Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO QUADRAGESIMO ANIVERSARIO DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • COMEMORAÇÃO DO QUADRAGESIMO ANIVERSARIO DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA.
Publicação
Publicação no DSF de 24/11/1999 - Página 31467
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • GRAVIDADE, SITUAÇÃO, CRIANÇA, BRASIL, MUNDO, VIOLENCIA, EXPLORAÇÃO SEXUAL, ABANDONO, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, FALTA, EDUCAÇÃO, PARTICIPAÇÃO, GUERRA, OMISSÃO, ESTADO, COMENTARIO, DADOS, SISTEMA INTEGRADO DE ADMINISTRAÇÃO FINANCEIRA (SIAFI), MINISTERIO DA JUSTIÇA (MJ), ORGANISMO INTERNACIONAL, ANISTIA, ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT).

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB – CE) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, seria bom se neste quadragésimo aniversário da Declaração dos Direitos da Criança, nós pudéssemos comemorar com muita alegria, e presentear as futuras gerações com um futuro de paz, de amor e de justiça, no século XXI.  

Lamentavelmente, não temos este presente para dar e não podemos gritar de felicidade como gostaríamos, porque de todos os lugares do mundo, as notícias que chegam não são boas, e asseguram que milhões de crianças estão sentindo muita dor no coração.  

Nos cinco continentes, tanto nos países mais desenvolvidos, que fazem questão de se apresentar como verdadeiros exemplos de democracia e civilização, quanto nos mais miseráveis, todos os dias, milhões de crianças são vítimas indefesas das maiores atrocidades, quase todas elas praticadas pelos adultos.  

Não importa se é nos Estados Unidos, na Bélgica, na Alemanha, no Japão, na China, na Colômbia, no Brasil, na África ou na Oceania, as crueldades cometidas contra as crianças são iguais. Assim, a violência contra a infância não tem cor, não tem raça, não tem religião, não tem ideologia, nem classe social.  

Por mais revoltante que seja, a violência contra a criança começa dentro da própria casa, onde pais, irmãos, tios e primos, quase sempre, são os primeiros autores das agressões e dos abusos sexuais que se repetem de maneira freqüente.  

Todavia, mesmo diante de tanta humilhação, as pessoas conscientes precisam continuar lutando pelo fim das injustiças, e por isso, não podem cruzar os braços, não podem deixar de acreditar que podemos construir uma sociedade mais solidária, menos individualista e menos violenta.  

Apesar das pequenas mudanças que aconteceram nesses últimos quarenta anos em defesa dos direitos das crianças, não resta dúvida de que os avanços foram compensadores nesse combate tão desigual. Para tanto, precisamos reconhecer que, em certas ocasiões de nossa evolução histórica, em alguns países, movimentos sociais importantes e incontroláveis, levantando sua voz com veemência para protestar contra massacres e contra crimes hediondos que colocaram em risco a dignidade humana, forçaram as instituições a agirem com firmeza contra o desrespeito aos direitos mais elementares que regem a vida social.  

Dessa maneira, ainda não faz muito tempo que os portões de Auchwitz, Bergen-Belsen, Dachau, Treblinka, do Gueto de Varsóvia e dos outros campos da morte, foram escancarados e mostraram as atrocidades do holocausto nazista, inclusive contra milhões de crianças indefesas. A humanidade indignada com as cenas chocantes dos campos de extermínio, foi às ruas, exigiu castigo exemplar para os culpados, e o tribunal de Nuremberg, curvando-se ao clamor dos povos, viu-se obrigado a condenar muitos carrascos ao cadafalso.  

A revolta se repete com mais furor em Roma, no final da Segunda Guerra, quando o povo enforca em plena via pública, o ditador Benito Mussolini e sua amante Clara Petacci. Mais recentemente, por ocasião da derrocada da União Soviética, a mesma sorte foi reservada ao sanguinário ditador da Romênia, Nicolau Ceaucescu e sua mulher, trucidados pelo povo enfurecido, depois de vinte e dois anos de tirania.  

Infelizmente, mesmo diante desses exemplos trágicos, como já dissemos antes, os massacres continuam acontecendo no mundo de hoje. A cada dia, milhares de crianças aparecem sem vida, estendidas no chão, sem identificação e sem certidão de nascimento. Quase sempre são enterradas como indigentes, ou simplesmente apodrecem nas vias públicas, abandonadas como ninguém.  

Esses crimes acontecem com mais freqüência nas ruas das grandes metrópoles; nos guetos; nas favelas; nos cortiços infectos; debaixo das marquises; nos viadutos; nas guerras; nas ações do narcotráfico; nos choques entre grupos rivais; nas chacinas praticadas por bandidos justiceiros; nos subterrâneos da prostituição infantil; nos corredores dos hospitais do Terceiro Mundo, onde o atendimento é dos mais deficientes; nas mãos dos que submetem crianças a trabalhos intensos; enfim, no mundo do vício; das doenças; da promiscuidade; e do abandono.  

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, recentemente, consultando algumas publicações para a preparação deste pronunciamento, tive a oportunidade de ler uma matéria do Jornal do Brasil sobre o envolvimento direto de crianças nas guerras que hoje se travam no mundo, e fiquei chocado com os dados apresentados. Segundo o Jornal, mais de trezentos mil menores estão hoje envolvidos diretamente nesses conflitos mundiais localizados, armados até os dentes, combatendo ao lado dos soldados adultos, e sendo designados para o cumprimento das missões mais perigosas.  

Segundo avaliações feitas pela Organização de Defesa dos Direitos Humanos da Anistia Internacional, a violência dos combates deixa marcas profundas nas crianças que conseguem sobreviver a eles. Entre elas, os distúrbios emocionais graves são os traumas mais comuns. Os combatentes mirins são levados ao estresse máximo, vêem a morte de perto, e presenciam a de muitos de seus companheiros.  

O relatório da Anistia Internacional, mostra, ainda, que a convocação de combatentes infantis deve-se, em grande parte, à fabricação de armas cada vez mais leves e que podem ser facilmente carregadas por crianças de até 10 anos de idade.  

Outra realidade chocante que consta do relatório, diz respeito ao processo de convocação das crianças para a guerra. Além da doutrinação que recebem e que as transforma em pequenos soldados assassinos, são obrigadas a se viciarem em drogas e álcool. Segundo a Anistia, crianças lutaram recentemente no Kosovo, lutam na Chechênia, e participam ativamente de combates em Angola, no Congo, no Sri Lanka, no Sudão, em Serra Leoa e em Uganda. Neste último país, a Anistia Internacional assegura que o exército rebelde, chamado de Resistência de Deus, tem mais de 8 mil crianças em suas fileiras, a maioria delas entre 13 e 16 anos. Enquanto os soldados meninos são obrigados a lutar de armas em punho contra as tropas governamentais, mais profissionais e mais bem treinadas, as combatentes meninas são usadas como escravas sexuais.  

Por outro lado, na guerra civil não declarada, travada hoje nas periferias das grandes metrópoles latino-americanas, morrem tantas crianças quanto nas guerras africanas, e a realidade dos combates é tão cruel quanto lá. Na guerra civil latino-americana, existe bala, existe droga, existe sexo, e existe, ainda, a omissão do Estado, seu desinteresse e sua fraqueza em conter o avanço da violência urbana.  

No Brasil, segundo dados do Sistema Informatizado de Acompanhamento de Gastos Federais (Siafi), divulgados recentemente pelo Jornal Folha de S. Paulo, até o dia 15 de outubro passado, o Governo havia gasto apenas 1,93% da verba do Orçamento deste ano destinada ao apoio e ao atendimento a menores infratores. Segundo a mesma fonte, apesar de ter gasto apenas esse percentual, vale ressaltar que, o total da verba destinada para esse fim, não ultrapassa a insignificante quantia de 18 milhões de reais.  

Enquanto isso, levantamento realizado pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos em dez Estados brasileiros, revela que pelo menos 2,5 adolescentes, entre 13 a 18 anos, foram assassinados por dia nos anos de 1997 e 1998, aparecendo São Paulo como o recordista em homicídios, com 428 casos nos dois anos estudados.  

Ainda com referência ao Estado de São Paulo, segundo o Ministério da Justiça, apesar de abrigar 21,7% da população brasileira, concentra 52,7% dos menores infratores do País que estão internados por delitos cometidos. Dos 7.518 menores condenados com privação de liberdade, 3.968 cumprem suas penas em São Paulo.  

Por sua vez, pesquisa nacional sobre a atuação dos Conselhos de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, encomendada pelo Ministério da Justiça, e realizada pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam), divulgada em meados deste ano, trouxe, também, resultados preocupantes sobre a situação de nossas crianças. O levantamento apontou o envolvimento com roubos e furtos, maus-tratos e opressão cometidos pela família, e estar fora da escola, como os principais problemas que afetam os menores. O estudo envolveu 604 Conselhos Municipais e 605 Conselhos Tutelares dos Direitos da Criança e do Adolescente, que são órgãos ligados às Prefeituras.  

De acordo com os resultados, na Região Norte do Brasil, o problema mais sério e citado com maior freqüência, foi a exploração sexual. Em todo o universo pesquisado, pela ordem, roubos e furtos; estar fora da escola; maus-tratos e opressão; ocuparam os três primeiros lugares. A conclusão chocante, tirada desse levantamento, é que, tanto o abuso físico quanto o verbal, são regras no seio das famílias. Diante dessa realidade tão deprimente, os pesquisadores recomendam uma urgente mudança nas políticas voltadas para a infância. Segundo eles, é preciso eleger a educação como item prioritário para uma melhor formação do caráter das crianças.  

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, apesar de nos apresentarmos mal nesta comemoração pelo quadragésimo aniversário da Declaração dos Direitos da Criança, não somos os únicos a carregar a tocha da vergonha e da injustiça, como apontam alguns exemplos fora de nossas fronteiras.  

No capítulo referente ao trabalho infantil, por exemplo, um país considerado desenvolvido, educado, civilizado e cumpridor das leis, mantém 40% de suas crianças em regime de trabalho. Trata-se da Inglaterra, que emprega ilegalmente dois milhões de crianças, grande parte delas em condições totalmente inseguras, e recebendo menos de R$ 2,50 por hora trabalhada. Assim, segundo dados do Partido Trabalhista daquele país, dos cerca de 5 milhões de crianças inglesas, entre 10 e 15 anos, dois milhões trabalham, mas 95% não têm permissão para assumir essa tarefa.  

Os estudos sobre trabalho e emprego na Grã-Bretanha, realizados por especialistas, mostram que 25% da força de trabalho infantil da Inglaterra, ou seja, 500 mil crianças, têm menos de 13 anos de idade. Como se não bastassem todas essas irregularidades e desrespeito aos mais elementares direitos infantis, a Inglaterra ainda lida com uma legislação completamente arcaica sobre o trabalho, que data das décadas de 20 e 30. Parece até que ela sonha com a volta aos tempos de ouro da Revolução Industrial, quando crianças e velhos eram brutalmente explorados e trabalhavam à exaustão nos altos fornos das enormes fábricas da época.

 

Em todo o mundo, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgados pelo movimento mundial chamado Marcha Global Contra o Trabalho Infantil, que congrega mais de 7 mil organizações sociais não lucrativas em 81 países, mais de 250 milhões de meninos e meninas, entre 5 e 14 anos, trabalham todos os dias. Desse total, 120 milhões trabalham em tempo integral, e 130 milhões em tempo parcial.  

Os números da exploração divulgados pela OIT, mostram ainda que, desse contingente de 250 milhões de trabalhadores infantis, 61%, estão na Ásia; 32%, na África; e 7%, na América Latina. Os acidentes de trabalho com crianças somam por ano 12 milhões de casos, e os fatais, 12 mil. Na América Latina, o Haiti ocupa o primeiro lugar na exploração do trabalho infantil, com 25,5% do total; em segundo lugar, vêm empatados, Brasil; Guatemala; e República Dominicana; com o mesmo percentual de 16,2%.  

No Brasil, cerca de 3,9 milhões de crianças entre 5 e 14 anos, ou seja, cerca de 5,3% da população economicamente ativa, que é de 74 milhões de pessoas, estão trabalhando. Nas atividades agrícolas, encontramos 2,2 milhões de crianças, e nas atividades não-agrícolas, 1,7 milhão.  

Os números da prostituição infantil também nos fazem tremer de vergonha. A indústria do sexo, da pornografia e da pedofilia, movimenta somas milionárias e representa uma estrada de mão dupla.  

É comum e humilhante observar nas praias e nas ruas nordestinas, a quantidade de meninas prostitutas, em plena luz do dia, sob os olhares preconceituosos dos passantes de classe média, e sob os olhares indiferentes das autoridades coniventes, oferecendo seus corpos aos turistas, sobretudo italianos, alemães e holandeses, por até 1 dólar.  

Do outro lado do mundo, turistas e pedófilos, atraídos pelo exotismo dos trópicos e pela propaganda imoral divulgada por inúmeras agências de turismo que agem sem nenhuma ética, chegam a pagar até US$ 1,5 mil por um pacote pornoturístico.  

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, como dissemos no início deste pronunciamento, temos motivos de sobra para não estarmos felizes nesta comemoração pela passagem dos quarenta anos da Declaração dos Direitos da Criança.  

É certo que construímos um grande País nesses quinhentos anos de história, mas a maioria do nosso povo vive na miséria, convive todos os dias com a fome, com a doença, com o abandono, com a exploração, com a violência, com a indiferença por parte do Estado, e com a impunidade que favorece sempre os mais fortes.  

Em síntese, esse breve diagnóstico que fizemos, não deixa de ser um grito de alerta porque parte de nossas instituições estão falidas. Da polícia à Justiça, passando por determinados espaços do Congresso e do Governo, os escândalos se sucedem, os casos de corrupção e banditismo se multiplicam, e o que é pior, envolvendo expoentes da vida social da Nação, muitos considerados até então, acima de qualquer suspeita.  

É bom dizer que as nossas crianças estão atentas a todos esses desvios de comportamento praticados por grande parte de nossas elites, e logo aprendem a odiar o próximo, a agir como os de cima da pirâmide social, a estabelecer diferenças econômicas, sociais e culturais como forma perigosa de preconceito, a achar que a corrupção é normal, que a sonegação é banal, que a impunidade é coisa certa porque têm "costas quentes", e que a violência é o melhor caminho para se chegar à glória.  

Em uma sociedade com essas características, a ética e a moral perdem completamente o seu verdadeiro sentido de justiça, de igualdade e de fraternidade. Em contrapartida, em seus lugares, instala-se a barbárie, a anarquia, a desordem, e o desrespeito aos mais elementares direitos dos cidadãos, sejam eles crianças ou adultos.  

Era o que tinha a dizer!  

Muito obrigado.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/11/1999 - Página 31467