Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO QUADRAGESIMO ANIVERSARIO DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA.

Autor
Emília Fernandes (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RS)
Nome completo: Emília Therezinha Xavier Fernandes
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.:
  • COMEMORAÇÃO DO QUADRAGESIMO ANIVERSARIO DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA.
Publicação
Publicação no DSF de 24/11/1999 - Página 31455
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO, DECLARAÇÃO, DIREITOS, CRIANÇA, DETERMINAÇÃO, EMPENHO, PAES, ENTIDADE, ESTADO.
  • ANALISE, EVOLUÇÃO, BRASIL, PROTEÇÃO, MENOR, REGISTRO, ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, CENTRO INTEGRADO DE APOIO A CRIANÇA (CIAC), ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), PROGRAMA, AUXILIO FINANCEIRO, BOLSA DE ESTUDO, FAMILIA, MANUTENÇÃO, CRIANÇA, ESCOLA PUBLICA, AUMENTO, CAMPANHA, VACINAÇÃO, COMBATE, FOME, EXPLORAÇÃO SEXUAL, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, ATUAÇÃO, COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), CONGRESSO NACIONAL.
  • COMENTARIO, DESCUMPRIMENTO, DIREITOS, CRIANÇA, BRASIL.

A SRª EMILIA FERNANDES (Bloco/PDT - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a sessão de hoje é dedicada ao aniversário dos 40 anos da Declaração Universal dos Direitos da Criança, proclamada pela Organização das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1959. Em dez artigos, o texto traduz a necessidade de se dotar as crianças do mundo inteiro de proteção e cuidados especiais, incluindo os aspectos legais, em decorrência da sua condição peculiar como pessoa em desenvolvimento.  

Em seu espírito original, a Declaração apela para que pais, organizações sociais e governos, em todas as instâncias, não apenas reconheçam os direitos afirmados, mas que se empenhem pela sua observância e implementação.  

Desde então, a situação das crianças, sem dúvida, ganhou mais visibilidade, mobilizou pessoas, autoridades e, de forma especial, organizações não-governamentais comprometidas com a sua defesa.  

A adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança, 30 anos após, em 1989, veio para ampliar o alcance da Declaração original, especialmente exigindo maior responsabilização do Estado e sem dúvida está englobado neste grande movimento que se realiza pelo mundo afora.  

No Brasil, a Convenção ganhou a forma do Estatuto da Criança e do Adolescente, afirmando o compromisso do nosso País com a proteção integral aos brasileiros com até 12 anos, no caso das crianças, e com até 18 anos, no caso dos adolescentes.  

Nesse período, além dos aspectos legais, a sociedade brasileira, sem dúvida, vem amadurecendo no sentido de uma melhor compreensão da realidade infanto-juvenil e na necessidade urgente de soluções para o verdadeiro drama que atinge milhões de crianças e jovens. Várias iniciativas têm sido desenvolvidas. O Governo trabalhista, por exemplo, de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, com a criação dos CIEPs – escolas de horário integral – visavam proporcionar condições objetivas para educar com cidadania, ao mesmo tempo em que contribuía para retirar as crianças das ruas. Mais recentemente, os Programas de Bolsa-Escola, como este implementado aqui em Brasília - hoje, inclusive, ameaçado! -, apontam outro caminho para afastar as crianças do trabalho e colocá-las em uma sala de aula.  

As campanhas oficiais de vacinação, como as que passaram a ocorrer no Brasil, especialmente nos últimos anos, reduziram em grande parte a incidência das doenças mortais nas crianças. A desnutrição também diminuiu em determinadas regiões do Planeta, em grande parte devido às campanhas de solidariedade patrocinadas pelas organizações não-governamentais. Outras campanhas, também voltadas para a educação, para o combate ao trabalho infantil e contra a exploração sexual de crianças e jovens, da mesma forma, têm sensibilizado grandes e importantes segmentos da sociedade.  

O Congresso Nacional também tem feito a sua parte e dado a sua contribuição a essa luta, instalando comissões parlamentares de inquérito, como uma recentemente instalada no Congresso, que ainda avança nos seus trabalhos, que apurou denúncias e apresentou propostas sobre a questão do trabalho de crianças e adolescentes no Brasil. O Congresso Nacional tem também feito muitas audiências públicas, debates, aprovado projetos de lei que combatem a exploração, definem responsabilidades e comprometem os governos no que se refere à questão da criança e do adolescente.  

No entanto, Srs. Parlamentares, os avanços obtidos diante da realidade que ainda atinge as crianças e os jovens do Brasil e do mundo são insuficientes para transformar a Declaração Universal dos Direitos da Criança em documento a ser comemorado. E, mais grave, tal situação é decorrente de políticas adotadas pós-Declaração, que vêm empurrando as economias dos países pobres ou em desenvolvimento para a falência generalizada, resultando em desemprego, concentração de renda e, conseqüentemente , aumento da pobreza e da exclusão. Hoje, a prioridade para as economias centrais, apesar dos discursos contrários, tem sido a propriedade, o mercado, o lucro, e não as pessoas, as crianças em todas as suas necessidades.  

Atualmente, existem no mundo 130 milhões de crianças que não têm acesso à escola básica, 250 milhões que trabalham e 40 milhões que sofrem algum tipo de abuso, abandono ou negligência. Na última década, 2 milhões de crianças morreram, e outras 6 milhões foram mutiladas em guerras promovidas com claros objetivos econômicos e de disputa de mercados. A cada dia, 30 mil crianças morrem por desnutrição ou por doenças, especialmente nas regiões mais pobres do mundo, entre elas a América Latina e o Brasil.  

Entre nós, a CPI do Trabalho Infantil não deixou a menor dúvida de que a presença de crianças no trabalho, quando deveriam estar na escola ou brincando, é conseqüência direta da pobreza, da exclusão da população que, em grande parte, ainda vive em condições de indigência, acentuada pela desestruturação familiar e pelo desemprego crescente. Isso faz com que, segundo o IBGE, mais de 2,5 milhões de brasileiros, com idade entre 10 e 14 anos, e cerca de 5 milhões, entre 15 e 17 anos, tenham de trabalhar no nosso País. Tais dados são diretamente proporcionais aos cada vez mais altos percentuais das taxas de desemprego, que chegam hoje a cerca de 20% da população economicamente ativa. Ou seja: os pais, as mães, os familiares de muitas crianças e jovens estão desempregados, jogados à exclusão. Portanto, as crianças também, conseqüentemente, sofrem as agruras desse tratamento injusto a que milhões de pessoas são condenadas.  

Por outro lado, as crianças e jovens são bombardeados cotidianamente pela violência disseminada pelos meios de comunicação, pelo espírito de disputa a qualquer preço e pela fragmentação dos valores morais e sociais. As crianças, a cada dia, perdem a liberdade e a segurança das ruas, o espaço para as brincadeiras sadias e o acesso aos valores coletivos e sociais.  

Os fatos, sem dúvida, contrariam os direitos. Ou se exerce ou se nega. Não há meio termo na construção da vida, da cidadania, da liberdade e da solidariedade. Na era da globalização, as crianças crescem em uma sociedade em que a banalização da violência, do crime, da agressão, da opressão, parecem fazer parte do cotidiano. Crianças crescem sem identidade, sem raízes, despojadas de valores e conceitos, sendo tratadas como adultos em miniatura.  

"A sociedade as espreme, vigia, castiga, explora, prostitui: quase nunca as escuta, jamais as compreende. De cada duas crianças pobre, uma sobra. O mercado não precisa dela. Não é rentável" - definiu bem o escritor e jornalista Eduardo Galeano, em um artigo publicado.  

Diz mais o mesmo escritor:  

"As crianças pobres são as que mais ferozmente sofrem com a contradição de uma cultura que as impele a consumir e, na realidade, que as impede. A fome as força roubar, ou prostituir-se. A sociedade de consumo as insulta oferecendo-lhes o que a elas nega".  

Sr. Presidente, Srs. Senadores, a concretização da Declaração Universal dos Direitos da Criança, além da boa vontade dos homens e mulheres de bem do Brasil e do mundo, depende, principalmente, de profundas mudanças nas relações econômicas entre os países. Criança com "desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade, como define a Declaração em seu art. 2º, é resultado de progresso econômico, de empregos, de estabilidade social e familiar e de fortalecimento da cidadania. Além disso, é fundamental o aprofundamento legal e institucional com os compromissos definidos pela Declaração, que tem mobilizado importante parcela da sociedade brasileira, a exemplo da III Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que ocorre em Brasília até o dia 26 deste mês.  

Portanto, hoje, por iniciativa do Senador Tião Viana e de vários outros Srs. Senadores, utilizamos a Hora do Expediente para fazer uma reflexão a respeito do que a Declaração dos Direitos da Criança e do Adolescente pregou há 40 anos e o que é feito no nosso País. Isso é muito salutar. Sem dúvida, precisamos aproveitar essas oportunidades para fazer uma reflexão.  

Antes de concluir, gostaria de resgatar o que o jornal Zero Hora, do nosso Estado, trouxe ao abordar esse tema, que intitulou: Direitos de Papel. Relaciona cada um dos direitos:  

Em relação ao art. 1° - direito à igualdade, sem distinção de raça, religião ou nacionalidade - ouve uma menina de 11 anos, estudante, negra, que diz que as colegas brancas não gostavam de brincar com ela.  

Quanto ao art. 2° - direito a especial proteção para o seu desenvolvimento físico mental e social -, ele ouviu um menino de 6 anos, que lava vidros de carros, numa esquina de Porto Alegre. E ele afirmava: "venho aqui para ajudar minha mãe; senão não tem comida. (...) Se eu pudesse, ficava na vila, jogando bola, ou jogando baralho".  

No art. 3° - direito a um nome e a uma nacionalidade -, ele destacou uma menina, de 6 anos, morando numa vila, em Porto Alegre, que até hoje não tem uma certidão de nascimento. Seus pais não a registraram quando nasceu e não o fizeram depois por medo de pagar multa. Ela "ficou no seu canto, com suas coisas, que, como ela, têm mas não têm. Tinha uma boneca que não tem mais cabeça. Tem um vestido e não tem festa".  

Quanto ao art. 4° - direito à alimentação, moradia e assistência médica adequadas para a criança e a mãe -, o jornal conversou com a filha de um sem-terra, que mora em um acampamento num Município do Rio Grande do Sul. E ela diz: "estou no acampamento há um ano e nove meses. (...) Aqui no galpão durmo num colchão(...). Sinto falta dos brinquedos".  

No art. 5° - direito à educação e a cuidados especiais para criança física ou mentalmente deficiente - ouviu uma menina de 12 anos, internada na Febem, que tem deficiência física e mental leves. Ela disse que muita gente a observa com pena ou medo. Ela disse que não tem maldade, só é diferente e, como todo mundo, quer ser feliz.  

Mais adiante, a propósito do 6º artigo - direito ao amor e à compreensão por parte dos pais e da sociedade -, a reportagem ouviu uma menina de dez anos, que hoje vive escondida com a mãe - inclusive, seu nome não foi divulgado. "Abusada sexualmente desde os três anos pelo pai, J. teve um retardo no desenvolvimento" - ela foi vítima, assim como sua irmã mais velha, da violência. "A mãe, que levava coronhadas de revólver na cabeça, nunca denunciou o marido". Essa menina não vai à escola, porque a família tem medo que o pai a descubra.

 

Lembrando o 7º direito da Declaração - direito à educação gratuita e ao lazer infantil -, a reportagem ouviu um menino de sete anos, morador de uma cidade do interior: "Eroni Cordeiro Braga quase não fala, escondido a maior parte do tempo atrás do vestido da avó". Ele diz, quando ouve o barulho das crianças: "Queria ir lá para brincar, jogar bola e estudar também". E vejam: essa criança mora a 500 metros de um colégio, mas, como o resto dos irmãos, nunca entrou numa sala de aula.  

Para ilustrar o descumprimento do 8º direito - direito a ser socorrido em primeiro lugar em caso de catástrofes -, a reportagem ouviu uma menina de onze anos que ficou desabrigada na cidade de Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, durante a enchente que houve em 1997. "A enchente tomou conta da nossa casa e desabrigou nossa família. Durante três meses, fiquei em uma barraca, no meio da rua, com meus oito irmãos. Faltava comida e não podíamos brincar. (...) Quando as águas baixaram e encontramos nossa casa destruída, fiquei triste, mas não chorei para não preocupar a minha mãe."  

A propósito do artigo nº 9 da Declaração - direito a ser protegido contra o abandono e contra a exploração no trabalho -, a reportagem ouviu uma menina de 14 anos: "Completei a 5ª série em dezembro 1997. Obedeci a meu pai - ele disse para eu fazer como os outros irmãos, que haviam largado o colégio com a mesma idade para trabalhar na roça. (...) Gostaria de voltar a estudar, se pudesse. Eu era uma das melhores alunas. Sinto saudade das colegas, mas minha família é pobre e não tem condições de pagar meus estudos agora. (...)"  

Quanto ao direito expresso no artigo nº 10 da Declaração - crescer dentro de espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os povos -, a reportagem ouviu um índio, um menino de onze anos, que afirmou: "Os índios deviam ter mais terra para plantar. Agora têm um pouco. Deviam ter comida. (...) Às vezes, os outros são ruins. Eles riem de mim. (...) Fico triste, porque não nos tratam bem. Deviam ter mais respeito. (...)"  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, deixamos aqui a nossa mensagem, a nossa reflexão, a nossa crítica e a nossa esperança de que este País um dia se dê conta de que direito é coisa para ser respeitada. Os direitos postos, as declarações, os compromissos internacionais e as leis nacionais são exemplares. O que realmente precisamos é fazer com que esses direitos sejam exercidos. A sociedade é governada pelos adultos e se esses direitos são desrespeitados e essas situações ocorrem é porque nós, os adultos, ainda não conseguimos tirar da retórica e tornar realidade o maior investimento que um povo pode fazer, que é o investimento em suas crianças e em seus jovens.  

A entrada do novo século, que muitos apregoam como a possibilidade de vigência de valores mais elevados, deve assinalar um novo ponto de partida para a efetiva humanização da sociedade em todos os seus aspectos. O que, certamente, imbuído do melhor espírito de mudança, deveria começar pela imediata implementação de todas as medidas necessárias para dar às crianças do mundo o sagrado direito à vida, à alimentação, à educação, à saúde, à segurança e, especialmente, ao respeito com que devem ser tratadas. O presente e o futuro da sociedade, do Brasil e do mundo, estão na perspectiva, no horizonte, no rumo que os adultos de hoje projetam para os seus filhos, para as nossas crianças.  

Obrigada. 

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/11/1999 - Página 31455