Discurso no Senado Federal

TRANSCURSO, NO ULTIMO DIA 20, DO DIA NACIONAL DA CONSCIENCIA NEGRA.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • TRANSCURSO, NO ULTIMO DIA 20, DO DIA NACIONAL DA CONSCIENCIA NEGRA.
Publicação
Publicação no DSF de 25/11/1999 - Página 31635
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, DIA NACIONAL, CONSCIENTIZAÇÃO, NEGRO, NECESSIDADE, DEBATE, INTEGRAÇÃO, RAÇA, CIDADANIA, BRASIL, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
  • COMENTARIO, DADOS, PESQUISA, SITUAÇÃO, NEGRO, BRASIL, DISCRIMINAÇÃO, MERCADO DE TRABALHO, INFERIORIDADE, SALARIO, ESTABILIDADE, SUPERIORIDADE, DESEMPREGO, VITIMA, VIOLENCIA.
  • NECESSIDADE, DENUNCIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, POLITICA SOCIAL, IGUALDADE, OFERTA, OPORTUNIDADE, COMPENSAÇÃO, NEGRO, AMPLIAÇÃO, ATIVIDADE, EDUCAÇÃO, CULTURA AFRO-BRASILEIRA, PUNIÇÃO, DISCRIMINAÇÃO.
  • ELOGIO, GOVERNO, REGULARIZAÇÃO, TITULO DE PROPRIEDADE, TERRAS, DEMARCAÇÃO, QUILOMBOS.
  • APOIO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, JOSE SARNEY, SENADOR, CRIAÇÃO, COTA, COMPENSAÇÃO, NEGRO, ACESSO, EMPREGO, SERVIÇO PUBLICO, VAGA, ESCOLA PUBLICA, FINANCIAMENTO, ENSINO SUPERIOR.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no último dia 20 de novembro, comemorou-se em todo Brasil o Dia Nacional da Consciência Negra, durante o qual a sociedade brasileira foi convidada a, mais uma vez, debruçar-se sobre a espinhosa questão da integração mais justa do cidadão e da cidadã negra no País. Na realidade, não se pode pensar em consciência negra sem associar seu conteúdo à longa história de luta contra o racismo, de resistência à exclusão socio-econômica e de conquista paulatina do direito à participação política.  

Neste ano, vale a pena aproveitarmos o momento para explorarmos, com mais detalhamento, o resultado das pesquisas divulgadas recentemente sobre desemprego e violência na vida da população negra brasileira. De tão assustador, o quadro merece avaliação mais pormenorizada. Trata-se de dois indicadores básicos de condição de vida social, a partir dos quais se pode avaliar a influências dos valores e dos preconceitos na estruturação das relações econômicas e de poder.  

Como era de se supor, o panorama retratado na pesquisa está longe de sugerir um quadro promissor para os afro-brasileiros. Por isso, vamos repassar os olhos nos dados. Nos meados de 99, o Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) realizou pesquisa sobre nível salarial e qualidade de emprego dos negros brasileiros nas 5 principais regiões metropolitanas do País e no Distrito Federal. Nas áreas pesquisadas, a população negra correspondeu a 14,4 milhões de habitantes, o que representava 43,7% do total.  

Em termos amostrais, o universo pesquisado se legitima perfeitamente, já que, conforme os números do IBGE, a população negra no Brasil gira em torno de 45%. E, apesar de toda essa representatividade, Gazeta Mercantil não deixou de estampar na edição de 20 de outubro sua conclusão mais contundente: nada menos que: "50% dos desempregados no Brasil são negros"!  

Segundo os resultados apurados, tudo indica que ainda perdura significativo preconceito contra os negros no mercado de trabalho brasileiro. Para ser mais direto, os trabalhadores negros recebem salários menores do que os dos brancos, ocupam postos de trabalho precários, convivem mais de perto com o fenômeno do desemprego, têm menor estabilidade em suas vagas e, evidentemente, estão mais distantes dos cargos de chefia.  

Como é de domínio comum, a capital da Bahia, Salvador, é a mais africana das cidades brasileiras, na medida em que não somente abriga o maior acervo vivo das tradições e da cultura do continente negro, mas também absorve o maior contingente de descendentes de escravos brasileiros em seu território. Pois bem, a taxa de desemprego em Salvador já é alta em termos absolutos, mas, mesmo assim, como explicar que lá o Dieese detectasse o mais abrupto diferencial entre desempregados negros e não-negros? A taxa de desemprego entre os negros soteropolitanos é nada menos que 45% superior à dos brancos.  

Em termos comparativos, no Distrito Federal, o mesmo diferencial é estimado na faixa de 17%, enquanto que, em Porto Alegre, registra-se o nível de 35%, e, em Recife, 20%. Pior do que isso, é tomar conhecimento de que os rendimentos dos negros também são inferiores aos dos não-negros, independentemente da situação ou atributo pessoal considerado. Pela ordem, os homens brancos recebem os maiores salários do País, seguidos pelas mulheres igualmente brancas. Na seqüência, surgem os homens negros acompanhados de perto das mulheres negras.  

Para se ter uma idéia mais concreta do descalabro, o rendimento médio mensal dos negros, incluindo homens e mulheres, em São Paulo, corresponde a 512 reais, ao passo que, entre brancos paulistas, o rendimento médio chega a 1.005 reais. Diante desse fosso salarial, como negar a existência de uma segregação silenciosamente arquitetada no mercado de trabalho contra os afro-brasileiros?  

Por fim, a participação da população negra em funções não qualificadas supera em muito à dos brancos. Nesse contexto, de 24% a 30% dos negros que integram o mercado ocupam tais funções, em contraste com os brancos cuja média oscila entre 10% e 17%. Por conseqüência, em postos de direção e planejamento, apenas 8,7% da população economicamente ativa negra detém estas posições, enquanto que entre brancos a proporção é de 18%. Sem dúvida, é um vexaminoso escândalo!  

Isso não é só. Do ponto de vista da violência, o preconceito cordial de nossa cultura não foge às constatações mais escabrosas. De maneira auspiciosamente inédita, a Ouvidoria da Polícia de São Paulo encomendou pesquisa sobre o perfil das vítimas dos abusos cometidos pelos policiais civis e militares durante os três primeiros trimestres de 1999.  

Segundo o relatório referente ao trimestre julho-setembro, das 202 pessoas que foram assassinadas de julho a setembro de 99, pelo menos 125 eram negras! Ou seja, os negros representam 62% do total das vítimas. Comparativamente, o referente trimestre se destaca como um dos mais violentos para a comunidade negra, pois nos trimestres anteriores as cifras correspondiam a 45% e 55%, respectivamente. Isso, no mínimo, representa uma escalada assombrosa nessa pérfida prática de assassinar negros por parte da polícia paulista, seja em serviço, seja de folga.  

De qualquer maneira, o que mais nos inquieta é saber que a discriminação racial interfere diretamente na definição, por parte do policial, de quem é o criminoso. E, naturalmente, o peso nefasto de todo esse processo recai nas costas da população negra. Não por acaso, o emblema da marginalidade construído no imaginário nacional sobre o indivíduo negro acaba por ser reforçado diariamente pelas práticas truculentas do próprio Poder Público.  

Diante dessas duas pesquisas, não nos resta outra tarefa senão a de desmistificar, de uma vez por todas, o romântico postulado de que não há segregação racial no Brasil. Ela existe e deve ser diariamente denunciada por todos aqueles que prezam, minimamente, o respeito pelos direitos humanos, pela dignidade e pelos valores de justiça e igualdade. Por mais que se identifiquem distintos processos históricos de discriminação racial entre Estados Unidos, África do Sul e Brasil, há uma convergência crucial nesse enredo ideológico, que pode ser resumida na seguinte expressão: a desumanização violenta do indivíduo negro nas sociedades modernas.  

Se nos Estados Unidos a segregação ocorre com uma visibilidade assumidamente ostensiva, no Brasil o preconceito se serve de mil disfarces para irromper dramaticamente em ocasiões de conflito e disputa social. Em nome de uma ideologia histórica que teima em difundir como verdade uma conexão imanente entre cultura brasileira e confraternização inter-racial, cometem-se transgressões e crimes os mais atrozes. É hora, sim, de assumir de vez a existência de um racismo silencioso, que se acoberta por detrás dos ruídos de uma cordialidade pretensamente cultural.  

Sr. Presidente, seguindo de perto as palavras do Secretário-executivo do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização Negra da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, Carlos Moura, o combate frontal contra o racismo exige, no Brasil, políticas sociais concretas. Entre as mais prementes, cumpre destacar o oferecimento de igualdade de oportunidades, a adoção de medidas compensatórias, a prática de atividades educacionais e culturais voltadas para o multiculturalismo e a pluritecnicidade e, por fim, a aplicação rigorosa de leis penais e civis.  

Para tanto, o próprio projeto Avança Brasil, de iniciativa do Governo do Presidente Fernando Henrique, incorpora entre outras metas a implantação de políticas propostas pelo Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, sob o amparo do Programa Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça. Nessa linha, aproveito a ocasião para congratular o Governo pela recente medida adotada no que concerne ao cumprimento do Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal.  

Trata-se da delegação de prerrogativas ao Ministério da Cultura, via Fundação Palmares, conferindo título de propriedade de terra aos afro-brasileiros que habitam as dezenas de quilombos espalhados pelo País. Caberá à Fundação Palmares tomar os procedimentos administrativos para a identificação e reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos, bem como definir a delimitação, a demarcação e a titulação das respectivas áreas.  

Numa outra direção – mas sob o mesmo espírito –, já tramita no Senado Federal projeto de lei do Senador Jose Sarney, propondo a instituição de cotas reservadas a negros no acesso aos cargos e empregos públicos, à educação e aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior. Trata-se, naturalmente, de uma versão abrasileirada daquilo que, nos Estados Unidos, ficou conhecido como "ação afirmativa". Embora suscite algumas controvérsias, não há dúvida de que a iniciativa representa um passo necessário à retratação da Nação frente às violentas mazelas historicamente inscritas na vida do negro brasileiro.  

A bem da verdade, alguns Estados da Federação se adiantam no tempo e já materializam tais políticas compensatórias em seus limites jurisdicionais. Esse é o caso do Rio Grande do Sul, que abriga uma população negra de número significativo, mas de visibilidade expressiva absurdamente tímida. Aqui no Distrito Federal mesmo, segundo informações do Correio Braziliense , alguns professores do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB) lançaram campanha propondo sistema de cotas para minorias raciais na universidade. A proposta do sistema de cotas na UnB faz muito sentido na medida em que, nos últimos anos, uma seqüência de "manifestações silenciosas de racismo" tem violentamente invadido os espaços da política do saber e do conhecimento.  

Para concluir – Senhor Presidente –, parece-me muito transparente a necessidade imediata de deslocar a imagem do homem e da cultura negra para espaços hegemônicos de visibilidade, para além dos nichos que lhes são tradicionalmente reservados, como o do desemprego, o das delegacias policiais, o da miséria e o da ignorância. Se o compromisso do Brasil com a justiça social e racial não se resume a mero jogo de palavras, então não há como vencer o racismo e a discriminação contra o afro-brasileiro, senão pelo reconhecimento de uma realidade nacional que sordidamente reproduz sua condição subalterna, bem como pela tomada de ações e políticas sociais que revertam urgentemente tal condição.

 

Em suma, para se ter e cultivar uma consciência negra no Brasil, não é preciso ser negro na aparência, mas é necessário ter dignidade e história de luta pela igualdade, do que indiscutivelmente os afro-brasileiros puderam e podem, até hoje, se orgulhar.  

Era o que tinha a dizer.  

Muito obrigado.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/11/1999 - Página 31635