Discurso durante a Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

QUESTIONAMENTO AO USO DE PROPAGANDA COMERCIAL, SOB A FORMA DE MERCHANDISING, EM LIVROS DIDATICOS.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
EDUCAÇÃO.:
  • QUESTIONAMENTO AO USO DE PROPAGANDA COMERCIAL, SOB A FORMA DE MERCHANDISING, EM LIVROS DIDATICOS.
Publicação
Publicação no DSF de 26/02/2000 - Página 3628
Assunto
Outros > EDUCAÇÃO.
Indexação
  • COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, JORNAL DO BRASIL, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), ADVERTENCIA, UTILIZAÇÃO, PROPAGANDA COMERCIAL, LIVRO DIDATICO.
  • ANALISE, CRITICA, UTILIZAÇÃO, PROPAGANDA COMERCIAL, LIVRO DIDATICO, AGRESSÃO, ENSINO, ESPECIFICAÇÃO, ENSINO MEDIO, PREJUIZO, FORMAÇÃO, CIDADÃO, INCENTIVO, EXCESSO, CONSUMO.
  • DEFESA, NECESSIDADE, IMPEDIMENTO, PROPAGANDA COMERCIAL, LIVRO DIDATICO, PROIBIÇÃO, ESTADO, AQUISIÇÃO, MATERIAL ESCOLAR, INCLUSÃO, PROPAGANDA.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB - RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, na semana anterior a esta, os jornais, principalmente o Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, publicaram uma espécie de alerta sobre o uso de propaganda em livros didáticos. Creio que essa não é uma matéria irrelevante e, sim, uma matéria que deve merecer a atenção profunda do Senado, da Câmara, do Congresso.  

Pela reportagem, uma série de editoras não estão a fazer propriamente a propaganda direta de produtos inserida no livro; elas realizam a chamada propaganda de merchandising, que é, na linguagem publicitária, aquela propaganda colocada nos pontos de venda. Por exemplo, se estamos numa farmácia e ali há um cartaz com alguém tomando sal de frutas – nem existe mais sal de frutas –, aquilo é um marchandising, ou seja, o fato de, no ponto de venda, lembrar ao consumidor a possibilidade de comprar mais um produto. É uma técnica válida nos arraiais da propaganda, e muito usada.  

O merchandising é muito usado também na televisão. E foi usado, durante muito tempo, no cinema, principalmente no cinema norte-americano. Em uma determinada cena, o ator, diante de um impacto emocional, imediatamente saca não de uma arma, mas de um cigarro, com o qual atenua a sua tensão, teoricamente. Ou era inevitável nos filmes norte-americanos, principalmente nos das minha geração, que, em qualquer discussão, o ator tomasse um gole de uísque. Ou, no velho faroeste, que conhecemos tão bem, Sr. Presidente, a clássica talagada no bar onde se davam os principais tiroteios. Sempre se associava um momento de tensão, um momento de dificuldade à cura com um gole de álcool ou com uma tragada de cigarro.  

Posteriormente, a publicidade evoluiu e, ao invés de associar o produto exclusivamente a momentos de tensão ou de dor, de modo até mais hábil, passou a associá-lo a momentos de alegria. Veja V. Exª que, por exemplo, a propaganda de cerveja no Brasil está sempre associada a uma pessoa alegre, a um momento de gol, à Copa do Mundo, ao esporte, a um momento de vibração no qual, fora da plenitude do seu juízo crítico, o ser humano, com o maior prazer, é capaz de ingerir uma talagada, um gole.  

O Brasil tem, hoje, cerca de 12 milhões de alcoólatras. E a propaganda, não somente o merchandising, segue intacto.  

As telenovelas também são veículo desse tipo de propaganda. Nada contra, é um processo válido. E ele depende apenas da inteligência do consumidor de compreender o mecanismo e, diante dele, se comportar, dominando-o.  

Agora, o merchandising em livros didáticos é algo que merece meditação muito funda da sociedade. Por quê? A sociedade de consumo é tentacular. Possui tentáculos que vão crescendo, como se fosse um grande polvo, à medida que o processo se desenvolve.  

Vejam V. Exªs que a sociedade de consumo se infiltra muito além daqueles segmentos exclusivamente voltados para o consumo direto, ou seja, para os consumidores, para quem pode pagar. Verifiquemos o que acontece na programação infantil dos canais de televisão. Ela é quase toda montada em cima de propaganda de produtos para criança, ou do induzimento da criança a levar os pais ao consumo. Ora, o que são os programas infantis, já que os juvenis praticamente não existem na televisão? São projetos de formação precoce de cidadãos? Não, de consumidores.  

A sociedade de consumo, com muita habilidade, entra nos processos e busca ganhar consumidores crescentes. Sei que isso traz um dinamismo à atividade econômica que deve ser respeitado. Porém não podemos, sob esse argumento, ficar sujeitos a um predomínio dos ideais, dos conceitos e dos valores da sociedade de consumo sobre os demais valores da vida, sob pena de termos, então, uma reversão de expectativa.  

Recordo-me de uma observação do Padre Fernando de Bastos Ávila, que foi meu professor, eminente sociólogo e hoje membro da Academia Brasileira de Letras: "Antigamente eram os valores que determinavam o consumo. Hoje é o consumo que determina os valores." Sem dúvida, toda valoração individual na sociedade de consumo, que é destacada pelas colunas sociais, pelas revistas, tem a ver com a capacidade de consumo que está ali destacada.  

Quanto mais a pessoa consome, maior é o seu nível de repercussão social. E mais: quanto maior é o índice de supérfluos nesse consumo, mais prestígio social tem o indivíduo. Ele é um dos dez mais elegantes, ele anda em uma BMW, ele vai para uma ilha tal, ele voa de helicóptero, ou seja, a valoração se identifica com o consumo. E toda aquela carga de valores de vida, que foi construída por um pensamento que evoluiu, por um tipo de escola que incutiu valores éticos, morais, de cidadania, de civilidade, de educação, estéticos, tudo aquilo que a escola, durante muitos anos, buscou levar ao educando vai gradativamente cedendo lugar a uma outra noção de valores que deriva da capacidade de consumo de cada pessoa. Isso leva a sociedade a uma busca desordenada de consumo para obter um tipo de prestígio compatível com essa busca desordenada, o que apenas faz crescer a lucratividade do processo.  

Esse é um fenômeno da sociedade de consumo, do capitalismo. O capitalismo busca o lucro e o progresso. É evidente que há inúmeros aspectos positivos nessa busca: existe a competição, a livre concorrência – pelo menos teoricamente - o acicate para que as pessoas produzam. Agora, esse processo não é um valor em si mesmo; esse processo é um mecanismo de desenvolvimento da produção e do progresso. Nos países capitalistas com boa formação educacional, com sólida presença da instituição escolar na formação da população, esse processo existe, mas há, do outro lado, a inteligência do consumidor, há uma sociedade capaz de olhar para o mundo e fazer não do consumo o valor principal, mas da vida, da espiritualidade, do intelecto, das idéias; há uma sociedade que faz da sua ética, do seu senso estético o conjunto de valores que formam uma personalidade.  

Uma das razões indiretas, Sr. Presidente, Srªs e Senadores, da violência que grassa na sociedade brasileira está na exacerbação do apetite de consumo. Imaginem uma favela na qual, por acesso a uma televisão colorida, as pessoas tenham a presença de sedutores produtos – que de fato o são, até contemplando o lado positivo da produção industrial –, que dão prazer a quaisquer pessoas, inclusive às pobres, porque são práticos, saborosos. Quem pode resistir - sobretudo nós, desmetabólicos, que não podemos comer açúcar com a fartura com que o fazem alguns felizardos – a uma sorvete em big close na televisão, com a sua formação sendo feita gradativamente e sobre o qual caem saborosas balas jujubas e outros adminículos capazes de torná-lo cada vez mais saboroso? Ninguém. Quem pode resistir àquele delírio de velocidade que a indústria automobilística vende como qualidade intrínseca dos seus automóveis?  

Na medida em que se aumenta a cobiça, ela se torna propulsora de um mecanismo que acaba por invalidar o próprio sistema.  

Hoje, as classes médias, as classes ricas, produtoras de progresso, vivem entre grades com sistemas eletrônicos, constantemente assaltadas por um tipo de sociedade que elas mesmas estão criando ou na qual atuam sem consciência crítica. Essa mesma sociedade gerou um apetite de consumo desordenado nos setores que, não encontrando no País um justo processo de distribuição de riqueza que lhes dê acesso a esse consumo, vão buscá-lo pela via da marginalidade.  

Por tudo isso, Sr. Presidente, por esse fenômeno, temos que compreender que a publicidade em livro didático deve ser rechaçada, como, aliás, fez o Ministro da Educação, tachando-a de absurda de um modo frontal, porque ela já começou a se infiltrar.  

A matéria do Jornal do Brasil não caracteriza um merchandising em profundidade, porque, nesse momento, ela ainda vem sob a forma, digamos assim, da coincidência. Por exemplo, no livro Geografia e Participação , a lição sobre os estados da água na natureza é ilustrada com uma garrafa de guaraná. Está ali implícita uma propaganda. Em outros livros, como Matemática, da 5ª série, um exercício, na página 25, reproduz uma fotografia da lata de Nescau e estimula que o estudante calcule o tamanho do rótulo na embalagem cilíndrica. E o Jornal do Brasil cita vários outros casos de propaganda indireta, ou seja, de merchandising, que é a tentativa, como eu disse, de usar o produto, associando-o ao que está sendo visto ou lido pelas pessoas. Por exemplo, o livro Química na Abordagem do Cotidiano e o livro Língua, Literatura e Redação , editados em 1999, têm as seguintes formas de propaganda: no livro de Química, o autor, falando sobre soluções líquidas, dá como exemplo a Coca-Cola. Diz o livro:  

Sabe-se que, além da água gaseificada e açúcar, a fórmula da Coca-Cola contém também cafeína, noz-de-cola, folhas de coca descocainizadas, baunilha, caramelo, limão verde, noz-moscada, canela e ácido fosfórico.  

A mesma Coca-Cola figura no livro de Português, onde os anúncios publicitários são usados para dar noções de gramática.  

Ora, Sr. Presidente, é necessário mencionar produtos para se dar aula de gramática? Não, até porque os produtos da publicidade agridem completamente a gramática. Não é assim que vamos formar gerações capazes de ter uma visão inteligente da sociedade. E o que está por trás disso? Uma ideologia que, sutilmente, entra na mente infantil e vai formar, repito, não o cidadão do futuro, capaz de discernir entre as várias idéias, escolher o seu caminho livremente, mas vai formar o consumidor, o consumidor acrítico, o consumidor de joelhos diante do produto, o homem para quem o único valor na vida será ter a sua capacidade de consumo aumentada.  

É um processo muito grave em relação ao qual as autoridades educacionais e nós, Legisladores, devemos estar atentos. Inclusive estou preparando um projeto que efetivamente proíbe esse tipo de merchandising em livros didáticos. Por quê? Porque argumentam as editoras do setor que não existe qualquer legislação a respeito no caso do ensino médio, que é um ensino aberto. Os livros didáticos são abertos, estão à disposição dos professores - e são eles quem escolhem os livros. Já no ensino fundamental, onde há presença muito grande do Estado, porque é o Estado quem compra o livro didático e tem normas bastante rígidas para isso, não se encontrou, graças a Deus – pelo menos por enquanto -, a propaganda estilo

merchandising nas suas páginas.  

Mas é verdade que os hábitos de consumo se cristalizam na adolescência. O adolescente tem um impulso de consumo talvez mais forte do que o da criança. O impulso de consumo da criança é setorializado. O adolescente já tem um universo mais amplo, já se interessa por automóveis e por uma série de bens da sociedade de consumo que, se infiltrados no processo educacional, efetivamente vão constituir-lhe o cerne da visão do mundo. Portanto, é uma ideologia. O que está ali é uma ideologia do capitalismo selvagem em estado cru, em estado nu.  

O capitalismo tem vantagens e desvantagens. Se estamos num processo capitalista, temos que ter a lucidez para ver as desvantagens. E uma delas bate todos os dias na nossa cara: é a construção de uma sociedade que progride economicamente e regride do ponto de vista dos valores de vida. Portanto, não é inocente, não é digno de desinteresse o fato de que algumas editoras, em acordo ou não com os produtos, por coincidência ou não, recebendo dinheiro ou não – não se pode fazer essa acusação, nem a reportagem do Jornal do Brasil o faz – estão fazendo merchandising em livros didáticos.  

Espero – deixo aqui este alerta – que fiquemos muito firmes nessa posição. Temos, como Legisladores, a possibilidade de impedir isso, tanto proibindo o fato como proibindo que o Estado, que faz uma compra muito grande, uma compra muito significativa de livros didáticos, adquira livros didáticos que contenham propaganda comercial sob a forma do merchandising.  

É claro que isso não ocorreu. A varrimenta feita pelo Ministério da Educação dos livros do Ensino Fundamental não revelaram qualquer presença desse merchandising, mas, na área que está fora do âmbito do Ministério, entregue à livre empresa, nessa sim, podemos legislar e cuidar.  

Já chega Sr. Presidente, do avanço, do domínio e do comando que a sociedade de consumo tem sobre os nossos atos. Ela não pode ser a ditadora do nosso comportamento. Não podemos ser inermes diante dos seus processos, nem podemos ser pouco inteligentes, até porque é dever da escola preparar a criança para discernir, para compreender os procedimentos do seu tempo, para ter lucidez em relação a eles.  

Hoje, o processo de propaganda é de tal ordem que ninguém, numa praia, para aonde se vai descansar, consegue ficar três minutos sem ouvir alguém gritar o nome de um produto nos seus ouvidos. A propaganda invade o lazer. Não existe mais o lazer da reflexão, do pensamento e, praticamente, o da leitura. Existe o lazer que está impregnado da propaganda na televisão ou o lazer que leva as pessoas, no fim de semana - até porque é o único dia livre -, ao shopping ou ao supermercado.  

A sociedade de consumo, com sua habilidade, avançou de tal modo que já identifica lazer com consumo. Quando uma pessoa diz que adora ir ao shopping no fim de semana, ali não está a necessidade de uma compra propriamente, porque o shopping é feito de uma maneira tão sedutora, tão estupefaciente, que mescla algo de uma rua fechada com ar refrigerado, com segurança, cinemas, bares, criando a idéia de que não se está propriamente numa atividade de consumo, mas numa atividade de lazer. Nada contra. É uma habilidade do sistema. Aceito. Mas quero dizer que, gradativamente, o consumo invade todas as nossas áreas. Invade as horas do lazer com a presença da publicidade no rádio e na televisão. Invade o lazer porque não há nenhum evento de lazer que não seja cercado por cartazes de publicidade em todos os lados. A praias são invadidas por macro shows que vendem produtos ou por campeonatos internacionais, com uma sonoridade brutal que é muito boa para quem está no evento e péssima para quem busca um pouco de paz em torno de si, numa praia, ou um pouco de sol. O consumo invadiu todos esses segmentos da nossa sociedade.  

O SR. PRESIDENTE (Lúdio Coelho) – Senador Artur da Távola, o tempo de V. Exª se esgotou.  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB – RJ) – Como o meu tempo se esgotou e eu já disse o que queria, agradeço a V. Exª e aos Srs. Senadores a gentileza e a atenção.  

Muito obrigado, Sr. Presidente.  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/02/2000 - Página 3628