Discurso durante a 180ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

HOMENAGEM PELO CENTENARIO DO PINTOR PERNAMBUCANO VICENTE DO REGO MONTEIRO, NO PROXIMO DIA 19.

Autor
José Jorge (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: José Jorge de Vasconcelos Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM PELO CENTENARIO DO PINTOR PERNAMBUCANO VICENTE DO REGO MONTEIRO, NO PROXIMO DIA 19.
Publicação
Publicação no DSF de 15/12/1999 - Página 34901
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, VICENTE DO REGO MONTEIRO, PINTOR, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE).

O SR. JOSÉ JORGE (PFL - PE) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, o pintor pernambucano Vicente do Rego Monteiro completaria 100 anos no próximo dia 19 de dezembro, se vivo estivesse. Esta frase, de teor objetivo, com que inicio meu pronunciamento, requer algumas observações. Frisamos que o homenageado é pernambucano, certamente porque, para nós, seus conterrâneos, este fato é muito significativo. E pernambucano ele o é, não apenas por ter nascido no Recife, no tradicional bairro de Boa Vista, mas porque a pernambucanidade impregnou profundamente seu modo de ser, mantendo-se intacta e ativa, apesar dos longos períodos por ele vividos em Paris, já a partir de sua adolescência. Dizemos pernambucano, não porque a importância de sua arte se restrinja aos limites de nosso Estado ou de nossa região; muito ao contrário, sua pintura é, reconhecida e indiscutivelmente, uma das mais importantes e mais bem realizadas do Modernismo brasileiro, o que significa dizer, de toda a história da arte brasileira. Enfatizamos o pernambucano, justamente porque a dimensão cosmopolita, inegável em Vicente do Rego Monteiro, aliou-se indissoluvelmente a fatores da mais intrínseca brasilidade, com destaque para elementos plásticos da arte indígena, filtrados por uma personalidade e sensibilidade nuclearmente pernambucanas.  

Enfatizamos isso, conscientes de que cabe a nós, seus conterrâneos, uma parcela maior de responsabilidade em dar ao seu legado a consagração e o destaque devidos. Pois Vicente do Rego Monteiro foi, indiscutivelmente, injustiçado em vida, não tendo obtido o reconhecimento que lograram outros de seus pares na moderna pintura brasileira. Excetuados breves períodos de fartura, sua vida foi quase toda passada em condições das mais modestas – que ele enfrentava de modo tão discreto e sobranceiro, que parecia a coisa mais natural do mundo para um artista de cultura e sensibilidade tão sofisticadas. Poucos anos antes de sua morte, que ocorre em 1970, Rego Monteiro começa a ver reparado o esquecimento em que se encontrava sua obra plástica, entre as mais marcantes realizadas por um brasileiro.  

Mesmo agora, no entanto, constatamos que estamos longe de conceder ao grande artista o reconhecimento e a glória a que ele faz jus. Assim é que o Jornal do Commercio , no suplemento JC Cultural, de 06 de dezembro último, dá o título de "O Centenário Humilde de Rego Monteiro" à matéria de capa sobre o assunto. Duas exposições de obras suas foram inauguradas este mês no Recife: uma, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, mostra os 11 quadros do artista do acervo do próprio museu, juntamente com alguns outros de coleções particulares; uma segunda exposição, no Arquivo Público Estadual, documenta suas atividades como artista gráfico, escritor, tipógrafo e jornalista. Mesmo que extremamente meritórias, devemos reconhecer que ambas as exposições representam uma modesta comemoração, no seu centenário de nascimento, e em sua terra natal, de um dos maiores pintores brasileiros. Ressalve-se, ainda, que o Governo do Estado aprovou, por meio de seu Sistema de Incentivo à Cultura, a publicação de um livro com a sua obra poética completa, em edição bilíngüe em francês e português.  

Esse esforço em reavivar a memória relativa a Monteiro leva-nos a uma segunda observação quanto a nossa frase inicial: dissemos "o pintor pernambucano Vicente do Rego Monteiro", mas conscientes do amplo feixe de atividades a que ele se dedicou com entusiasmo e relevância. Além de ter iniciado sua carreira artística como escultor, o pintor Vicente do Rego Monteiro foi também poeta, editor, automobilista, tipógrafo, artista gráfico, professor, fabricante de aguardente e dançarino, em uma lista não exaustiva. Assim é que João Cabral de Melo Neto, que estrearia publicando poemas na revista Renovação, editada por Monteiro, dedica, em 1943, um poema ao seu amigo mais velho, dando conta da extrema polivalência e versatilidade deste. Vale a pena citar na íntegra o poema, que se intitula "Vicente do Rego Monteiro": "Eu vi teus bichos / Mansos e domésticos / Um motociclo, / Gato e cachorro. / Estudei contigo / Um planador / Volante máquina / Incerta e frágil. / Bebi do álcool / Que fabricaste / Servido às vezes / Numa leiteira. / Mas sobretudo / Senti o susto / De tuas surpresas. / E é por isso / Que quando a mim / Alguém pergunta / Tua profissão / Não digo nunca / Que és pintor / Ou professor / (Palavras pobres / Que nada dizem / Dessas surpresas) / Respondo sempre: / É inventor: / Sonha ao sol claro / De régua em punho, / Janela aberta / Sobre a manhã."  

Destaque-se, entre as inúmeras atividades paralelas à da pintura, uma à qual ele se dedicaria de modo intenso e até mesmo prioritário, nos anos que vão de 1940 a 1955. A sua poesia, mesmo que escrita majoritariamente em língua francesa, requer uma atenção e uma avaliação mais cuidadosa por parte dos brasileiros interessados no assunto, o que se fará mais viável com a publicação que acima anunciamos. No rol dos admiradores do poeta Vicente Monteiro, encontramos personalidades ilustres, como o poeta e editor Pierre Seghers, o escritor George Bernanos e o filósofo, cientista e teórico da literatura Gaston Bachelard, o qual, além de citá-lo em seu livro A Poética do Espaço , dirigiu-lhe as seguintes palavras em uma carta: "Os poetas me fazem sonhar nos vazios de meu quarto. Fazem-me viver ‘a velocidade das coisas imóveis’. Vocês nos oferecem a respiração na imensa possibilidade. (...) Todas as coisas crescem quando vocês as olham. O senhor não tem mais o direito de fechar os olhos. Precisa escrever poemas sem parar." Acrescente-se, ainda, que sua atividade como editor de poesia, tanto no Recife como em Paris, onde se tornou conhecidíssima sua editora e tipografia caseira La Presse à Bras , foi de imensa importância na vida cultural de ambas as cidades.  

Apesar da necessidade de ter uma visão de conjunto de todas as suas atividades artísticas e culturais, e de valorizar em particular sua obra poética, é sem dúvida por sua pintura que o nome de Vicente do Rego Monteiro há de ser cultivado e há de se impor ainda mais à memória nacional. Pena é não dispormos, desta tribuna, do recurso a um projetor de slides ou outro equipamento equivalente, pois as pinturas de Rego Monteiro falariam, sem dúvida, por si mesmas, bem mais e melhor do que quaisquer comentários.  

O jovem Vicente do Rego Monteiro, que vive em Paris entre 1911 e 1914, tomou contato com o agitado ambiente artístico daquela época e lugar, sendo marcado pelos vários movimentos vanguardistas nas artes plásticas, com especial destaque para o Cubismo. Retornando ao Brasil, ele sente o forte impacto da arte indígena, passando a estudá-la detidamente. O próprio artista vai enumerar suas principais influências do seguinte modo: "o Futurismo, o Cubismo, a estampa japonesa, a arte negra, a Escola de Paris, nosso Barroco, e sobretudo a arte do nosso ameríndio na Ilha de Marajó". Trava, também, contato com alguns dos artistas plásticos que farão o nosso Modernismo, como Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Brecheret. Uma exposição de seus desenhos e aquarelas, a maior parte dos quais inspirados em lendas amazônicas, percorre São Paulo, o Rio de Janeiro e o Recife. Quando é deflagrada a famosa Semana de Arte Moderna, em 1922, o pernambucano, já novamente instalado em Paris, terá participação destacada na mesma, por meio de dez de seus quadros, que estavam em mãos do poeta Ronald de Carvalho.  

A fase de retorno à França, nessa primeira metade dos anos 20, será decisiva para a formação de uma linguagem pictórica própria e inconfundível. Retirando dos cubistas a lição da organização geométrica, mas complementando-a com a geometrização também praticada por nossos índios marajoaras, Rego Monteiro vai plasmar o seu estilo pessoal, apoiando uma ousada deformação da realidade figurada em um senso muito particular de equilíbrio. De acordo com o crítico Walter Zanini, "essa pintura demonstra-se capaz de aprofundar um próprio e inconfundível ideário plástico, determinado por formas planas e circunscritas no espaço, pelo desenho táctil e rigoroso, de elegantes ritmos compassados, coadjuvado pela coloração moderada, luminosa, de poucas e menores variantes de meios-tons". Do ponto de vista temático, temos uma grande e surpreendente diversidade de abordagens, em que se alternam representações de temas religiosos e mitológicos, de indígenas e de operários, de esportistas e animais, de mulheres e de crianças, estes – tanto as mulheres como as crianças – freqüentemente acompanhados por animais. São desse período obras marcantes como "A Crucifixão", "A Adoração dos Reis Magos", "Os Calceteiros", "A Caçada", "A Mulher Sentada", "O Menino e os Bichos", "Os Boxeadores", "A Mulher e a Corça", as várias versões de "Tênis" e diversos outros, grande parte dos quais se encontra nos acervos de importantes museus da Europa e do Brasil.  

Encontrada essa feição marcadamente individual, o pintor Vicente do Rego Monteiro continuou pesquisando incessantemente novas formas, ainda que mantendo-se fiel a sua trajetória e concepção próprias. Muito embora sua natureza inquieta, e até mesmo dispersiva, levando-o às inúmeras atividades às quais já nos referimos, resultasse em certa descontinuidade e períodos de inatividade na pintura, ele não deixou de realizar novas rupturas em sua produção pictórica, trabalhando, por exemplo, tanto o abstracionismo como experiências de deformação da perspectiva de naturezas mortas. Não se devia esperar outra coisa do artista que afirmou que "a arte e a poesia, não possuindo fins utilitários, suas revoluções existem em estado permanente". Lamentavelmente, é provável que uma de suas maiores vocações plásticas não pôde ser realizada, por falta do indispensável apoio. Referimo-nos à pintura de murais, espaço em que sua arte, de forte teor escultórico e monumental, certamente funcionaria às maravilhas, como acreditava o próprio pintor.  

Não lhe tendo cabido em vida o reconhecimento amplo a que tinha direito, constatamos que a grande arte de Vicente do Rego Monteiro, profundamente impregnada do interesse e do amor pelos seres humanos, ao mesmo tempo que visceralmente comprometida com a liberdade de invenção, encontra-se ainda pouco valorizada em sua pátria. Mas, voltando à frase com que abria esse pronunciamento, e como que fechando um círculo, dizia eu que o pintor faria 100 anos, se vivo estivesse. Ainda que seja um "lugar comum", devemos afirmar desse criador incomum que ele se encontra bem vivo, sim, pois como ele próprio afirmou: "o que é autêntico volta; a moda é uma ilusão". Não temos dúvidas de que, pela grandeza que alcançou, sua obra continuará nos transmitindo suas profundas lições de liberdade e independência, e de celebração da capacidade humana de criar.

 

Muito obrigado.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/12/1999 - Página 34901