Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO AO QUADRAGESIMO ANIVERSARIO DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA.

Autor
Tião Viana (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Sebastião Afonso Viana Macedo Neves
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.:
  • COMEMORAÇÃO AO QUADRAGESIMO ANIVERSARIO DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA.
Publicação
Publicação no DSF de 24/11/1999 - Página 31436
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO, DECLARAÇÃO, DIREITOS, CRIANÇA, NECESSIDADE, DEBATE, POLITICA SOCIAL, ATENDIMENTO, MENOR, CUMPRIMENTO, ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, DEFESA, PROGRAMA, RENDA MINIMA, VINCULAÇÃO, EDUCAÇÃO.
  • GRAVIDADE, SITUAÇÃO, BRASIL, RELAÇÃO, MORTALIDADE INFANTIL, FOME, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, MENOR, VIOLENCIA, LEITURA, TEXTO, AUTORIA, DEODATO RIVERA, CIENTISTA POLITICO.

O SR. TIÃO VIANA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, foi com imensa alegria que apresentei um requerimento à Mesa do Senado solicitando uma sessão para comemorar o 40º aniversário da Declaração Universal dos Direitos da Criança. É uma data preciosa para refletirmos e para orientar o caminho das decisões que este País tem a tomar. Se existe uma grande dívida, impossível mesmo de ser dimensionada, é a que temos com a criança brasileira e, podemos também dizer, com as crianças dos países pobres do nosso Planeta.  

Vale a pena lembrar que, quando falamos em criança brasileira, pensamos naquelas que estão próximas a nós, das nossas famílias, mas o modelo econômico imposto pelas grandes corporações que dominam a economia internacional traz o flagelo da crise social que se abate sobre nós, redundando em estatísticas que nos apontam uma enorme dúvida sobre o horizonte moral que a sociedade contemporânea tem a enfrentar e para o qual precisa buscar uma solução.  

Vale lembrar a estatística que reafirma que 35 mil crianças morrem, todos os dias, em função da fome ou de doenças evitáveis. Vale lembrar a estatística que afirma que 250 milhões de crianças deste Planeta são obrigadas a trabalhar, quando deveriam estar aprendendo a formação e o caminho moral dos seus antepassados, pais, avós, e de sua comunidade; no entanto, são forçados a trabalhar para complementar a renda familiar no enfrentamento da dor da fome. Vale lembrar ainda que o nosso País tem uma infinidade de crianças que passam privações, o que, na verdade, deve servir não como motivo de grande vergonha para nós, mas como um grande desafio ético e moral para que possamos construir o Brasil com o qual sonhamos.  

Sr. Presidente, ao ocupar esta tribuna para homenagear o 40º aniversário da Declaração Universal dos Direitos da Criança, lembro as palavras de uma criança de rua, chamada Rogério, que, em Curitiba, recentemente, entregou um texto por ele escrito ao jornalista Washington Araújo, que diz:  

"Para vocês vida bela  

Para nós favela  

Para vocês carro do ano  

Para nós resto de pano  

Para vocês luxo  

Para nós lixo  

Para vocês escola  

Para nós esmola  

Para vocês ir à Lua  

Para nós morrer na rua  

Para vocês coca-cola  

Para nós cheirar cola  

Para vocês avião  

Para nós camburão  

Para vocês academia  

Para nós delegacia  

Para vocês piscina  

Para nós chacina  

Para vocês compaixão  

Para nós organização  

Para vocês imobiliária  

Para nós reforma agrária/  

Para vocês tá bom, felicidade  

Para nós... igualdade!"  

Sr. Presidente, acredito ser essa uma das melhores sínteses da realidade em que vivem as crianças pobres deste País, as quais deveriam viver a possibilidade de exercitar o sorriso, a esperança, a construção do seu próprio futuro, na afirmação de sua personalidade no meio de sua família.  

No Brasil, Sr. Presidente, foram assassinadas 4.611 crianças menores apenas no triênio de 1990/92, sendo que mais da metade dessas mortes resultaram de armas de fogo. Das vítimas, 82% são crianças negras, e, desse contingente, 23% são meninas. A média de menores assassinados por dia no Brasil é de 4,2%. A maioria dos crimes é atribuída a grupos de extermínio.  

Esses dados nos apontam para uma realidade que nenhum cidadão brasileiro quer para a sua vida, para a sua comunidade, para o seu País. O grande fato com o qual nos confrontamos hoje é que o cidadão que pode ter a sua casa, o seu abrigo, a sua família, encontra-se amedrontado, com medo da violência praticada por aqueles que poderiam crescer e com quem deveríamos compartilhar o mesmo direito à cidadania que temos hoje.  

Um dos episódios mais belos, que registra a realidade da situação da criança como a grande causa do povo brasileiro e do povo de uma maneira universal, aconteceu na década de 40 e ilustra muito bem o aspecto civilizatório dessa questão:  

"Um grupo de xavantes - povo então recém-descoberto - foi levado ao Rio de Janeiro para conhecer a civilização. Após verem tantas coisas que os maravilhava e aturdia, os antigamente chamados silvícolas, intrigados, indagaram ao sertanista que os acompanhava como se abastecia aquela gente toda: donde lhes vinham a carne, as frutas, os legumes etc. O sertanista os leva então a um grande mercado, o CEASA da época, e se orgulha de exibir-lhes as imensas pilhas de hortifrutigranjeiros que entulhavam o pavilhão. Subitamente, escuta-se um grito xavante de reunir: todos os índios acorrem para o lugar do grito. Quando o sertanista chega ali, depara com uma cena inusitada: todos em roda, os xavantes contemplavam, atônitos, um menininho que comia restos de lixo no chão do empório. Inquirido, o sertanista só pôde informar que a criança deveria ser de família muito pobre e certamente sobrevivia daquela forma. A visita perdeu toda a graça para os xavantes. Só no regresso à tribo o sertanista compreendeu por que: antes de dizer uma palavra sequer sobre as maravilhas da nossa civilização e do Rio de Janeiro, os xavantes, emocionados, relataram a cena do menino comendo lixo. Fora o que mais os impressionara "na civilização" do homem branco. Para esse povo, que julgávamos "selvagem", a criança era sagrada. Ela passava antes de tudo e de todos..."  

Esse é um trecho de um livro de Deodato Rivêra, lançado em 1994, no Rio de Janeiro, pela Coleção Pedagogia Social.  

O desafio que temos, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, enquanto sociedade dita civilizada, é enorme. Não podemos adiar mais as transformações que se impõem para os dias de hoje. As Nações Unidas, por intermédio de seus povos, reafirmaram a sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e resolveram promover o progresso social, com melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla, proclamando a Assembléia Geral da ONU, de 21 de novembro de 1959, a chamada "Declaração dos Direitos da Criança", que comemoramos hoje.  

Trinta anos depois dessa declaração, no dia 20 de novembro de 1989, a Assembléia Geral da ONU aprovou a Convenção dos Direitos da Criança, que, ao longo dos seus 54 artigos, formula um código universal sobre os diferentes aspectos que afetam a infância: a saúde, a educação, o trabalho, a atenção familiar e as obrigações do Estado. A Convenção é de cumprimento obrigatório para todos os países signatários, o que representa um inquestionável ponto de referência na história da infância. Ela, que foi ratificada por quase todos os países do mundo, compreende a mais completa expressão contemporânea internacional dos direitos da criança e se aplica a todas as pessoas entre 0 e 18 anos de idade.  

O Brasil é um dos signatários e a lei brasileira referente à Convenção Internacional é o Estatuto da Criança e do Adolescente, aprovado em agosto de 1990.  

O Estatuto da Criança e do Adolescente introduz mudanças profundas e amplas nas políticas públicas dirigidas à infância e à juventude brasileira; promove uma revolução das nossas leis; mudanças em conteúdo, dando enfoque doutrinário, da situação irregular para a proteção integral; de método, quando guarda rigorosa consistência com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e com a Constituição Federal; e de gestão, quanto às políticas e programas voltados às crianças e à participação da população, por meio de suas organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.  

Citarei algumas frases do saudoso e eminente Senador e Presidente da República eleito, Tancredo Neves, quando da assinatura do nosso Estatuto da Criança e do Adolescente. São frases da lembrança do povo brasileiro, que acompanha uma perspectiva de um país ético e com profunda justiça social:  

"A criança é a nossa mais rica matéria-prima. Abandoná-la à sua própria sorte ou desassisti-la em suas necessidades de proteção e amparo é crime de lesa-pátria."  

Outra frase de Tancredo Neves:  

"É dever de todos recuperar para a sociedade os menores que o destino marginalizou, para fazer deles cidadãos prestantes e homens e mulheres úteis no Brasil."  

Outra ainda:  

"Negar-lhes nossa solidariedade humana, patriótica e cristã é uma irreparável traição nacional." (Tancredo Neves, por ocasião da elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente)  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, trago alguns dados para registro. Não acredito que seja muito importante trazê-los, porque basta andarmos pelas ruas das cidades brasileiras para nos confrontarmos com o drama vivido pelos menores de rua, ou menores na rua, como é o termo mais apropriado, porque eles não são de rua; estão nas ruas seguramente por falta de políticas públicas que os atendam e que estejam à altura da própria grandeza humana, que deveria ser compartilhada na apresentação das nossas cidades.  

É profundamente lamentável divulgar pesquisas feitas pelo Ministério da Saúde e pela Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional - USAID, que mostram dados alarmantes sobre o comportamento dos adolescentes no tocante à precocidade das relações sexuais. Entre 1986 e 1996, dobrou o número de jovens que tiveram a sua primeira relação sexual entre os 15 e 19 anos. Da mesma maneira, 14 milhões de adolescentes no mundo tornam-se mães e 10% dos abortos realizados são praticados por mulheres entre 15 e 19 anos.  

No Brasil, o parto é a primeira causa de internação de adolescentes no sistema público de saúde. Em 1996, 14% das jovens com menos de 15 anos já tinham pelo menos um filho, e, de cada dez mulheres que hoje têm filhos, duas são adolescentes.  

São dados que apontam para a falta de correção dos caminhos sociais que o nosso Brasil deveria ter, uma herança que acompanha a criança - é bom que se diga - desde a ordem social e econômica que se afirmava como modelo de escravidão, em que crianças com seis anos de idade eram obrigadas, sob a luz e a ação dos chicotes, à prática de serviços forçados para compartilhar da produção dos chamados aristocratas do nosso País.  

É lamentável imaginar que, segundo o Código Penal Brasileiro, considera-se como crime hediondo a prática de relação sexual com crianças abaixo de 14 anos, porque configura uma violência presumida, o que caracteriza o estupro, um crime hediondo. E é lamentável observar que seja uma regra nacional que milhares de crianças nessa faixa etária estejam grávidas em nosso País.

 

Com relação ao Estado do Acre, cito um levantamento estatístico recente, em que 5% dos casos de gestação ocorrem em crianças entre 9 e 14 anos de idade. Trata-se, portanto, de um crime hediondo, que não é esclarecido, em que não há aplicação da lei, em que não se pratica a correção necessária para os rumos, que gostaríamos de ver, sob o ponto de vista da ética social.  

Encerro, Sr. Presidente, fazendo a leitura de uma matéria que considero uma obra-prima. Trata-se de um texto de Deodato Rivêra, com citações a Manuel Bandeira, André Malraux e Odylo Costa, filho a propósito de um acontecimento ocorrido em 1963, no Rio de Janeiro. O filho de Odylo Costa, filho, chamado Odylo Costa, neto, de 18 anos de idade, ao proteger a sua namorada de um assalto, num ato humanista, de solidariedade e de amor, foi assassinado por um jovem de apenas 15 anos. Deodato Rivêra, nesse texto, retrata a interpretação de Odylo Costa, filho da própria dor familiar, com a pergunta: "Por que um menino mata?" Também Manuel Bandeira faz a sua interpretação sobre o assunto, sob a visão do poeta, que é o tradutor do sentimento humano.  

A idéia de uma visão apaixonada da sociedade, que muitas vezes se afasta, indignada, da ação do direito, da justiça que todos deveriam ter, e propõe uma ação de violência, uma ação punitiva apenas, afastando, com a sua indignação, num momento de dignidade da vida, porque se envolve emocionalmente, perdendo e abrindo mão de sua lucidez. O texto afirma que é necessário indagar, em relação às causas da criminalidade, por que um menino mata. E, depois, como alterar as condições que facilitam a erradicação e os fatores que levam alguns meninos a assaltar e a matar.  

Respostas ainda atuais a essas perguntas foram dadas, em 1963, pelo jornalista Odylo Costa, filho, e pelo poeta Manuel Bandeira, quando de um episódio igualmente chocante envolvendo dois meninos do Rio. O jornalista era pai do menino assassinado, Odylo Costa, neto, de 18 anos; e o poeta era amigo da família. O pai queria entender porque um menino de 15 anos fora levado a matar o seu filho quando esse procurava defender a namorada durante um assalto. O poeta, por seu turno, queria entender porque um jovem cheio de vida e de amor à vida sacrificou-se em defesa da honra e da dignidade de uma pessoa que amava.  

Com sua resposta, o jornalista procurou ajudar o País a alterar uma situação legal e uma estrutura administrativa claramente criminogênicas - as do famigerado SAM, Serviço de Assistência a Menores, no Rio de Janeiro, que Odylo descrevia como "uma situação de inferno sobre a terra, em chão brasileiro". Movido pela paixão lúcida, ele conseguiu provocar, ainda no Governo João Goulart, a vontade política que iria gerar a morte legal do SAM, substituído em 1964 pela Funabem, o que infelizmente se revelaria pouco mais que simples mudança de sigla.  

Com isso, Odylo Costa, filho, registra no livro Meus Meninos, os Outros Meninos algumas afirmações que devem ser lembradas e estão profundamente atualizadas.  

"O que desonra uma nação não é que um moço de 18 anos já seja assassinado defendendo sua dignidade humana, seu bem humano, a vida que lhe estava próxima, a menina de quem estava enamorado... O que desonra a Nação é que ele morreu nas mãos de um menino que aos onze anos praticou o primeiro furto e aos quinze se tinge com o sangue da primeira morte. E, entre os onze e os quinze, vinte vezes entrou e saiu do SAM, e conheceu todas as Delegacias e viu a cara de todos os policiais. Para acabar com esta vergonha é preciso que a Nação inteira se levante e se una em defesa da sua própria sobrevivência, que é a sobrevivência da sua mocidade."  

Odylo apontava ainda o papel da miséria material e da miséria espiritual, mostrando onde se situava "a culpa dos pais":  

"Dos pais que não podem ou não sabem olhar pelos seus filhos. Dos pais que só podem ou só sabem olhar pelos seus filhos - e esquecem os alheios, centenas e centenas de milhares desamparados que podem ser salvos, delinqüentes que podem ser recuperados ou, quando irrecuperáveis, devem ser impedidos de fazer mal ao próximo e a si mesmos."  

Isso é traduzido da revista O Cruzeiro , de 6 de abril de 1.966.  

Já Manoel Bandeira, numa forte síntese de emoção e lucidez, improvisou um soneto admirável, que começa e termina com o verso-resposta: "Por ser quem era e filho de quem era"...  

Vira o poeta que o jovem dera a vida desse modo porque recebera de seus pais exemplos, ideais, valores humanos, amor humano e amor à vida. Ele resumia poeticamente o que Odylo dizia sobre "o outro menino", que matara porque não recebeu - nem dos pais nem de ninguém -, em dosagem e qualidade adequadas, aquilo pelo qual alguns meninos são capazes até de dar a vida.  

Voltando ao crime da Praça Cruz Vermelha: informa-se ser o assassino um garoto de 16 anos, conhecido na vizinhança por uma vida desregrada e ociosa, cheia de violência e atos ilegais.  

"Por ser quem era e filho de quem era"... Quem era esse menino, então? De quem era filho? Sabemos hoje que os pais conseguem cada vez menos educar efetivamente os filhos, devido aos fatores deseducativos de todo tipo - televisivos, cinematográficos, conviviais, sociais.  

A causa, portanto, não está apenas no menino e nos seus pais biológicos: ela inclui muitos dos pais que "só sabem olhar pelos seus filhos e esquecem os alheios", como dizia Odylo. Pela descrição que se dá ao menino apontado como assassino ("perverso e temido no bairro"), esse crime podia ter sido evitado se a lei estivesse sendo cumprida integralmente no Rio de Janeiro", e no seu País.  

Então, Sr. Presidente, penso que muito pouco há que se propor quando se fala da Declaração Universal dos Direitos da Criança, pois a Constituição brasileira determina o cumprimento, em um dos mais belos capítulos da sua redação, o art. 227, do dever da família, da sociedade e do Estado sobre a criança brasileira.  

Não há o que propor. Acredito que apenas com o respeito às leis construiríamos um país que é do sonho de todos. A única coisa que eu faria de adendo é que, nos dias de hoje, além da obediência às leis, deveríamos acelerar muito - e podemos fazê-lo - o processo de recuperação e integração de crianças pobres deste País, atendendo a um projeto de lei do Senador Eduardo Suplicy, que é o Programa de Renda Mínima e o Programa de Bolsa Escola.  

Era o que eu tinha a dizer.  

Muito obrigado.  

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DOCUMENTOS A QUE SE REFERE O SR. SENADOR TIÃO VIANA EM SEU PRONUNCIAMENTO.  

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/11/1999 - Página 31436