Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM POSTUMA AO POETA JOÃO CABRAL DE MELO NETO.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM POSTUMA AO POETA JOÃO CABRAL DE MELO NETO.
Publicação
Publicação no DSF de 29/10/1999 - Página 28840
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, JOÃO CABRAL DE MELO NETO, POETA, ELOGIO, CONTRIBUIÇÃO, DESCRIÇÃO, PROBLEMA, REGIÃO NORDESTE.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, afirma-se que a genialidade autêntica não é, via de regra, devidamente reconhecida durante a existência de seu portador. Essa idéia é muito difundida, desde, pelo menos, a época do Romantismo, em que o criador era visto como alguém avançado para o seu tempo, recebendo, enquanto vivo, a incompreensão da sociedade, mesmo que depois viesse a ser consagrado.  

Esta reflexão inicial ocorre-me no momento em que me proponho a homenagear talvez o menos romântico de todos os nossos poetas: João Cabral de Melo Neto. Dizem alguns que ele representa um daqueles casos em que um grande poeta tem em vida o reconhecimento a que faz jus. Não é isso, entretanto, o que me parece. É certo que a incompreensão inicial que sua poesia difícil e exigente encontrou foi em grande parte superada. Podemos lembrar-nos daquele crítico que censurou o autor, no início dos anos 50, por utilizar as palavras "cachorro" e "fruta", consideradas por ele pouco poéticas, em lugar dos termos "cão" e "fruto", endossados pela tradição lírica. Tal preconceito vocabular tornou-se, hoje, tão somente risível. O grau de inovação e a ousadia alcançadas pela poesia de João Cabral, no entanto, vão muito além do recurso a palavras pouco utilizadas em poesia. De maneira que é louvável que a Academia Brasileira de Letras, baluarte da tradição, tenha-no eleito para ingressar em seus quadros já em 1968. A concessão do prêmio Luís de Camões, pelos governos do Brasil e de Portugal, em 1990, e do Neustadt, da Universidade de Oklahoma, considerado uma espécie de passaporte para o Nobel, em 1992, foram, por sua vez, marcos significativos do reconhecimento internacional do poeta pernambucano.  

Afirmo, ainda assim, que sua impressionante obra poética não foi devidamente valorizada. E apresento, para isso, duas razões. Uma delas é a de que nosso País dá muito pouco valor à literatura, em geral, e particularmente à poesia. Os brasileiros lêem pouco e – o que é ainda pior – os jovens brasileiros lêem cada vez menos. As conseqüências disso são lastimáveis, prejudicando não só a formação intelectual de cada um desses jovens, como a identidade e o vigor da nossa cultura viva. A obra de João Cabral devia ser muito mais difundida entre nós, alcançando inumeráveis leitores que não se deixaram arrebatar por seu singular poder de encantamento lúcido, simplesmente por não ter tido acesso a ela.  

A outra razão é que as produções em língua portuguesa encontram sérios obstáculos para serem divulgadas e reconhecidas internacionalmente. O contraste com relação às obras escritas em uma língua irmã e muito semelhante à nossa como o espanhol é enorme. João Cabral teve, lá fora, alguns admiradores entusiastas, mas que nunca chegaram a formar grande número, como seria certo esperar se sua obra, em traduções competentes, fosse mais divulgada. Pouca valia tem, no entanto, lamentar que já não possa receber o Prêmio Nobel um dos escritores brasileiros que mais incontestavelmente o merecia, ao lado daqueles outros gigantes, também já falecidos, João Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. O que podemos fazer, o tributo que com a maior justiça e proveito devemos prestar a João Cabral é o de difundir mais e melhor a sua poesia. A melhor homenagem, do ponto de vista pessoal, é a do convívio com a sua poesia, que nos permite perceber, com novas lentes, de rara nitidez, tanto os poderes inesgotáveis da linguagem e da imaginação como a nossa realidade humana e social.  

Este é, sem dúvida, um dos traços mais marcantes da poética cabralina: sua capacidade de conjugar, em um mesmo poema, o mais extremo apuro técnico e a inovação formal com a precisa e contundente revelação da realidade. Essa dupla proficiência, por assim dizer, não se apresentou, no entanto, já nas primeiras obras do escritor. Em A Pedra do Sono , seu livro de estréia aos 22 anos, uma sucessão de imagens oníricas, de sabor surrealista, era organizada por uma vontade construtiva. O poeta busca, nas produções seguintes, suprimir esse material onírico, mas ao fazê-lo, depara-se com a possibilidade do vazio e do deserto, que é também a possibilidade do silêncio, "silêncio desperto e ativo como uma lâmina", como se lê em Fábula de Anfion . É interessante lembrar a afirmação do poeta de que sempre se sentia como se estivesse escrevendo seu último livro. Nesse excelente poema, que é a Fábula de Anfion , bem como em todo o livro de que faz parte, Psicologia da Composição , temos, aparentemente, o registro de um momento crucial de crise em relação à prática da poesia, apontando para uma mudança de atitude do autor, pela qual o poema passa a se abrir para as surpresas e impurezas do real.  

Essa abertura, no entanto, só ganhará consistência e conteúdo quando o poeta, diplomata de carreira, passa a viver no exterior. É aí que a realidade do Nordeste, impressa na carne de seu ser, começa a manifestar-se com força e evidência. Inicialmente, a realidade da cidade do Recife, o Recife do Capibaripe, dos mangues e da lama, mas sobretudo o Recife dos homens e mulheres que habitam essa paisagem – esta é a realidade que explode nas páginas de O cão sem plumas , com raro e intenso vigor metafórico. A superposição e a equivalência de rio, cão e homem, nesse poema fundamental, de 1950, permite-nos apreender o estado de extrema carência dos seres humanos, mas também sua capacidade visceral de resistência. Vale a pena citar alguns de seus versos cortantes:  

Entre a paisagem  

o rio fluía  

como uma espada de líquido espesso.  

Como um cão  

humilde e espesso.  

 

Entre a paisagem  

(fluía) 

de homens plantados na lama;  

de casas de lama  

plantadas em ilhas  

coaguladas na lama;  

paisagem de anfíbios  

de lama e lama.  

 

Como o rio  

aqueles homens  

são como cães sem plumas.  

(um cão sem plumas  

é mais  

que um cão saqueado;  

é mais  

que um cão assassinado.  

 

Um cão sem plumas  

é quando uma árvore sem voz.  

É quando de um pássaro  

suas raízes no ar.  

É quando a alguma coisa  

roem tão fundo  

até o que não tem).  

A presença da realidade do Nordeste brasileiro nos poemas de João Cabral vai, em seguida, ampliar-se, passando a abranger a paisagem e o homem do Sertão. Em seu mais famoso poema, o "Auto de Natal Pernambucano" Morte e Vida Severina , nosso poeta enfoca a condição geral dos pobres do Nordeste, acompanhando a migração de um lavrador, que sai do Sertão ressequido e passa pelos canaviais da Zona da Mata, até chegar à cidade do Recife. Em 1966, dez anos após sua primeira publicação, essa obra será montada pelo Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com música de Chico Buarque de Holanda, obtendo profunda repercussão e sucesso que se estendeu até o exterior. Ao mostrar, com toda a contundência, como a morte domina e subjuga a vida dos nordestinos pobres, nosso poeta termina por afirmar, com autêntico espírito natalino, a intrínseca grandeza da vida que surge nessas condições. Assim é que falam, para saudar o menino que nasceu na beira do mangue, "os vizinhos, amigos (e) pessoas que vieram com presentes":  

– De sua formosura  

já venho dizer:  

é um menino magro,  

de muito peso não é,  

mas tem o peso de homem,  

de obra de ventre de mulher.  

 

– De sua formosura  

deixai-me que diga:  

é uma criança pálida,  

é uma criança franzina,  

mas tem a marca de homem,  

marca de humana oficina.  

 

(...) 

 

– De sua formosura  

deixai-me que diga:  

é belo como o coqueiro  

que vence a areia marinha.  

 

(...) 

 

– De sua formosura  

deixai-me que diga:  

é tão belo como um sim  

numa sala negativa.  

 

(...) 

 

– Belo porque tem do novo  

a surpresa e a alegria.  

– Belo como a coisa nova  

na prateleira até então vazia.  

– Como qualquer coisa nova  

inaugurando o seu dia.  

– Ou como o caderno novo  

quando a gente o principia.  

O poeta, a essa altura de sua carreira, já encontrou plenamente sua voz própria e passa a enriquecê-la e a multiplicar os seus timbres e temas. Assim é que João Cabral vai aprofundar e adensar a presença do sertão em sua poesia, não apenas retratando sua dura realidade, mas aprendendo a tornar seu verbo cada vez mais essencial e concreto, por meio de uma "educação pela pedra". Assim é que o poeta dedica inúmeros poemas à paisagem física e humana da Espanha, especialmente à cidade de Sevilha, na Andaluzia, com a qual passa a sentir uma profunda identificação. Assim é que aparecem belos poemas em que trata da mulher e da experiência erótica, de modo, como sempre, muito original, como se passássemos a ver pela primeira vez coisa já de há muito sabida; assim é que, sobretudo em seus últimos livros, a memória de suas vivências pernambucanas e andaluzas vai fornecer a espessa matéria a ser organizada poeticamente.  

Nosso poeta, que cultivava uma certa reserva e desconfiança quanto à manifestação dos sentimentos, era dotado, sem dúvida, de uma profunda sensibilidade, de uma rara capacidade de penetração na realidade que o cercava. Sua defesa da poesia como uma construção, em detrimento da idéia de inspiração, levou-o a definir o poeta como um "engenheiro", influenciado por pessoas como o arquiteto francês Le Corbusier e o engenheiro e poeta pernambucano Joaquim Cardoso, o qual trabalhou com Oscar Niemeyer na construção de Brasília, fazendo o cálculo estrutural de muitos de seus principais prédios, inclusive o deste em que agora estamos. Pois bem: se João Cabral é um engenheiro da poesia, ele nunca deixará de colocar o homem dentro de sua construção: um homem que sente, um homem vivo, um homem que tem prazer e que sofre; e que, antes de tudo, não abdica da condição grandiosa e difícil de ser homem.  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, penso, sim, que João Cabral deveria estar ainda mais presente na cultura brasileira; que todos nós – especialmente, os nossos jovens – podemos conhecer mais e conviver melhor com sua poesia luminosa, tornando-nos seres humanos mais despertos, mais conscientes de tudo aquilo que acontece à nossa volta, especialmente de uma condição de opressão que quer tirar dos nossos semelhantes até aquilo que eles não têm. Se já há pessoas que freqüentam seus poemas e com eles se enriquecem, quão melhor não seria se fosse muito maior esse número. Afinal:

 

Um galo sozinho não tece uma manhã:  

ele precisará sempre de outros galos.  

De um que apanhe esse grito que ele  

e o lance a outro; de um outro galo  

que apanhe o grito que um galo antes  

e o lance a outro; e de outros galos  

que com muitos outros galos se cruzem  

os fios de sol de seus gritos de galo,  

para que a manhã, desde uma teia tênue,  

se vá tecendo, entre todos os galos.  

Por todas as admiráveis lições que nos deixou, por seu humanismo radical e íntegro, desprovido de sentimentalismo mas não de sentimento – por isso mais comovente –, pela maneira lúcida e intensa com que exerceu seu ofício, tornando mais intenso nosso encantamento pela vida que é e pela que pode ser, sinto-me feliz em poder homenagear, deste plenário, o grande poeta João Cabral de Melo Neto.  

Muito obrigado.  

 

på Q


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/10/1999 - Página 28840