Discurso durante a 14ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

APRESENTAÇÃO, EM PLENARIO, DO PARECER DA COMISSÃO DE RELAÇÕES EXTERIORES E DEFESA NACIONAL, SOBRE O PROJETO DE LEI 292, DE 1999, APENSADO AO PROJETO DE LEI DO SENADO 386 DE 1999 E AO PROJETO DE LEI DO SENADO 386 DE 1999, QUE DISPÕEM SOBRE O USO DE ARMAS DE FOGO NO BRASIL.

Autor
Pedro Piva (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/SP)
Nome completo: Pedro Franco Piva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA. REGIMENTO INTERNO.:
  • APRESENTAÇÃO, EM PLENARIO, DO PARECER DA COMISSÃO DE RELAÇÕES EXTERIORES E DEFESA NACIONAL, SOBRE O PROJETO DE LEI 292, DE 1999, APENSADO AO PROJETO DE LEI DO SENADO 386 DE 1999 E AO PROJETO DE LEI DO SENADO 386 DE 1999, QUE DISPÕEM SOBRE O USO DE ARMAS DE FOGO NO BRASIL.
Publicação
Publicação no DSF de 28/01/2000 - Página 1249
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA. REGIMENTO INTERNO.
Indexação
  • APRESENTAÇÃO, PARECER, ORADOR, PROJETO DE LEI, PROIBIÇÃO, ARMA DE FOGO, BRASIL, SOLICITAÇÃO, MESA DIRETORA, REMESSA, COMISSÃO DE RELAÇÕES EXTERIORES E DEFESA NACIONAL.
  • EXPECTATIVA, AGILIZAÇÃO, COMISSÃO, SENADO, VOTAÇÃO, PROJETO DE LEI, OBJETIVO, REDUÇÃO, VIOLENCIA, PAIS.

            O SR. PEDRO PIVA (PSDB - SP. Pela ordem. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senhoras e Srs. Senadores, a exemplo do ilustre Senador Renan Calheiros, estou apresentando à Mesa e encaminhando também à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional o meu parecer sobre o polêmico projeto de armas que tramita nesta Casa.

            Destaco, neste momento, o grau de entendimento, embora com opiniões divergentes, que o Senador Renan Calheiros e eu tivemos durante esse período. Tenho certeza de que tanto o projeto do Senador quanto o meu serão analisados pelas respectivas Comissões e chegaremos a um bom termo, cujo objetivo é a diminuição da violência neste País.

            Reitero, neste momento, aos Presidentes das Comissões de Constituição, Justiça e Cidadania e de Relações Exteriores e Defesa Nacional a necessidade de colocar esse projeto em votação na próxima semana, como é desejo do Senador Renan Calheiros e meu, para que possamos votá-lo ainda no período desta convocação extraordinária.

            Muito obrigado, Sr. Presidente.

PARECER N° , DE 2000

Da COMISSÃO DE RELAÇÕES EXTERIORES E DEFESA NACIONAL, sobre os Projetos de Lei do Senado 292, 386 e 614 de 1999, que tratam do fabrico, depósito, trânsito, porte de arma de fogo e dão outras providências.

           RELATOR: Senador PEDRO PIVA

            I - RELATÓRIO

            Vem a esta Comissão, para exame, o Projeto de Lei do Senado nº 292, de 1999, de autoria do ilustre Senador Gerson Camata, que “Dispõe sobre o fabrico, depósito, trânsito e porte de arma de fogo e dá outras providências”. Anexados a esse Projeto estão o Projeto de Lei do Senado n° 386, de 1999, de autoria do nobre Senador Djalma Falcão, que “Acresce dispositivos à Lei n° 9.437, de 20 de fevereiro de 1997, a fim de estabelecer critérios para o porte de armas de fogo”, e o Projeto de Lei do Senado n° 614, de 1999, de autoria do ilustre Senador José Roberto Arruda, que “ Proíbe a venda de arma de fogo e munição em todo o território nacional e dá outras providências”.

           A primeira proposição pretende proibir o fabrico, o depósito, o porte, o uso e o trânsito de armas de fogo em todo o território nacional. Prevê que, em situação “especial, sempre a título precário”, poderá ser emitida, pelo Estado-Maior das Forças Armadas (atualmente Estado-Maior de Defesa), a permissão para o fabrico de armas de fogo, para exportação ou uso das Forças Armadas. Esse último órgão regulamentaria o trânsito e o porte das armas fabricadas mediante autorização. Criminaliza a posse, a guarda, o uso e o transporte de armas de fogo não autorizados e dá rito sumário ao julgamento desses delitos. Prevê, ainda, o prazo de noventa dias, para que “toda pessoa que tenha a posse ou a propriedade de arma de fogo”, recolha-a a delegacia mais próxima, onde receberia recibo e indenização em Letras do Tesouro.

           O primeiro Projeto anexado pretende retirar de todos os cidadãos o direito de guarda e porte de arma de fogo, inclusive àqueles a quem a lei, hoje, reconhece o direito de porte de arma, como inerente à função social que desempenham, como, por exemplo, membros do Ministério Público e juízes. Também, àqueles que usam arma como esporte, os atiradores, e aos que a usam em atividades de caça.

           Mantém o direito de uso, porte e guarda de arma de fogo, às Forças Armadas, polícias e, excepcionalmente, sob controle do Ministério do Exército, hoje, Comando do Exército, aos funcionários das empresas de transporte de valores.

           Dá o prazo de cento e oitenta dias para que o Ministério da Justiça e as secretarias de segurança dos estados e do Distrito Federal, recolham ao Ministério do Exército (Comando do Exército), para aproveitamento, todo o armamento que “pertença a qualquer pessoa ou entidade ou esteja sob sua posse ou guarda”.

           Prevê que a produção nacional de armas de fogo destina-se ao uso das Forças Armadas, das polícias e à exportação.

           Dispõe que, no caso de interesse da segurança nacional, “o Presidente da República poderá estatizar temporariamente fábricas de armas de fogo ...” e que o “Poder Executivo poderá criar incentivos para que as fábricas de armas de fogo sob o controle do Estado mudem de atividade, no prazo de um ano.”

           Determina que a União adquira os estoques e equipamentos industriais para aproveitamento “em outras atividades ou pelas Forças Armadas”.

           Transforma em hediondos os crimes previstos na Lei n° 9.437, de 1997.

           Finalmente, dá ao Poder Executivo prazo de noventa dias para formular um “plano detalhado de combate ao contrabando e ao descaminho de armas de fogo”.

           A última proposição, entre outras disposições, proíbe a venda de arma de fogo e munição em todo o território nacional, excetuando para Forças Armadas, para os órgãos de segurança pública e inteligência e para as empresas de segurança privada. Prevê o recolhimento, mediante indenização, de todas as armas e munições de propriedade particular no prazo de trezentos e sessenta dias. Altera aspectos penais da Lei n° 9.437, de 1997, aumentando as penas para posse, porte, fabrico e venda de armas de fogo e revoga todos os artigos dessa lei que colidem com as disposições da proposta.

           A essa última proposição, foi apresentada uma emenda, de autoria do nobre Senador Bernardo Cabral, no sentido de suprimir multa imposta às empresas de transporte aéreo, rodoviário, ferroviário, marítimo, fluvial e lacustre que “por qualquer meio, promova ou permita o transporte de arma de fogo ou munição sem a devida autorização ou com inobservância das normas de segurança”. Argumenta o Senador que a medida é injusta e inadequada, dada a impossibilidade dessas empresas realizarem a fiscalização que é de competência de órgãos públicos.

            II - ANÁLISE

            Em que pese a visível intenção central do eminente autor do Projeto de Lei do Senado nº 29, de 1999, de desarmar a sociedade, exposta em sua justificativa, a iniciativa parece incidir em profundos vícios de avaliação e conceito, além de ferir dispositivos constitucionais.

            A proposta sugere o desarmamento do cidadão comum, pacato, daquele que adquire sua arma após o necessário e legal registro e a guarda no interior de seu lar, para exercer seu inalienável direito de defesa contra um ataque injusto ou na esperança de defender-se. Mas não podemos nos olvidar da realidade que nos cerca. Os crescentes índices de criminalidade são um dos maiores flagelos nos grandes centros urbanos. A insegurança, o medo de sofrer assalto, de ser estuprado, ser morto, de ter seu lar invadido e sua família submetida a toda sorte de sevícias - tudo leva o cidadão a se isolar em sua casa, a se fechar em residências cada vez mais assemelhadas a fortalezas. Vive-se, nesse quadro, uma completa inversão de papéis. O cidadão honesto, trabalhador, cumpridor de seus deveres, torna-se prisioneiro da criminalidade, da qual procura defender-se atrás de grades que, a pretexto de o protegerem em seu lar, o separam da vida e da liberdade. Os criminosos, agem à solta nas ruas, sempre à espreita da próxima vítima. O Estado, por sua vez, tem se revelado incapaz de garantir a adequada segurança à sociedade. Acuado em sua própria residência, esse cidadão, para obter um mínimo de segurança para si e os seus, muitas vezes possui uma arma de fogo em casa. Lança, assim, mão do milenar direito de legítima defesa, principio reconhecido universalmente.

            É sobre este ponto que devemos refletir mais detidamente antes de tomar decisão fulcral para a segurança da sociedade. Pois, ao proibir esse cidadão de possuir uma arma em casa, estaríamos privando-o dos instrumentos para exercer esse direito de legítima defesa.

            Um dos principais argumentos utilizados pelos defensores do projeto é que, de cada dezesseis cidadãos que reagem, armados, contra bandidos, também armados, só um logra êxito. É evidente que essa estatística não merece crédito. Ela está distorcida, pelo simples fato de que aqueles que, porventura, lograram êxito, obviamente, em sua maioria (se não totalidade), não procuram delegacias para relatar o ocorrido. Também não constam das estatísticas aqueles que deixaram de ser atacados porque os criminosos os sabiam armados, ou não estavam totalmente seguros da condição indefesa da vítima.

            Mesmo que as estatísticas veiculadas pela imprensa fossem corretas, entendemos que a esperança de qualquer cidadão em ser aquele bem sucedido tem que ser respeitada. Devemos lembrar que existem cidadãos aptos, emocional e tecnicamente, para se defender. Vamos negar a eles o direito de fazê-lo, eficazmente, mesmo que sejam poucos? Sob que fundamento? Mormente quando o Estado está falido em sua estrutura voltada à segurança pública e não é capaz de garantir um mínimo de segurança à população? Será que nós, parlamentares, jornalistas, altos executivos ou integrantes de uma classe social que nos propicia uma melhor segurança, que, aliás, podemos comprar, não estaríamos insensibilizados quanto às necessidades básicas de segurança dos menos favorecidos?

            Até agora, estamos nos referindo ao direito de posse de armas de fogo no recesso do lar. Os argumentos apresentados em apoio a esse projeto são, e nisto concordo integralmente, válidos para o porte de armas de fogo. Entendo que ninguém, à exceção de agentes policiais e de segurança, poderá transitar por espaços públicos carregando armamentos. A lei deve prever rigorosas sanções a quem desrespeitar essa vedação.

            Tomemos, como exemplo, três países que, segundo a imprensa, se destacam por terem sociedades significativamente “desarmadas” e com baixos índices de criminalidade: Austrália, Canadá e Japão.

            Os três produzem armas, dois deles as exportam (Austrália e Canadá) e um deles é um dos maiores produtores e exportadores mundiais de armas (Canadá). A legislação dos três admite a obtenção do porte de arma. Ocorre que o fornecimento de autorização é feito em caráter excepcional no Japão e Canadá, mas é bem mais tolerante na Austrália. Em todos eles, a lei que regula o assunto tem rigor semelhante à nossa. No Canadá, 30,8 por cento das residências possuem armas legais. Na Austrália, 20,1 por cento. No Brasil, após a vigência da Lei nº 9.437, de 1997, estamos em torno de 5,2 por cento!

           É importante observarmos que, nos países citados, não foi o desarmamento da sociedade que levou à diminuição dos índices criminais. A principal causa foi o cuidadoso preparo profissional das polícias ostensivas e judiciárias desses países, conhecidas por sua eficiência e competência. Também concorre para esse quadro a eficácia da justiça nesses países. O êxito do desarmamento da sociedade, nesses Estados, não é causa do processo, mas conseqüência. A sociedade sentiu-se tranqüila para desarmar-se, porque confia e se sente segura com sua polícia e sua justiça. Essa não é, absolutamente, a situação existente em nossa sociedade.

            Sabemos que outros países, onde se realiza estudo estatístico sério visando orientar a sociedade sobre o assunto, têm constatado que um dos fatos principais a inibir o criminoso armado é a possibilidade de a vítima estar armada.

           É fácil inferir-se que iniciativas legislativas, entre nós, que visam ao desarmamento unilateral estão destinadas a frustrar rapidamente a esperança da sociedade em sua urgente necessidade de segurança. Nesse sentido, temos experiência recente. É muito significativo que, apesar de em vigor há mais de dois anos, a Lei n° 9.437, de 1997 - a qual, entre outras matérias, “estabelece condições para o registro e para o porte de arma de fogo” e define, com rigor, os crimes decorrentes da inobservância de suas disposições - não causou qualquer melhoria nos níveis de criminalidade.

           Se analisarmos suas disposições, as do Decreto n° 2.222, de 8 de maio de 1997, que a regulamenta, as do Decreto n° 2.998, de 23 de março de 1999, que institui a Fiscalização de Produtos Controlados, e as das portarias do então Ministério do Exército, hoje Comando do Exército, a quem cabe, constitucionalmente, o controle dessas atividades, verificaremos que nossas normas são bastante rigorosas. Elas prevêem um controle sobre a fabricação, a aquisição e o porte legais de arma de fogo, que seriam mais que o suficiente para evitar que esse tipo de arma se disseminasse pela população, ou chegasse às mãos de pessoas inclinadas ao seu uso criminoso. Do ponto de vista dos Direitos Humanos, a nossa legislação sobre arma de fogo é das mais avançadas e restritivas do mundo. Tanto é assim que o comércio de armas caiu entre nós em oitenta por cento após o advento da Lei n° 9.437 de 1997 (quase noventa por cento, se considerarmos armas adquiridas por pessoa física).

            Não podemos negar o fato de que os índices de crimes violentos, particularmente os perpetrados com arma de fogo, têm aumentado de forma alarmante nos últimos dois anos (entre dez e quinze por cento, dependendo do Estado), apesar de as vendas de armas, após o advento da Lei n° 9.437, de 1997, terem sido reduzidas em cerca de oitenta por cento! E, numa proporção semelhante à concessão de porte de arma!

           Para verificarmos o absurdo que é correlacionar a quantidade de portes autorizados com os índices de criminalidade, basta verificarmos que o Estado do Rio de Janeiro, um dos focos da criminalidade no País, só possui cento e dois portes de arma vigendo. O Rio Grande do Sul, com uma das menores taxas de assassinato por cem mil habitantes, tem mais de quarenta mil portes de arma distribuídos.

            Estou convencido de que propostas como essa, de total proibição de posse de armas de fogo e fechamento de fábricas, poderiam, ao contrário do que pretendem seus autores, certamente bem intencionados e convencidos de que elas seriam socialmente úteis, resultar em aumento da insegurança e da violência. Apresentar o desarmamento como uma panacéia para os males da insegurança constituiria, mais à frente, nova fonte de descrédito para o Estado e fonte de agravamento da própria violência - que, como se sabe, deita raízes na convicção de que o Poder Público não é capaz de assegurar a incolumidade da vida e da propriedade do cidadão e que nossa Justiça não funciona. Como o Estado não está organizado para prender e julgar as pessoas que portam armas ilegalmente, e nem toma qualquer atitude eficaz para organizar-se, ele engana a sociedade dando-lhe a esperança de uma vida segura com a proibição de venda de armas. Se não consegue impedir o porte ilegal, como conseguirá impedir a venda?

           Quando a iniciativa propõe que a produção nacional de armas de fogo destine-se, exclusivamente, ao uso das Forças Armadas, das polícias e à exportação, demonstra um total alheamento e desconhecimento da realidade. Com a colocação em vigor de uma lei, como a proposta, logo em seguida, com toda certeza, não teremos mais indústria para produzir armas e exportá-las!

           Cerca de setenta por cento do armamento que exportamos destina-se aos Estados Unidos da América. Sem esse mercado, nossa indústria é inviável. Desde o advento da Lei n° 9.437, de 1997, que diminuiu drasticamente nosso comércio interno de armas e, de quebra, promoveu a quase paralisação da importação de armamento, nosso País tem realizado grande esforço junto ao governo americano para sustar a aplicação, contra nós, do princípio da reciprocidade de comércio que eles utilizam em suas relações comerciais.

            Grandes fabricantes americanos (Colt e Smith Wesson, entre outros) têm reivindicado, junto ao Departamento de Comércio americano, a aplicação contra nós desse princípio, o que significaria a cessação de nossas exportações de armas para aquele país e, como conseqüência, o fechamento de nossa indústria de armas leves (Taurus, Rossi e Imbel, entre outras). Nossa única defesa, e a razão de continuarmos em atividade, é o fato de ainda mantermos lojas comerciais em funcionamento, o que, não obstante um fluxo baixíssimo de importação, continua caracterizando, em última instância, a possibilidade de comércio.

            O fechamento total do comércio interno de armas dará aos grandes fabricantes americanos os argumentos necessários para obterem a proibição de importação com origem no Brasil, e nada poderá evitar o encerramento de nossas atividades fabris.

            Isso só nos causaria danosos reflexos socioeconômicos e de defesa nacional, como: mais desemprego; dificuldades de reposição de peças e armas para as polícias e Forças Armadas; dificuldades para a mobilização nacional (ausência de indústrias aptas à fabricação de armas); e transferência de impostos, postos de trabalho e lucros para países e empresas estrangeiras (após 1997, vinte e sete mil postos de trabalho e uma geração anual de quarenta milhões de reais em impostos). E isso tudo sem qualquer vantagem para nós. Devemos ainda lembrar que o comércio legal seria fatalmente substituído pelo clandestino, que iria gerar salário e impostos no exterior! Que motivo justificaria adotarmos norma que conduz a uma relação custo-benefício tão desfavorável?

            A posse, a guarda, o uso e o transporte ilegal de arma de fogo já são proibidos e tipificados, criminalmente, pela Lei n° 9.437, de 1997, e com sanção maior que a sugerida na proposta. No caso da arma ser de uso proibido ou restrito, o potencial ofensivo do delito impõe pena mais rigorosa, quando, então, não caberia rito sumário, como propõe o autor.

            Quando sugere dar um prazo de cento e oitenta dias para que o Ministério da Justiça e as secretarias de segurança dos estados e do Distrito Federal recolham ao Ministério do Exército (Comando do Exército), para aproveitamento, todo o armamento que “pertença a qualquer pessoa ou entidade ou esteja sob sua posse ou guarda”, a proposta é duplamente inconstitucional. Em primeiro lugar, não atende às disposições constitucionais que vedam o confisco (incisos XXII e XXIV do art. 5° da Constituição Federal - CF). Em segundo lugar, atribui à União competência que ela não tem de, ferindo o princípio da federação, ordenar aos entes federados que confisquem (mesmo que, face à CF, fosse possível) armas em poder dos cidadãos.

            Quanto à sugestão de dar um prazo de noventa dias, para que “toda pessoa que tenha a posse ou a propriedade de arma de fogo” recolha-a a delegacia mais próxima, onde receberia recibo e indenização em Letras do Tesouro, ela é inconstitucional, porque nossa Carta Magna dispõe que a desapropriação deverá ser feita mediante justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5º, inciso XXIV). Ademais, surge, com isso, a possibilidade de longas demandas judiciais entre o Estado e o proprietário da arma.

            À parte ser inconstitucional, a previsão de recolhimento das armas seria ineficaz. Sitiado em sua casa e convencido da incapacidade do Estado em lhe garantir a indispensável segurança, o cidadão não deixará de possuir uma arma pela simples existência de uma lei restritiva. Tornar-se-ia, assim, mais uma daquelas “leis que não pegam”, a enriquecer o anedotário nacional.

            Penso, ao contrário, que se deveria dar prazo a todos os possuidores de armas para que as registrem. Com isso, o Estado retiraria da clandestinidade milhares de armas e passaria a ter controle efetivo sobre elas, ao passo que seus proprietários, exatamente por passarem a ser responsáveis por tudo o que com elas ocorrer, certamente seriam mais zelosos na sua guarda e manuseio.

            Estou certo de que, se não procedermos dessa forma, as consequências serão desastrosas. Não apenas por perder o Estado a oportunidade de garantir o controle e a vigilância sobre esse armamento, mas por estimular o surgimento de um perigoso mercado negro: se é certo que as pessoas não entregarão suas armas, é evidente que aquelas hoje devidamente registradas passariam à clandestinidade! Típico exemplo de uma lei que produz efeito contrário ao pretendido!

            As propostas do Projeto de Lei do Senado n° 386, de 1999, anexo, não concorrem para aprimorar o primeiro, pois, além de incidirem nos mesmos erros conceituais e de avaliação daquele, incorrem em outros vícios, igualmente graves, abaixo analisados.

            As sugestões de que, no caso de interesse da segurança nacional, “o Presidente da República poderá estatizar temporariamente fábricas de armas de fogo...)” e que o “Poder Executivo poderá criar incentivos para que as fábricas de armas de fogo sob o controle do Estado mudem de atividade, no prazo de um ano”, revestem-se, novamente, de inconstitucionalidade.

            A estatização sem desapropriação é vedada pela CF porque, como já dissemos antes, implica, naturalmente, em confisco. No caso, a proposta de estatização mediante desapropriação, até devido ao vulto que assumiria o programa, também é inconstitucional, por força do disposto no art. 167 da CF:

       “Art. 167. São vedados:

       I - o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual;

       ..................................................................................”

            E para o objetivo imaginado pelo ilustre proponente, necessidade de defesa, a CF dispõe diferentemente, prevendo que, “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano” (art. 5°, inciso XXV, da CF).

            A ordem, dada à União, para que adquira os estoques e equipamentos das fábricas de armas também é inconstitucional pelos mesmos motivos acima apresentados, e, mais, por ferir os princípios da independência e harmonia entre os poderes ao imiscuir-se em matéria, evidentemente, de competência privativa do Presidente da República, a quem cabe “exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal” (art. 84, inciso II, da CF).

            O Projeto anexo propõe, ainda, que os crimes tipificados na Lei n° 9.437, de 1997, sejam considerados hediondos.

            Precisamos resistir à tentação de classificar como definido na Lei n° 8.072, de 25 de julho de 1990, que “dispõe sobre os crimes hediondos”, todos os delitos que nos causam escândalo ou indignação”. Devemos lembrar-nos de que, após a edição daquela lei, o termo “hediondo”, quando referido a uma infração penal, não deve ser considerado ou empregado como simples qualificativo da palavra crime, mas, ao contrário, deve ser utilizado quando o significado jurídico do termo, definido na lei, o justificar. “Hediondo” refere-se a uma natureza de delito com características específicas e conduz a conseqüências jurídicas bem definidas.

            Ocorre que crime hediondo é aquele praticado com torpeza, crueldade e violência física, impondo grande sofrimento às vítimas e não lhes dando chance de defesa. O criminoso, normalmente, pratica o crime mantendo contato visual ou físico com a vítima. Assiste seu sofrimento e se compraz com ele. Ou, no mínimo, não demonstra qualquer sensibilidade diante da dor alheia. Para ele, a vida ou a incolumidade física da vítima não têm valor. O que caracteriza o crime hediondo é o ato típico e suas circunstâncias qualificadoras, e não suas conseqüências.

            Esses crimes resultam, diretamente, em morte ou lesão corporal de natureza grave. Essa constatação pode ser feita numa análise das características dos crimes listados como hediondos no art. 1° da Lei n° 8.072, de 1990. Tanto é assim que crimes não-enquadráveis nessas características, mas que por seu alto potencial agressivo à sociedade merecem tratamento similar, são, na Lei nº 8.072, de 1990, tratados separadamente no art. 2°. A exceção é a prática da tortura que, apesar de enquadrar-se nas características dos crimes hediondos, não foi listada no art. 1° (que define os crimes hediondos), quando da edição da Lei, provavelmente porque, àquela época, não tinha sido, ainda, tipificada como delito autônomo.

            Ora, os crimes sugeridos como hediondos pelo nobre autor da proposição em comento não têm essas características.

            Quando o PLS n° 386, de 1999, obriga o Executivo a formular um “plano detalhado de combate ao contrabando e ao descaminho de armas de fogo” (art. 6°), novamente incide, a nosso ver, em inobservâncias constitucionais, por se imiscuir, outra vez, em prerrogativas do Presidente da República (art. 84, inciso II, da CF).

            Não obstante, apesar do vício constitucional, estamos convencidos de que essa medida, se tomada pelo Executivo Federal, em coordenação com os executivos estaduais e do Distrito Federal, é uma idéia válida que teria eficácia para reduzir a violência social, se colocada em prática juntamente com outras que visassem a desarmar os bandidos.

            Insistimos em que um instrumento efetivo para esse desarmamento seria a proibição de concessão de autorização de porte de arma de fogo e a severa restrição à posse. Essas medidas permitiriam a separação do joio do trigo. Aqueles que, publicamente, portassem armas, estariam, indubitavelmente, praticando crime cominado na Lei n° 9.437, de 1997, e com base nela seriam punidos. Só ficariam de fora da proibição aqueles cidadãos a quem a lei reconhece o porte de arma como inerente à função que desempenham (oficiais das forças armadas, policiais, agentes de segurança, juízes e membros do ministério público) ou realizam atividades inocentes como atiradores esportivos, caçadores, colecionadores e habitantes em áreas rurais isoladas. Esse tipo de porte não é direito individual e, sim, uma concessão do Estado a uma classe de pessoas que realiza função institucional específica ou atividade não agressiva à sociedade.

            É, também, fundamental, que entendamos ser do maior interesse do Estado estender seu controle sobre as armas que já estão de posse da população. Esse controle, impedirá, por exemplo, que as alterações de posse como roubo, venda, cessão, empréstimo, etc, se façam de forma clandestina, burlando, dessa forma, as disposições da lei. E é evidente que esse controle será mais eficazmente obtido com incentivo e condições que facilitem a legalização. O contrário, como querem as iniciativas em tramitação, colocar um cidadão, de um momento para outro, em situação ilegal, acenar com a ameaça de prisão e oferecer como única alternativa o confisco de um bem, que ele antes havia como seu, só terá como conseqüência arrastá-lo para a clandestinidade, com os inconvenientes que analisamos acima. Ainda, porque, sabemos, e eles também sabem, que a estrutura policial do Estado não tem a mínima condição de forçá-los a entregar suas armas.

            Outra medida importante seria a aprovação do Projeto de Lei do Senado n° 138, de 1999, de autoria do ilustre Senador Carlos Patrocínio, que aperfeiçoa todo o capítulo da Lei n° 9.437, de 20 de fevereiro de 1999, que trata das sanções penais para a inobservância das normas referentes à posse, à guarda, ao porte, à fabricação e ao comércio de armas de fogo, e que se encontra pronto para entrar na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, desde junho de 1999.

            Entendemos, finalmente, que outra providência fundamental seria dar ao Executivo a competência para impedir, se necessário, a exportação de armas de fogo para países que fazem fronteira com o Brasil, evitando o retorno dessas armas por meio do contrabando. Para isso, sugerimos alteração na Lei n° 9.112, de 10 de outubro de 1995, que “Dispõe sobre a exportação de bens sensíveis e serviços diretamente vinculados a tais bens”.

            Essas medidas evitariam a grande maioria dos inconvenientes analisados na proposta em tela e contornaria, inclusive, seus aspectos inconstitucionais.

            É claro que ela só terá efetividade se a polícia e a Justiça fizerem sua parte. Nenhuma lei tem, por si só, a capacidade de mudar práticas e comportamentos sociais.

            Finalmente, as disposições do Projeto de Lei do Senado n° 614, de 1999, incidem nos mesmos vícios dos anteriores e sua implementação traria as mesmas conseqüências indesejáveis acima analisadas.

            III - VOTO

            Pelo exposto, opinamos pela aprovação do Projeto de Lei do Senado n° 292, de 1999, e pelo conseqüente arquivamento dos Projetos de Lei do Senado de nºs 386 e 614, de 1999, na forma da seguinte emenda substitutiva:

            PROJETO DE LEI DO SENADO N° 292 (SUBSTITUTIVO), DE 1999

Dispõe sobre registro, posse e porte de arma de fogo e altera a Lei nº 9.112, de 10 de outubro de 1995, que “Dispõe sobre a exportação de bens sensíveis e serviços diretamente vinculados”.

            O CONGRESSO NACIONAL decreta:

            Art. 1° Fica proibida, em todo o território nacional, concessão de autorização de porte de arma de fogo.

            Parágrafo único. Consideram-se nulas as autorizações de porte já concedidas.

            Art. 2° Só é admitido o porte de arma de fogo a quem a lei reconhece esse direito como inerente à função ou atividade que exerce.

            Parágrafo único. Incluem-se nesse direito os servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA - que exercem poder de polícia em áreas florestais e de preservação.

            Art. 3° A concessão de novos registros de armas destinadas à defesa de pessoas, não enquadradas no art. 2°, dependerá de o requerente comprovar bons antecedentes, comportamento social produtivo, capacidade técnica de manuseio da arma e aptidão psicológica.

            § 1° Fica garantida a validade dos registros já concedidos.

            § 2° Às pessoas que possuem armas não registradas, reconhece-se o direito de regularizar a posse no prazo de cento e vinte dias, isentas das comprovações previstas no caput deste artigo.

            § 3º Presume-se de boa fé a pessoa que promover o registro de arma de fogo que tenha em sua posse.

            Art. 4° O registro, a posse e o porte de arma de fogo por atiradores, caçadores, colecionadores e habitantes em áreas rurais serão regulados por normas especiais.

            Art. 5° O inciso I do § 1° do art. 1º da Lei n° 9.112, de 10 de outubro de 1995, que “Dispõe sobre a exportação de bens sensíveis e serviços diretamente vinculados”, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 1º........................................................................

§ 1º.............................................................................

I - consideram-se bens de aplicação bélica, todas as armas de fogo, os que a legislação defina como de uso privativo das forças armadas ou que sejam de utilização característica dessas instituições, incluídos seus componentes, sobressalentes, acessórios e suprimentos;

...................................................................................(NR)

            Art. 6° O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de cento e oitenta dias.

            Art. 7º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

            Sala da Comissão, 

            , Presidente

            , Relator


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/01/2000 - Página 1249