Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM A VIDA E OBRA DO ARQUITETO OSCAR NIEMEYER.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM A VIDA E OBRA DO ARQUITETO OSCAR NIEMEYER.
Publicação
Publicação no DSF de 11/12/1999 - Página 34627
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, OSCAR NIEMEYER, ARQUITETO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), ELOGIO, TRABALHO, OBRA ARTISTICA.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em uma de minhas últimas viagens ao Rio de Janeiro, aproveitei um dia livre para rever Niterói. Queria saber se eram visíveis os sinais da boa fase que a cidade atravessava, com indicadores favoráveis nas áreas educacional, de saúde e de segurança, e, também, conhecer o Museu de Arte Contemporânea, que tanto me impressionara por fotografia.  

Encontrei, de fato, uma cidade bem diferente da minha antiga lembrança. Limpa, bem sinalizada, com indícios de uma ativa vida cultural. O que mais me impressionou, contudo, foi a visão do Museu de Arte Contemporânea. Como não conhecíamos o caminho, vínhamos costeando a praia, seguindo as indicações das placas. Subitamente, após uma curva, avistamos aquela nave branca que parecia pousada sobre o mar. Acostumados que estamos a Brasília, cuja geometria limpa não oferece contrastes para as obras de Oscar Niemeyer, esquecemo-nos, às vezes, de tão habituado que está nosso olhar, o quanto essa obra tem de insólito e surpreendente e, ao mesmo tempo, de simplicidade e leveza.  

Ali, entretanto, com a vista da cidade do Rio de Janeiro ao fundo, com o mar, com as pedras, com a vegetação litorânea, vê-se como Niemeyer segue à risca o dogma que "roubou" do poeta francês Charles Baudelaire: "O inesperado, a irregularidade e a surpresa são parte essencial e característica da beleza".  

Vê-se, também, como foi fiel aos seus próprios princípios estéticos. A busca da curva bela e harmoniosa, herança de nossa formação barroca, ibérica ou mesmo de inspiração em nossa paisagem, foram sempre uma predominante no seu traço, no seu pensamento, nas suas propostas. Ou, como ele próprio se expressou: "Não é o ângulo reto que me atrai. Nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. (...) De curvas é feito todo o universo. O universo curvo de Einstein."  

O Museu de Arte Contemporânea de Niterói, nave do futuro ou oca ancestral, é mais uma criação fiel às concepções que já se anunciavam nas primeiras obras de Niemeyer, como o conjunto arquitetônico da Pampulha, da década de quarenta. O que não significa repetição ou monotomia, mas identidade e estilo.  

Pode-se não gostar dos monumentos e dos prédios que Niemeyer construiu ao longo de sua profícua vida. Mas não se pode negar que nunca se viu nada parecido. Esse é o ponto de partida da arquitetura, a verdadeira. Ela não deve ser um exercício de imitação. Deve saber superar a si mesma, mostrar imaginação. E a imaginação, como gosta de lembrar o próprio Niemeyer, invocando o filósofo Martin Heidegger, é "inimiga da razão".  

Não faltam críticas à obra de Niemeyer, tanto ao estilo quanto à "funcionalidade" de suas obras, cobrança originária do funcionalismo internacional da Bauhaus, a escola que pretendeu reeducar a indústria, colocando-a a serviço da socialização do bom gosto. A esse respeito, o próprio Niemeyer considerou: "...quando uma forma cria beleza ela assume uma função das mais importantes na arquitetura". Se olharmos com atenção toda a arquitetura feita na história da humanidade, constataremos que isso é verdadeiro. Desde as pirâmides do Egito até a Catedral da Sagrada Família, de Gaudi, na Espanha. Das colunas gregas à Torre Eiffel, até a nova pirâmide do Museu do Louvre, com sua transparência geométrica. Afinal, não ocorre a ninguém sugerir, em nome da funcionalidade, que se aterre o Grande Canal de Veneza para transformá-lo em estacionamento...  

Em relação a Niemeyer, o fato incontestável é que, até hoje, não surgiu no País uma arquitetura tão original a ponto de o mundo voltar os olhos para ela. Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares, carioca nascido a 15 de dezembro de 1907, é verbete obrigatório em qualquer literatura que trate de arquitetura. De poucos brasileiros se pode dizer o mesmo em outras áreas. Santos Dumont, na Aviação; Pelé, no futebol; Antônio Carlos Jobim, na música popular, e, talvez, Ivo Pitanguy na cirurgia plástica. A uni-los a mesma capacidade de serem universais e brasileiros. A música de Tom Jobim agrada e é reconhecida de Tóquio a Nova Iorque. Sem deixar nunca de ser brasileira. Assim é a arquitetura de Niemeyer. Ela é internacional porque procede de um desenvolvimento uniforme, que se apóia nos progressos técnicos e nas imensas possibilidades abertas – universalmente – ou quase – aos arquitetos inovadores.  

Entretanto, essa arquitetura conserva raízes: os climas, as heranças culturais, as tradições e as condições da construção no Brasil. Tudo isso lhe confere uma fisionomia original. Isso provém, sem dúvida, do fato de que a arquitetura autêntica não pode ter o efeito de uma moda, ela é o oposto. Ela não sai de moda, a menos que esteja caricaturalmente de acordo com os modismos passageiros de certas facções que querem, a todo custo, ser percebidas e até reconhecidas.  

São essas facções as responsáveis pela difusão de uma imagem de Niemeyer como o "arquiteto do rei", que muitas vezes lhe foi imputada. A acusação é, em si mesma, uma bobagem. É como julgar Michelangelo como o "pintor da papa". Qual o arquiteto, cônscio de sua capacidade, que recusaria a oportunidade histórica de construir uma cidade? E qual o criador, zeloso de sua criatura, que não se importaria com acréscimos e deformações que se lhe quisessem impor? Como não lamentar a degradação arquitetônica de Brasília, fruto de seu crescimento desordenado?  

O dedo denunciante de Niemeyer aponta para os condomínios que invadiram a intimidade do Palácio da Alvorada, as obras atrás da Catedral e as que acompanham o Eixo Monumental que "começam a revelar um gabarito excessivo". Foi com "espanto" e "estupefação" – substantivos usados por ele próprio – que o arquiteto passeou pelas quadras comerciais. "Jamais tinha visto tanto anúncio, cobrindo as fachadas, uns sobre os outros. Até nas pontas das marquises os perduraram, sem indagarem se para isso elas foram calculadas". A W-3 virou "um amontoado de prédios pessimamente construídos, uns contra os outros, num desacerto inqualificável", descreveu o arquiteto em sua última visita, em maio deste ano.  

Quem poderá negar a realidade dessas observações?  

Sabe-se que Jack Lang, então ministro francês da Cultura, ao encontrar Niemeyer, indagou: "aquelas cadeiras de terraço de bistrô continuam na nave da catedral de Brasília?" Sabe-se, também, que ao término da obra da sede do Partido Comunista, em Paris, o Secretário-Geral, Jacques Duclos, perguntou a Niemeyer se poderia colocar em sua sala a velha escrivaninha que o seguia por todo lado.  

Lamentavelmente, por aqui, ainda não desenvolvemos o hábito de respeitar e preservar o patrimônio histórico, artístico e cultural que nos foi legado. Quanto a Niemeyer, a despeito do que dizem seus opositores, costuma mostrar-se bastante razoável e flexível, quando é consultado sobre modificações que o tempo tornou necessárias em sua obra. Assim foi com o projeto do lago construído em frente ao Congresso Nacional.  

Enfrentar oposição e resistência em sua própria casa parece ser um destino dos talentos brasileiros. Acredito que essa resistência tem origem em duas vertentes. Uma é composta por aqueles que, sempre, de antemão, desprezam o que é brasileiro. Trata-se, no fundo, de um sentimento de inferioridade, de depreciação de si mesmo: "se é brasileiro, não deve ser tão bom assim". A outra vertente, mais eclética, é formada pelos mais variados componentes, das mais diversas ideologias mas que têm, em comum, uma visão estética conservadora. Desconfiam de tudo que seja ou pareça moderno, ou que ainda não recebeu a consagração. Consideram "paranóia ou mistificação" qualquer coisa que se afaste dos cânones consagrados. É a "síndrome de Jeca-Tatu", que vitimou, até, seu genial criador, Monteiro Lobato, quando este se deparou com as criações dos modernistas, em 1917.  

Até no Congresso Nacional Niemeyer sofreu resistência. O arquiteto e pesquisador Eduardo Corona informa, por exemplo, a propósito da adaptação dos senadores e deputados federais ao novo prédio do Congresso, em Brasília:" "Todos, unanimemente, reclamavam do projeto. Sentiam saudade do plenário quadrado do Palácio Tiradentes, em torno do qual, em um corredor, distribuíam-se o café, o restaurante, a sala dos deputados, do presidente, os sanitários, tudo enfim – como em um verdadeiro bazar. Em Brasília, a arquitetura de Niemeyer impôs ao Congresso outra distribuição – limpa, como os ambientes bem distintos."  

Hoje, Srªs. e Srs. Senadores, passados 36 anos, todos temos consciência de desfrutarmos de um patrimônio da arquitetura mundial. Niemeyer, por sua vez, é consagrado, nos quatro cantos do mundo. Em 71 anos de trabalho ininterrupto, teve 507 projetos catalogados. Existem 230 publicações sobre sua obra, em turco, libanês, português, alemão, holandês, inglês, japonês, francês. Suas realizações, grandiosas ou pequenas, estão por toda parte: a Universidade de Constantine, na Argélia; a sede da Editora Mondadori, na Itália; a praça do Havre, na França. Além, é claro, das obras construídas no Brasil: o Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro; o Colégio Cataguases, em Minas; o pavilhão do Ibirapuera, em São Paulo; os CIEPs, o Memorial da América Latina. E tantos outros projetos que, por um motivo ou outro não chegaram a ser realizados. Por exemplo, a estupenda mesquita de Argel, no deserto do Negev e o inacreditável Museu de Caracas. São palácios, catedrais, clubes, hotéis, colégios, residências, museus, capelas, praças, torres, universidades... Todos os espaços da atividade humana.  

Na obra de Niemeyer cabem o quartel-general do Ministério do Exército, em Brasília, e o memorial dos operários mortos em Volta Redonda; o túmulo do guerrilheiro Carlos Marighela, em Salvador, e o Estádio Presidente Médici, no Recife; a sede da ONU, em Nova Iorque, e o Sambódromo, no Rio de Janeiro. É uma obra múltipla e variada como o próprio Niemeyer: arquiteto, escultor, criador de móveis e desenhista primoroso. Além das conhecidas habilidades nas áreas da arquitetura e das artes plásticas, Niemeyer tem talentos insuspeitados. Tocou cavaquinho, acompanhando Tom Jobim; jogava brilhar com Villa-Lobos; chegou a integrar o time do Fluminense, como atacante. Conviveu, no seu exílio parisiense, com Jean-Paul Sartre e André Mauraux, que considerava as colunas do Palácio da Alvorada "o elemento arquitetural mais importante surgido desde as colunas gregas". Para o historiador Eric Hobsbawn, é ‘impossível imaginar o Brasil do século XX sem Oscar Niemeyer "e pensar na arquitetura desse século sem ele".

 

Recente pesquisa promovida pela revista IstoÉ para eleger o "brasileiro do século", na área da arquitetura e das artes plásticas, consagrou Oscar Niemeyer com 82,66% dos votos, na frente de nomes como Cândido Portinari, Roberto Burle Marx, Di Cavalcanti, Lúcio Costa e outros. Não há como negar, Niemeyer já deixou suas marcas na paisagem deste século. De seu desenho caligráfico saíram varandas reclinadas ao sol e lajes côncavas que demonstraram a técnica e a poesia do concreto armado: "na areia da praia Oscar risca o projeto, salta o edifício da areia da praia", disse em versos Carlos Drummond de Andrade. Ferreira Gullar completou, num poema dedicado a Niemeyer: "nos ensina a viver/ no que ele transfigura/ no açúcar da pedra/ no sono do ovo / na argila da aurora/ na alvura do novo/ na pluma da neve/ Oscar nos ensina / que a beleza é leve."  

O saudoso Darcy Ribeiro comentou: "A gente imagina que, daqui a 300 anos, ainda vão falar de nós, mas é ilusão. Vão lembrar só do Oscar. Sempre haverá alguém estudando a obra dele". E completa, com seu estilo habitual: "E estarão todos paralisados de espanto!"  

O Brasil deve aproveitar a existência de Oscar Niemeyer, Senhoras e Senhores Senadores. Convém não perder tempo, porque Tom Jobim morreu, Pelé cansou-se de ser ministro e Niemeyer faz 92 anos. É para lembrá-lo que faço o registro do dia de seu nascimento, 15 de dezembro, estendendo a homenagem a todos os arquitetos brasileiros, que comemoram seu dia aos 11 de dezembro. Quem poderia melhor representá-los que Niemeyer, aquele que tão bem incorporou as possibilidades do talento brasileiro na arte de criar espaços para as atividades humanas?  

Nascido no país da palafita e do barraco, Niemeyer é obsecado pela idéia de que os homens são casas antigas que precisam ser reformadas. Talvez por isso legou ao mundo uma arquitetura concebida na forma de montanha, se a montanha se recorta em curvas contra o céu, como é o caso das montanhas do Rio de Janeiro, desenhadas por Deus naquele dia em que Deus brincou de ser Oscar Niemeyer.  

A vida e a obra desse brasileiro singular estão aí, testemunho incancelável, depoimento de um sistema de vida que se vai desumanizando e despersonalizando cada dia mais: desde quando, ainda criança, desenhava no ar, sob o olhar perplexo da mãe, passando por centenas de obras, realizadas, todas, com rara coerência e sensível intuição. Centenas de obras que fazem dele, Oscar Niemeyer, uma imagem indiscutível, uma bandeira, um patrimônio que deve ser motivo de orgulho do povo brasileiro.  

Muito obrigado pela atenção.  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/12/1999 - Página 34627