Discurso durante a 23ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

REFLEXÕES SOBRE OS 20 ANOS DE EXISTENCIA DO PARTIDO DOS TRABALHADORES.

Autor
Artur da Tavola (S/PARTIDO - Sem Partido/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA PARTIDARIA. HOMENAGEM.:
  • REFLEXÕES SOBRE OS 20 ANOS DE EXISTENCIA DO PARTIDO DOS TRABALHADORES.
Aparteantes
Casildo Maldaner.
Publicação
Publicação no DSF de 10/02/2000 - Página 2068
Assunto
Outros > POLITICA PARTIDARIA. HOMENAGEM.
Indexação
  • ANALISE, IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT), HISTORIA, BRASIL, DEFESA, DEBATE, OPÇÃO, IDEOLOGIA, AMBITO, GLOBALIZAÇÃO, MUNDO, ESPECIFICAÇÃO, DISCUSSÃO, FUNÇÃO, DIMENSÃO, ESTADO, PODERES CONSTITUCIONAIS.
  • ANALISE, NECESSIDADE, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT), REVISÃO, ATUALIZAÇÃO, IDEOLOGIA, ESPECIFICAÇÃO, MODERNIZAÇÃO, RELAÇÃO, BENS DE CAPITAL, TRABALHO, ORGANIZAÇÃO, TRABALHADOR, EPOCA, AMPLIAÇÃO, ALCANCE, MEIOS DE COMUNICAÇÃO, ALTERAÇÃO, CONCEITO, SOBERANIA, DEBATE, DEMOCRACIA, SISTEMA, REPRESENTAÇÃO POLITICA.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (Sem Partido – RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Muito obrigado, Sr. Presidente, pela gentileza e pelo sentido de justiça de V. Exª.  

Trago a minha palavra também, neste final de sessão, aos 20 anos do Partido dos Trabalhadores. E desejo fazê-lo numa tentativa de análise, muito mais do que na linha ou do elogio, ou da crítica, ou da concordância ou da discordância.  

Tendo em vista a importância do PT na vida brasileira, os seus 20 anos colocam uma discussão que merece a reflexão de nós todos e que surge por meio de uma pergunta que não sei se responderei. Não sei se está respondida. O tempo e a história gradativamente a responderão: qual o estado necessário para um mundo de globalização? Noutras palavras, qual a posição da chamada esquerda diante de um mundo globalizado?  

Essa dúvida está no centro do debate contemporâneo no Brasil e fora dele. O PT é um Partido que representa parte do pensamento da esquerda; é um Partido que, de certa maneira, às vezes, se supõe monopolizar o pensamento de esquerda, mas, sem dúvida, o capitaneia. Para todos os fins, a esquerda brasileira é constituída por alguns Partidos, à frente dos quais estaria o PT.  

A esquerda, no mundo contemporâneo, vive um dilema de muito difícil elucidação e que, curiosamente, cada país vem resolvendo à sua maneira. A Espanha resolve de uma forma, a França já tem uma solução um pouco diferente, Portugal foi para um determinado caminho; a própria transformação da antiga União Soviética para a Rússia contemporânea já significa outro modo de se ver a esquerda num mundo globalizado. É portanto essa uma questão central para se discutir, a propósito dos 20 anos de um Partido da importância do PT no Brasil.  

E para isso não há como fugir-se ao debate central, e o debate central da contemporaneidade é a questão do Estado: o tamanho do Estado, os limites do Estado, os Poderes do Estado. E aí então dá-se o grande dilema, no caso brasileiro, para o qual o PT tem e apresenta soluções que não são, por exemplo, as da minha plena convicção, mas que em muitos pontos estimulam o País a uma discussão, a um confronto que é rico e aquece o debate democrático; e, além de aquecê-lo, o enriquece.  

Basicamente, tivemos, no século XX, quatro grandes linhas de concepção de Estado: uma linha rígida dos países socialistas, como a do Estado factor, o Estado que faz, o Estado que promove a Justiça, que empresa, o Estado que praticamente ocupa todas as funções da sociedade, porque só ele teria o poder e a capacidade de repartir a justiça, de promover a riqueza, de permitir o planejamento global dessa mesma sociedade.  

Tivemos outras variantes dessa posição como a do Estado interveniente. O Estado interveniente – o Brasil viveu bastante essa fase – esteve, no caso brasileiro, muito presente ao tempo historicamente marcado pelo que se chamou a substituição de importações: um tempo no qual os países acreditavam que teriam a capacidade de prover as suas necessidades em plenitude ou em quase plenitude. O Estado interveniente, portanto, era o Estado que interviria para fazer com que o país se tornasse o mais auto-suficiente em todas as direções. Assim foi o Estado Novo de 37, assim foi o golpe militar de 64: tentativas de fazer com que o Estado interveniente fosse o propulsor do progresso ou, se não o único propulsor do progresso, fosse hegemonicamente o Poder que impulsionasse esse progresso. A idéia do Estado interveniente, curiosamente, sempre esteve presente tanto em certas pregações de esquerda como em pregações de direita. Tanto a esquerda acreditou que o Estado seria capaz de, sozinho, efetuar essa hercúlea atividade, como a direita acreditou. Tivemos exemplos disso tanto no golpe de 37 quanto no de 64, por razões diferentes.  

Uma terceira visão é a do Estado intermediário, que está em grande discussão no momento e que, a meu ver, tem sido marcadamente a posição do atual Governo, do Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, que é a idéia de um Estado que funciona muito mais como intermediário das relações sociais do que propriamente como Estado que se comporte como o executor único de políticas que cabem, sim, a toda a sociedade; em outras palavras: menos Estado, mais sociedade.  

E há uma quarta posição, que é a posição dos setores liberais, a qual tem por finalidade a idéia de um Estado que seja o grande auxiliar do Capital. Essa concepção de Estado parte do princípio de que, sendo a classe dominante, a classe empresarial, os setores da economia, os grandes propulsores do processo de desenvolvimento, cabe ao Estado nada mais do que ser um auxiliar dessa atividade. O pensamento liberal rege-se por essa orientação. Em países onde esse conflito não foi muito grande, como no caso dos Estados Unidos, o Estado funciona efetivamente em plena articulação com os setores do Capital, entregando-lhes o comando do processo de transformação da própria sociedade.  

Essas quatro concepções de Estado correram o século XX, e entram no século XXI, digamos assim, desafiando a humanidade a compreendê-las e desafiando os países a adotar uma posição clara em relação a sua concepção de Estado.  

O PT é um Partido herdeiro de um pensamento da esquerda tradicional, mesclado com a presença do pensamento da doutrina social da Igreja em alguns de seus setores. Ajustado tudo isso ao modo brasileiro de ser, originou-se a posição de que cabe ao Estado, predominantemente, ser um representante dos interesses da classe trabalhadora.  

Essa mesma idéia vigorou no Estado Novo e, de certa forma, marcou a própria política de Getúlio Vargas e a política do trabalhismo, em muitos anos de desenvolvimento, política essa que mesclou, curiosamente, idéias de vanguarda com a pregação populista e que deixou, e deixa, e tem, até hoje, frutos muito presentes na vida brasileira e que foi bastante importante, a seu tempo, como ciclo do desenvolvimento brasileiro.  

O PT, portanto, herda essas tendências num Partido extremamente interessante do ponto de vista da sua organização interna, eu diria até que, de todos os partidos brasileiros, o que me parece mais bem dotado de processos de democracia interna é o PT. É um Partido que sofre suas decisões e, no entanto, a partir desse sofrimento, sai sempre unido, depois que as questões são discutidas e debatidas em profundidade. Esse, aliás, é um dos grandes pontos positivos do PT; ele criou internamente um sistema de organização no qual as bases são ouvidas efetivamente, numa proporção, pelo menos, bem maior do que a dos demais partidos brasileiros.  

Porém, o PT adotou, e adota até hoje, como sua posição central, ser um Partido entre o Estado factor, o Estado que faz, o Estado que se ocupa das tarefas do desenvolvimento, com o Estado interveniente, um Estado que deve intervir, de modo mais constante e mais presente, na própria atividade da sociedade, para que seja o Estado regulador do choque, para o PT inevitável, entre Capital e Trabalho.  

Então, aqui se dá a grande questão para esse Partido. Até que ponto, na contemporaneidade, na moderna visão de empresa, no mundo globalizado, o grande conflito está entre o Capital e o Trabalho como o era ao tempo em que se organizava o Estado forte, poderoso, seja o Estado socialista, seja, como disse, o Estado interveniente? Aqui, creio, está uma das dificuldades do PT, e, ao mesmo tempo, está, de modo até imaculado, a pureza de suas intenções. Se o conflito existente na sociedade contemporânea é hoje o mesmo entre Capital e Trabalho que sempre se deu na História, o PT é um Partido que tem razão; se a natureza desse conflito muda na sociedade contemporânea em função de inúmeros projetos e é possível a existência de um novo sentido de colaboração entre Capital e Trabalho, então, nesse caso, o PT é um Partido que deverá rever, no futuro, muitas de suas posições.  

Mas essa não é uma questão plenamente resolvida nem fácil de ser deslindada, nem fácil de ser resolvida por discurso. Existem na sociedade brasileira inúmeros setores, principalmente ligados ao atraso do pensamento empresarial, onde o Capital ainda explora o Trabalho. Por outro lado, na sociedade, já num Brasil bem mais moderno em alguns setores da economia, existem situações em que não há mais o velho antagonismo entre Capital e Trabalho, sobretudo porque o Capital compreende a importância do Trabalho e, mais do que nunca, sobretudo nos setores terciários da economia, o saber, o conhecer, a competência profissional são o fator determinante do êxito do Capital, razão pela qual ele não tem mais do Trabalho apenas aquela velha visão de um trabalho que se resume na presença de uma atividade mecânica e da força física. Nesses setores e para esses setores, curiosamente, o estilo de atuação do PT aparece como superado e ultrapassado. Ele só não é superado e ultrapassado na medida em que vigora no Brasil, ainda, o resultado de anos de concentração de riqueza, de anos de exploração do trabalho. E nesse ponto o PT é absolutamente correto, valente e indômito na defesa do avanço da sociedade para patamares mais elevados.  

Aqui surge outra interessantíssima questão, dando seqüência ao pensamento nessa matéria, que é qual a forma de atuação de um partido de esquerda em tempos de globalização.  

O PT acredita, como os partidos da esquerda do passado, que a forma de atuação predominante nesse campo ainda é a forma de aglutinação das massas, para que as massas, uma vez organizadas, tenham a condição de enfrentar o Capital. E vemos que, nesse sentido, o PT desenvolve um esforço de alto mérito no sentido de busca de organização das massas. Não há, praticamente, um movimento de massas organizadas que não conte com aquela bandeira vermelha, em plena liderança desse mesmo movimento, a mostrar a presença do PT. A bandeira do PT está nos movimentos dos sem-terra, nos movimentos dos sem-teto – que, aliás, a meu juízo, hoje no Brasil é muito mais sério, muito mais importante do que o movimento dos sem-terra –, está na organização da sociedade pela idéia tradicional, originária da velha luta do marxismo, de que, organizando a classe operária e por meio dessa organização, será possível vencer o Capital.

 

Aqui se dá uma luta muito interessante: a do PT, que é o Partido que melhor e mais se mobiliza para essa luta, e, do outro lado, uma sociedade inteiramente diferente daquela, uma sociedade com meios de comunicação que ocupam praticamente todo o espaço de lazer, que ocupam todo o espaço de pensamento. Para cada briosa, meritória e honrada luta do PT na organização de um movimento de massas, está a televisão falando para 30, 40 milhões de pessoas na direção da formação de consumidores, que vão ficando cada vez mais longe da capacidade de analisar o próprio sistema e que, pura e simplesmente, consomem na forma que o sistema deseja.  

Pergunto – e pergunto mesmo, porque não tenho condições de fazer afirmações nessa direção: será essa a única forma de organizar a sociedade? Haverá outras formas? Como inserir essa luta que tem méritos em mecanismos contemporâneos que não sejam exclusivamente a repetição de técnicas de aglutinação de massas num passado onde a comunicação não ocupava o lugar do pensamento político como ocupa hoje em dia? E a macrocomunicação, sobretudo, ocupa o lugar do pensamento político não para trocá-lo por outro, mas para impedir que ele exista, buscando transformar as pessoas muito mais em consumidores que cidadãos.  

Tem, portanto, essa luta do PT a característica de ser uma luta com técnicas de aglutinação repletas de mérito, porém, algumas delas, defasadas da realidade, embora jamais inúteis, até porque ajudam a criar um nível de conscientização. Mas, ao mesmo tempo em que buscam criar um nível de conscientização, operam algo muito curioso: uma massificação pela esquerda, por slogans que aprisionam o pensamento e que, muitas vezes, são repetidos mecanicamente sem que, nesse processo de aglutinação das massas, possa brotar o verdadeiro sentido de cidadania, que seria tornar-se lúcido diante dos processos. Não! Os velhos processos de massa não querem também, como a comunicação de massa, tornar ninguém lúcido; querem seguidores, não pensadores.  

Como vêem as Srªs e os Srs. Senadores, não estou fazendo um discurso de posições fechadas, acabadas, de elogio ou de crítica; estou buscando analisar como é possível – e sou um homem de esquerda – para o pensamento de esquerda ajustar-se às características inerentes a tempos de globalização; e mais: considerar que o pensamento de esquerda não é necessariamente um pensamento que só tem no Estado o seu caudatário natural. Um pensamento de esquerda contemporâneo aglutina sociedade e Estado; unidade e diversidade cultural; posição nacional e aceitação de regras internacionais, o que torna muito mais difícil a construção de um futuro porque exige categorias de pensamento que envolvem tudo o que a contemporaneidade traz.  

Dentro desse quadro, surge um terceiro elemento que precisa estar sempre presente nas discussões: a soberania. A rigor, pode-se perguntar: há, no mundo de hoje, o mesmo conceito de soberania com o qual fomos formados? A soberania na contemporaneidade é, como era antes, tudo aquilo que está dentro das fronteiras de um país? Pergunto ainda: que soberania existe diante da tecnologia e da ciência, do ponto de vista internacional, presentes em quase todo o mundo? Que soberania existe diante de um mercado de capitais ou de um mercado financeiro que, em questão de segundos, movimenta valores capazes de destruir toda a organização de um país em dezenas ou centenas de anos? Que soberania está presente, por exemplo, diante da comunicação de massas, que chega de todas as partes, comandada por macroforças que, cada vez mais, unem-se em macroempresas de quase impossível percepção e concepção? Que soberania clássica existe diante da Internet

Vamos verificar que surge, no mundo moderno, um conceito de soberania – que, me parece, precisa ser muito bem pensado, pois é interessante – que se choca com este outro conceito de soberania, que ainda está arraigado em nós – em mim está: o da defesa da pátria, o da defesa dos interesses pátrios, o chamado conceito de soberania difusa. Em outras palavras, a soberania está onde está a sua tecnologia; a soberania está onde está a sua cultura; a soberania está onde está a sua arte; a soberania de um país está onde está a sua ação no mercado financeiro, onde estão as suas exportações, onde estão os seus produtos.  

Esse conceito de soberania difusa traz, para a discussão da contemporaneidade, uma série de problemas sobre os quais deve o pensamento esquerdista efetivamente meditar a fim de que não fique a Esquerda a repetir os velhos slogans do tempo do Estado como factor do desenvolvimento, ou do Estado interveniente, como o da grande esperança da população no sentido de repartir a Justiça.  

O Sr. Casildo Maldaner (PMDB – SC) – V. Exª me concede um aparte, Senador Artur da Távola?  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (Sem Partido – RJ) – Com muito prazer.  

O Sr. Casildo Maldaner (PMDB – SC) – Senador Artur da Távola, desejo expressar o quanto foi bom vir aqui para poder participar desta verdadeira aula de ciência política que V. Exª está a nos oferecer.  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (S/P – RJ) – Generosidade de V. Exª.  

O Sr. Casildo Maldaner (PMDB – SC) – Como foi bom, inclusive, a Mesa abrir uma exceção – e para toda regra há sempre uma exceção, como foi dito antes – para que pudéssemos ouvir V. Exª. Quem sou eu para aparteá-lo num tema desta natureza, principalmente V. Exª que é professor, cientista político, escritor, poeta, conferencista, como todos sabemos? Contudo, no momento em que V. Exª analisa os 20 anos de história do Partidos dos Trabalhadores, não pude deixar de lembrar a importância que naturalmente representa essa luta, surgida num momento de muita resistência no País, evidenciada pelas idéias que pregam o Partido dos Trabalhadores, pelo bom sentido que sua maioria esmagadora sempre tenciona. Por essa razão, esta Casa, hoje, prestou a sua homenagem ao Partido dos Trabalhadores, como o Brasil inteiro também o faz. V. Exª analisa – e eu gostaria de participar de sua conferência –, nos tempos atuais, nesse processo de globalização, o comportamento dos Partidos Políticos. Como vão se comportar? Qual a idéia que se tem dos Partidos, inclusive do meu? O que se pensa hoje quando se fala em estatizar ou em privatizar para concorrer com o mundo? Como vamos fazer? O Estado tem que ser maior ou menor? Nos tempos modernos se debate muito isso. Senador Artur da Távola, alinho-me ao pensamento de que, quando pregam o Estado maior ou a estatização como parte central, essa idéia não se acomoda à atualidade. Penso que, hoje, a tese do Estado grande, como um fim em si mesmo, não tem como vingar. De outra parte, a tese liberal de quanto menor o Estado melhor, deixando que tudo aconteça ao sabor do mercado, privatizando e entregando tudo, não tem fundamento. Penso que temos de caminhar orientados pela tese do Estado necessário, como regulador das questões fundamentais. O Estado há de estar presente naquelas atividades que, na verdade, são próprias de sua essência. O Estado essencial porque presente em questões fundamentais: a segurança pública, a saúde, a educação. Temos de ter um Estado que não seja grande, paquidérmico, como fim em si mesmo; nem tão pequeno de forma a se tornar apenas um instrumento nas mãos do capital, que dele se utiliza para auferir benefícios. Então, no que pertine à discussão sobre o Estado necessário, penso que o Brasil está a aplaudir V. Exª neste instante. Quis ter a honra de dizer que aparteei o escritor, o cientista político, o poeta, o grande Senador pelo Estado do Rio de Janeiro, que o Brasil todo, inclusive Santa Catarina, não de hoje, admiram, Artur da Távola.  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (Sem Partido – RJ) – Muito obrigado, Senador Casildo Maldaner. V. Exª é, como sempre, generoso nas palavras. Fico apenas com o título de Senador, porque fui eleito pelo povo do meu Estado, e aceito o de poeta. Quanto a todos os demais, V. Exª está, digamos, indo além do alcance das minhas possibilidades.  

Mas concordo, em profundidade, com V. Exª quando prega o que Norberto Bobbio chamou de o "Estado socialmente necessário", expressão que, aliás, está no manifesto de fundação do PSDB, de que fui um dos redatores. E lá colocamos deliberadamente essa passagem: "Nem o Estado máximo dos totalitários nem o Estado mínimo dos liberais, mas o Estado socialmente necessário", que é a posição de V. Exª, uma tendência contemporânea.  

No caso do PT, talvez seja esse um dos seus maiores dilemas a resolver. Ou ele quer o Estado interveniente que, ao que parece, predomina nas pregações. Jamais diria que o PT pregou um Estado totalitário – seria uma injustiça dizê-lo –, mas um Estado interveniente, capaz de um grau de intervenção para repartir a justiça, para repor o equilíbrio. O que é um ideal maravilhoso, que, até hoje, não foi realizado em plenitude por nenhum país.  

Acredito que o PT possa vir para a posição do Estado socialmente necessário e rever, inclusive, suas alianças políticas até para que ele possa conquistar o poder. Uma vez conquistando o poder, possa efetuar esse amálgama no qual as qualidades de seus membros, a pureza, a limpeza, o caráter, o sentido patriótico dos membros de seus quadros teriam oportunidade de refulgir para a nação muito mais do que o discurso do contra, na direção de um discurso do que fazer. Por isso concordo com o que V. Exª está a dizer.  

Lembro, finalmente – já ultrapasso meu tempo –, o quinto ponto no qual a posição do PT traz a discussão de dilemas interessantes da contemporaneidade. A meu ver, num deles, essa contribuição é bastante significativa.  

Temos, em princípio, por nossa Constituição, a democracia representativa como a base de nossa organização política. A Constituição brasileira coloca passagem, laivos de instrumentos de democracia participativa. Praticamente, não há nenhum instrumento de democracia direta, exceto a possibilidade de alguém com mais de um milhão de assinaturas poder dar entrada num projeto político.  

O PT é um partido que levanta algumas questões que não estão bem resolvidas pelo País porque grande parte dos seus segmentos não acredita, a rigor, nesse mecanismo que vivemos da democracia representativa. Ele se faz representar porque crê que é uma frente de luta, uma frente válida, mas não é o sistema dos seus sonhos. Para grandes segmentos internos do PT, os institutos da democracia participativa e os institutos da democracia direta são muito mais eficazes, promovem muito mais a transformação social do que esse velho, antigo e tantas vezes superado, mas ao mesmo tempo insubstituível mecanismo da democracia representativa.

 

Aqui, a contribuição do PT é bastante interessante. Raros partidos brasileiros dão a ênfase a institutos da democracia participativa como o PT: na organização da comunidade, na presença dessa organização permanentemente junto à força política. Para uma grande articulação que, ao meu juízo, ocorrerá no futuro - e hoje ela não ocorre - entre a democracia representativa, que é esta que temos, sempre uma democracia que não exerce a plenitude da representação popular, mas é a forma de organizar que está ao nosso alcance, com instrumentos da democracia participativa e até da democracia direta.  

O PT prega, por exemplo, no caso do Movimento dos Sem-Terra, ali, direta e claramente, uma postura de democracia direta. Faz parte até do ideário do Movimento dos Sem-Terra a idéia de não considerar como válida a democracia representativa.  

Esse é, portanto, um outro campo de reflexão, é um outro campo de pensamento, que cabe à Esquerda, como cabe também a todas as demais correntes de opinião analisar na contemporaneidade. Ao meu juízo, será na compatibilização entre os mecanismos de democracia representativa aperfeiçoados, não como os temos hoje, – e isso só se refere à reforma do sistema partidário político –, a entrada mais significativa dos elementos de democracia participativa e direta, visando chegarmos a uma democracia plena na sociedade.  

Creio, portanto, que essa é uma questão magna dos nossos dias que o PT traz à baila e nos obriga a pensar e a discutir, o que me parece extremamente positivo.  

Sr. Presidente, se pudesse fazer uma síntese – agora emitindo a minha opinião, mais do que propriamente analisando – do que me pareceu sobremaneira positivo nos 20 anos da existência desse Partido: a sua contribuição à vida brasileira, a sua luta pela democracia, a sua capacidade de tentar organizar a sociedade, creio que a capacidade de luta, a coragem de enfrentar o sistema em seus exageros. E volto com a minha dúvida: hoje, a melhor forma de enfrentar o sistema é apenas a da aglutinação das massas ou existem outras, inclusive dentro da democracia representativa, para aperfeiçoá-la?  

A democracia interna obtida pelo PT é invejável, no meu entendimento, para todos os demais Partidos e, sobretudo, o conteúdo de tudo isso, que é a opção preferencial pelos pobres, que tem enorme significado e que marca com clareza o timbre de uma decisão ideológica fundamental na vida. O PT não tem o monopólio dessa posição, como muitas vezes supõe. Porém, não há dúvida da sua sinceridade na direção da opção preferencial pelos pobres.  

O aspecto negativo, porém, que me cabe também com franqueza nesta homenagem analisar seria, em primeiro lugar, um equívoco de natureza histórica que o PT está a cometer na atualidade brasileira. O PT está levando os setores que o seguem e que ouvem sua honrada pregação a colocar no Governo uma crítica que deveria estar colocada no sistema. E aí entra uma questão de oportunismo político, que torna muito mais fácil identificar no Governo males que são do sistema. Quando, para a abertura das cabeças e das mentes, para a formação de uma cidadania mais consciente, identificar no sistema esses defeitos, mais do que no Governo – a identificação no Governo é sempre por razões eleitorais – seria, a meu juízo, a grande contribuição cidadã que o PT poderia dar, dentre tantas outras que dá. E quem sou eu para ter a pretensão de lhe dizer quais as contribuições cidadãs que deve dar. Com toda sinceridade, vejo com clareza que o potencial intelectual do PT, seu aguerrimento e sua capacidade de luta, se estivessem muito mais a serviço de esclarecer a sociedade sobre as falhas no sistema, em vez de identificar as falhas do sistema com o Governo – o que faz por oportunismo político – ele estaria a dar, como deram no passado outros Partidos de Esquerda, de modo muito mais profundo, uma contribuição mais efetiva.  

Discordo também, muitas vezes, da idéia de alguns membros do PT, de que eles têm uma certa superioridade inata sobre os demais, de que só eles representam a honestidade e a pureza. Há um certo farisaísmo que, por vezes, infiltra-se nos homens de bem: a idéia de que só eles são detentores da boa posição, da boa causa, o que é extremamente perigoso, mas sem dúvida nenhuma acontece diuturnamente, quando todos se colocam como os únicos capazes de compreender o que é bom para o País, os únicos capazes de se julgar em uma posição incólume, em uma posição imaculada e numa posição absolutamente pura. Não. Muitas vezes, quem mergulha na complexidade da política com as suas contradições está fazendo um exercício de ética de responsabilidade muito sério. E quantas vezes é tão mais fácil refugiar-se na posição do bem do que, efetivamente, atirar-se a construir aquilo que, no próprio processo de construção, muitas vezes desgasta.  

Esse caráter levemente farisaico, com toda a sinceridade com que estou a falar, não me parece um traço positivo, já o vimos em outras correntes políticas – e não eram na esquerda, eram na direita. Existe um farisaísmo de esquerda, como existe um farisaísmo de direita, e é preciso um extremo cuidado com essa posição.  

Assim sendo, Sr. Presidente, agradecendo a enorme tolerância de V. Exª e da Casa, o aparte que tanto me honrou do Senador Casildo Maldaner, deixo estas palavras nas quais faço o que me parece a maior homenagem possível ao PT: discutir com franqueza tudo o que está posto para a sua atividade, colocar com clareza uma idéia minha de concordância aqui, de discordância ali, levantar questões que são contemporâneas. Tenho a certeza de que a vida brasileira nunca seria igual se não houvesse um partido como o PT, para estar permanentemente errando ou acertando, errando e acertando, as quatro situações contribuindo enormemente para que essa grande discussão se dê na vida brasileira. Sem ele, sem dúvida, um pedaço do pensamento de esquerda – eu não diria toda a esquerda – ficaria sem uma representação tão eloqüente.  

Muito obrigado, Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, pela atenção.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/02/2000 - Página 2068