Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO, NO PROXIMO DIA 20, DO DIA NACIONAL DA CONSCIENCIA NEGRA.

Autor
Geraldo Cândido (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Geraldo Cândido da Silva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • COMEMORAÇÃO, NO PROXIMO DIA 20, DO DIA NACIONAL DA CONSCIENCIA NEGRA.
Publicação
Publicação no DSF de 20/11/1999 - Página 31310
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, NEGRO, BRASIL, PRECARIEDADE, SITUAÇÃO, POSTERIORIDADE, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, AUSENCIA, POLITICA, INTEGRAÇÃO.
  • COMEMORAÇÃO, DIA NACIONAL, CONSCIENTIZAÇÃO, NEGRO, HOMENAGEM, ZUMBI, VULTO HISTORICO, QUILOMBOS, RESISTENCIA, ESCRAVATURA, BRASIL.
  • COMENTARIO, DADOS, MINISTERIO DA EDUCAÇÃO (MEC), INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA (IBGE), DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATISTICA E ESTUDOS SOCIO ECONOMICOS (DIEESE), INFERIORIDADE, INDICE, DESENVOLVIMENTO, POPULAÇÃO, NEGRO, BRASIL, REIVINDICAÇÃO, PROVIDENCIA, GOVERNO, COMBATE, DESIGUALDADE SOCIAL.

O SR. GERALDO CÂNDIDO (Bloco/PT - RJ) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, o Brasil ainda não derrubou o muro do racismo, do preconceito, da discriminação e da exclusão. Estamos a poucos dias de um novo milênio, que marcará os 500 anos do descobrimento do Brasil e os 112 anos da Lei Áurea. Mas, infelizmente, a condição do negro na sociedade pouco mudou.  

Nós, negros, somos cerca de 48% dos brasileiros. O que significa dizer que o nosso país, depois da Nigéria, tem a maior população negra do mundo. O negro sobreviveu "ontem sob o açoite na senzala; e hoje, na miséria da favela", como nos versos do belo samba enredo da Estação Primeira de Mangueira.  

A abolição da escravidão deixou os afro-descendentes livres. Mas sem terra, sem escola, sem saúde, sem trabalho. Sem acesso a qualquer benefício. Isto significa que, historicamente, o Estado Brasileiro não construiu estratégias de integração da população negra na sociedade brasileira. Ainda hoje, não incluiu em seu projeto de nação os herdeiros dos africanos no Brasil. Os negros livres tiveram de sair das fazendas com as mãos abanando. Enquanto isso, os europeus recebiam vários incentivos para vir ao Brasil, como terra e ajuda financeira.  

Realidade que, infelizmente, persiste. Um exemplo recente do racismo da sociedade brasileira foi noticiado no último dia 10, no jornal "O Dia", do Rio de Janeiro. O radialista Mauro Guthierres da Rosa, um negro de 39 anos, sofreu um grande constrangimento, na tarde do dia oito deste mês. Mauro foi à agência do Banco Real, da Rua Buenos Aires no centro do Rio, e ficando travado na porta giratória daquela agência, foi coagido pelos seguranças e pelo gerente a mostrar todos os seus pertences. O radialista ficou por mais de 40 minutos dando explicações, tendo inclusive que tirar a sua roupa, ficando – pasmem Senhoras e Senhores Senadores – apenas de cueca. O lamentável incidente foi registrado na delegacia policial da região e na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal, por sinal, presidida por uma parlamentar negra, a Vereadora Jurema Batista, do PT. É bom lembrar que de acordo com a Lei 7.716, a chamada "Lei Caó", racismo é crime inafiançável.  

Contudo, é preciso enfocar a resistência à escravidão, que tem em Zumbi dos Palmares a principal referência dos oprimidos de todas as raças e classes. Assassinado em 20 de novembro de 1695 pelas forças coloniais portuguesas, Zumbi renasce a cada 20 de novembro, data em que, hoje, comemoramos o Dia Nacional da Consciência Negra.  

O primeiro grito de liberdade a ecoar no novo mundo, na América, foi dado por Zumbi. Ele pagou com a própria vida por ter ousado construir, no interior do Brasil escravocrata do século 16, a República de Palmares. Uma sociedade multirracial e pluricultural, onde viveram em liberdade escravos fugidos, índios e brancos pobres. Sem opressão de raça nem de gênero. Uma sociedade renovada, onde a exclusão do preconceito e do racismo foi uma realidade. Do ponto de vista étnico e político, aquela foi a única democracia racial de que se tem notícia em solo americano.  

Durante anos, a história de Zumbi e do Quilombo dos Palmares, situado na Serra da Barriga, entre os estados de Alagoas e Sergipe, não mereceu sequer citação nos livros de história, sendo tratados como "episódio marginal, de pouco significado". Na verdade, foi a mais importante luta dos brasileiros por liberdade, pela construção de uma sociedade justa e igualitária. Zumbi, hoje um herói nacional, representa um símbolo de luta por uma sociedade humana melhor.  

No geral, as revoltas negras ainda não alcançaram o que poderíamos chamar de "direito à história oficial". Mas se a saga de Zumbi dos Palmares ganhou status de comemoração oficial, a partir do tricentenário de sua morte, em 1995, sem dúvida foi graças à obstinação e perseverança dos que, como ele, jamais se renderam.  

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, a escravidão negra deixou marcas profundas que se caracterizam, principalmente, através do preconceito e discriminação, responsáveis pelo grande contingente de afro-descendentes despossuídos e à margem do crescimento econômico. Não dá para falar em miséria e fome sem lembrar da pobreza dos negros brasileiros. Se o país tem 57 milhões de pobres, ou seja, 36% da população, podemos dizer que grande parte desse contingente é formado pelos afro-descendentes.  

A discriminação está nos números. Levantamento do Ministério da Educação, onde 22,2% da população negra são de analfabetos, enquanto 9% dos brancos não sabem ler e escrever. Outros dados: em 1990, os negros tinham, em média, 3,3 anos de estudo; os pardos, 3,6 anos; e os brancos, 5,9 anos. A Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgada em 1997 mostra que, enquanto mestiços e brancos ganham em média 6,3 salários mínimos, os negros recebem 2,9 salários mínimos.  

Outra pesquisa, que mostra a discriminação do negro no mercado de trabalho - Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho -, realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), revela que na média, somente 6% dos cargos decisórios no país são ocupados por negros. Isso é muito pouco. Apenas no Distrito Federal é que este percentual sobe para 15,9%. É a maior presença entre seis regiões metropolitanas pesquisadas, porque além do DF, o estudo foi realizado em Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo.  

A pesquisa do Dieese mostra que os negros realmente estão em subempregos ou empregos ruins e longe do poder decisório da sociedade brasileira. A maioria está a um passo do desemprego (41,2% trabalham sem carteira assinada, em biscates ou serviços domésticos). Pelo menos 22,6% dos negros no mercado de trabalho estão em vagas que não exigem qualquer qualificação. A taxa de desemprego entre negros também é alta, ficando na faixa de 21,7%, enquanto entre os não negros é de 16,5% .  

Os resultados da pesquisa trazem informações que demonstram uma situação de reiterada desigualdade para os trabalhadores negros no mercado de trabalho, de ambos os sexos, demonstrando, sem sombra de dúvidas, que a discriminação racial é um fato presente e cotidiano. Mais ainda: os resultados permitem concluir que a discriminação racial sobrepõe-se à discriminação por sexo, combinando-se à esta para formar o cenário de aguda dificuldade em que vivem as mulheres negras, atingidas tanto pela discriminação racial como pela discriminação de gênero.  

"A situação apresentada por estes dados revela um aspecto crucial da desigualdade social no Brasil: injusta distribuição da riqueza gerada e de políticas econômicas que beneficiam grupos privilegiados, em detrimento dos trabalhadores. Está calcada também sobre diferenciações e comportamentos discriminatórios disseminados por todo o país. A justiça social, a igualdade de oportunidades, a cidadania plena, enfim, as condições que ofereçam a todos uma igual distribuição das possibilidades de obter seus sustento e a plena realização de suas capacidades passam, necessariamente, pela construção da igualdade racial no Brasil".  

Esse abismo que separa negros e não negros é mais do que conseqüência de 400 anos de escravidão. Também é resultado do processo de "abolição à brasileira". A história registra que os escravos só foram libertados porque era mais vantajoso economicamente trocá-los por imigrantes europeus assalariados.  

Passado mais de um século de abolição, a realidade de exclusão se mantém. Conseqüência direta de uma herança secular de pobreza, referendada por uma ideologia de suposta inferioridade racial. A pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios, divulgada em 1997, pelo IBGE, mostra que, enquanto mestiços e brancos ganham em média 6,3 salários-mínimos, os negros recebem 2,9.  

Diante dessas evidências e das badaladas comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil, cabe uma questão: como podemos falar em comemorações com tantas desigualdades ? 

A cidadania pretendida pelos negros tem como objetivo o despertar para a situação de exclusão em que vive a maioria brasileira de raízes africanas. O governo FHC e sua política neoliberal, associados que estão ao passado colonial escravista, explorador e excludente das elites brasileiras, perpetua as desigualdades sociais, priorizando questões econômicas e acordos internacionais, diga-se FMI. Os efeitos das ações deste governo ampliam ainda mais os contrastes sociais, gerando situações como a informalização crescente do mercado de trabalho e o aumento do desemprego. Quem mais sofre as conseqüências deste desgoverno são os menos privilegiados, ou sem privilégio nenhum, da cidade ou do meio rural, acentuando ainda mais a violência e o genocídio da população negra e pobre.  

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, o primeiro passo para que se reconheça a questão racial como uma questão nacional é entendê-la como de responsabilidade de todos que lutam pela construção de uma sociedade justa e igualitária. Para isso, é necessário o rompimento do histórico silêncio sobre a discriminação racial; conhecimento este que nos leva a constatar que um trabalhador negro, com formação universitária, recebe o equivalente à metade do salário de um trabalhador branco com igual qualificação. Nesta data – Dia Nacional da Consciência Negra – em que homenageamos a imortalidade de Zumbi dos Palmares, reafirmamos que o caminho para alterar a realidade da população negra é atender às suas necessidades básicas imediatas e o combate ao neoliberalismo.  

Todas as denúncias de racismo já foram feitas. O mito da democracia racial está ultrapassado. Exigimos, portanto, ações efetivas do Estado que retire a população afro-descendente da condição de marginalização perante a sociedade brasileira, para que tenhamos orgulho de conviver na multiplicidade de raças e de culturas, pois não é possível construir um projeto de nação e de cidadania sem levar em conta a marginalização dos afro-descendentes brasileiros.  

Finalizando, não poderia deixar de mencionar o exemplo de tolerância e democracia que nos deu um grande clube brasileiro, o Clube de Regatas Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, não por acaso, o clube de minha predileção. O Vasco foi o primeiro clube de futebol a receber em suas equipes e quadro social, negros, operários e imigrantes pobres. Esta história libertária e centenária, deste que é um dos mais populares clubes brasileiros, é um exemplo de que podemos conviver na multiplicidade de raças e culturas, construindo assim um projeto de nação solidária e cidadã, onde o ser humano não seja discriminado pela cor da sua pele.

 

"Valeu, Zumbi".  

Muito obrigado.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/11/1999 - Página 31310