação que faz entre os fenômenos de empobrecimento e dizimação africana e empobrecimento e quase dizimação dos brasileiros. O processo é o mesmo. Não é à toa que se fala em africanização da América Latina, porque o processo é perfeitamente análogo, evidentemente umas regiões estão à frente das outras. Porém o caminho é precisamente o mesmo. Temos de estar atentos a isso e protestar, resistir, lutar, com indignação, contra esse processo que está levando o nosso País a esta situação e que colocou a África na condição trágica e dramática em que se encontra.  

Sr. Presidente, encerro o meu pronunciamento por onde comecei, tornando a expressar meu lamento e pesar pela morte do líder tanzaniano — presumo que o gentílico seja este — Julius Nyerere, um dos fundadores do socialismo africano e da República da Tanzânia.  

Muito obrigado.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/10/1999 - Página 27819