Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES SOBRE A GUERRA ENTRE TRAFICANTES E A POLICIA NO RIO DE JANEIRO, A POLEMICA SOBRE ACORDO ENTRE O CINEASTA JOÃO SALLES E O TRAFICANTE MARCINHO VP, PARA CONFECÇÃO DE OBRA LITERARIA, SOBRE A VIDA DAQUELE CRIMONOSO.

Autor
Roberto Saturnino (PSB - Partido Socialista Brasileiro/RJ)
Nome completo: Roberto Saturnino Braga
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DROGA. SEGURANÇA PUBLICA.:
  • CONSIDERAÇÕES SOBRE A GUERRA ENTRE TRAFICANTES E A POLICIA NO RIO DE JANEIRO, A POLEMICA SOBRE ACORDO ENTRE O CINEASTA JOÃO SALLES E O TRAFICANTE MARCINHO VP, PARA CONFECÇÃO DE OBRA LITERARIA, SOBRE A VIDA DAQUELE CRIMONOSO.
Aparteantes
Ernandes Amorim, Geraldo Althoff, Geraldo Melo, Romeu Tuma.
Publicação
Publicação no DSF de 02/03/2000 - Página 3914
Assunto
Outros > DROGA. SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • COMENTARIO, FILME DOCUMENTARIO, AUTORIA, JOÃO SALLES, DIRETOR, ASSUNTO, CONFLITO, POLICIA, TRAFICANTE, FAVELA, CAPITAL DE ESTADO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).
  • REGISTRO, POLEMICA, DIRETOR, FILME, PAGAMENTO, TRAFICANTE, REU, FUGA, OBJETIVO, PRODUÇÃO, OBRA LITERARIA, BIOGRAFIA.
  • REGISTRO, EXISTENCIA, SOLIDARIEDADE, TRAFICANTE, COMUNIDADE, FAVELA, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), ANALISE, AUMENTO, CRIME, JUVENTUDE, OPÇÃO, MISERIA, SUBEMPREGO, REVOLTA, INJUSTIÇA, DESIGUALDADE SOCIAL.
  • CRITICA, NOMEAÇÃO, FRANCISCO GROS, PRESIDENTE, BANCO NACIONAL DO DESENVOLVIMENTO ECONOMICO E SOCIAL (BNDES), AGRAVAÇÃO, POLITICA SOCIO ECONOMICA.
  • DEFESA, ALTERAÇÃO, POLITICA SOCIO ECONOMICA, PRIORIDADE, JUSTIÇA SOCIAL, PRODUÇÃO, AUMENTO, CONTROLE, CAPITAL ESPECULATIVO.

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB – RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ocorreu, no Rio de Janeiro, um fato surpreendente, inesperado, que ocupou quatro ou cinco páginas, durante aproximadamente quatro dias, dos maiores jornais do Rio de Janeiro, como O Globo , o Jornal do Brasil e O Dia.  

Sr. Presidente, o fato é que um cineasta brasileiro, o Sr. João Salles, de bom conceito profissional e moral, membro de família das mais ilustres da nossa cidade, fez um documentário muito competente - como são os seus trabalhos - a respeito da guerra entre a Polícia do Rio de Janeiro e os traficantes que ocupam as favelas daquela cidade. Denominou esse documentário de Notícia de Guerra Particular

Esse documentário foi realizado em 1998. Foi exibido de 1998 para 1999 e, ontem, foi reprisado por um canal da NET, o GNP, e tive oportunidade de vê-lo. Realmente, trata-se de um documentário chocante e impressionante. Daí toda a polêmica que suscitou.  

Porém, ao fazer o documentário, o cineasta João Salles viu-se levado a entrevistar vários traficantes e criminosos, entre os quais o Marcinho VP, que foi comandante do tráfico de uma favela da Zona Sul da cidade, o Morro da Dona Marta, que, posteriormente, foi preso e que hoje está foragido.  

O fato é que o cineasta, de alguma forma, achou interessante a história da vida desse traficante. Considerou-a paradigmática - e é realmente; direi o porquê logo em seguida - e propôs um auxílio financeiro ao traficante. Esse auxílio era inteiramente desprezível diante do que o traficante ganhava com o tráfico. O cineasta quis oferecer uma oportunidade ao traficante de realizar um trabalho honesto: escrever um livro sobre a sua vida e a de sua comunidade. E assim foi feito. O Sr. Marcinho começou a escrever o livro; não sei em que ponto este se encontra.  

Esse fato, revelado ao Coordenador-Geral da Segurança do Rio de Janeiro, suscitou uma enorme polêmica a respeito da atitude do cineasta. Seria lícito oferecer essa ajuda em troca de uma obra supostamente literária? Surgiram depoimentos contra e a favor. Isso é crime? Não é crime? O fato é que o cineasta está envolvido no episódio, vai prestar depoimento, vai esclarecer o assunto e recebeu a solidariedade e a condenação de muitos. Alguns depoimentos quase resvalaram em solidariedade ao próprio traficante, o Marcinho VP, tal foi o clima emocional que envolveu o episódio.  

O fato, Srªs e Srs. Senadores, é que esse documentário e essa polêmica revelam, mais uma vez, a deletéria doença que afeta a nossa sociedade, porque mostram com clareza a profundidade dessa guerra e a impossibilidade do seu término.  

O documentário mostra, no Rio de Janeiro, uma polícia razoavelmente bem equipada, que, segundo um dos oficiais, usa armas que nenhuma outra polícia do mundo usa, tal é o seu poder de fogo. Essas armas são usadas por exércitos em outras partes do mundo, mas, no Rio de Janeiro, o são pelo Batalhão Especial, o BOP, da Polícia Militar. Além disso, mostra uma polícia cansada, exausta nas declarações e nas feições dos seus oficiais e dos seus soldados, numa guerra contra traficantes também muito bem equipados, com armas importadas clandestinamente, e apoiados pela comunidade.  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, isso também fica claro! Do contrário, não houvesse essa ligação dos traficantes com a comunidade, não houvesse esse apoio que decorre exatamente da forma injusta como as pessoas são tratadas, evidentemente a polícia já teria ganho essa guerra. E não a ganhou, e, provavelmente, não a ganhará, num horizonte de prazo muito longo, até que essa doença da nossa sociedade seja eficazmente tratada, o que não vem ocorrendo.  

No documentário, uma menina de cinco ou seis anos, na sua ingenuidade, diz claramente: "Aqui, nós preferimos os traficantes, sim." Uma senhora diz: "Antes da existência deles, a polícia entrava aqui, metia os pés nas portas e não nos respeitava. Agora, pelo menos, a polícia entra com medo." Quer dizer, não se pode, absolutamente, ignorar o fato de que há uma ligação de solidariedade. Às vezes mais profunda, às vezes ambígua e cheia de contradições, há uma ligação profunda das comunidades faveladas com os traficantes, que resulta da maneira como a sociedade brasileira trata esses concidadãos que não têm a menor chance de se realizar numa vida digna. Mostra, também, como o caso do Marcinho VP é, realmente, paradigmático, porque ele poderia não ter sido criminoso, poderia não ter feito a opção pelo crime.  

Há um outro documentário, anterior, feito pelo cineasta Eduardo Coutinho, que filmou o Marcinho ainda menino de colégio. Ele expressava o desejo de ser desenhista industrial e chegou a se matricular numa escola para isso, mas foi de tal maneira discriminado que, também observando o destino infeliz da sua família, da sua mãe, dos meninos, dos homens e das mulheres adultos da comunidade, fez a opção pelo crime. Ele poderia não tê-lo feito se tivesse recebido outro tipo de tratamento, se as portas da sociedade lhe fossem abertas para uma ascensão que alcançaria, porque mostrou que tinha talento.  

Aliás, Sr. Presidente, a opção do crime só é feita pelos jovens talentosos, que têm personalidade, vontade, desejo de mudar, que são capazes de se insurgir contra a vida indigna que lhes está destinada, porque os que não têm essas qualidades se acomodam e vão vivendo aquela vida miserável, à espera, não sei, de uma salvação extraterrena. Somente os jovens talentosos, que têm alguma vontade e personalidade, algum tipo de carisma, fazem a opção pelo crime. Assim, escolhem a aventura, mesmo sabendo que a sua vida será muito curta. Na verdade, preferem levar essa vida curta mas digna - com a dignidade como a julgam ser – em relação à de outros membros da comunidade. Esses jovens optam por uma aventura arriscadíssima, mas não se conformam em passar a vida toda – porque sabem que assim será - sob a opressão e a indignidade. Por essa razão, por serem jovens destacados na comunidade, são realmente confundidos com heróis. Suas atitudes não deixam de ter a dimensão de heroísmo, na medida em que se arriscam mas recusam a vida indigna aceita pela maioria, que não possui condições de se rebelar.  

Os jornais dizem que estão transformando Marcinho em herói, mas não é verdade. Quem lê os jornais, a classe média ou aqueles que têm o mínimo discernimento não o julgam um herói. O Sr. Marcinho é um bandido, é um criminoso, sim, e deve ser preso e punido, porém, para a juventude das comunidades miseráveis, a sua atitude e a dos outros que, analogamente, tomam o caminho do crime, não deixam de ter uma dimensão de heroísmo.  

Assim, precisamos refletir muito sobre isso.  

O Sr. Romeu Tuma (PFL - SP) – Permite-me V. Exª um aparte?  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) – Ouço, com atenção, o Senador Romeu Tuma.  

O Sr. Romeu Tuma (PFL - SP) – Senador Roberto Saturnino, V. Exª levanta uma tese a ser discutida, mas apenas abriria um preâmbulo para relatar um fato passado, sem relação com o que V. Exª traz dentro de um prisma discutível. Eu perguntava, à época em que estava na Polícia Federal, por que jovens e crianças ajudavam os traficantes dos morros do Rio de Janeiro. Por que essa dedicação? Seria apenas pela falta da presença do Estado, alheio às dificuldades dos moradores do morro? Seria pelos meios de sobrevivência oferecidos aos meninos e às famílias? Seria pelo próprio medo? Seria por causa desse heroísmo "mais real", que V. Exª cita, a dedicação à imagem desses traficantes? Sou intolerante com traficantes! Nem discuto o assunto e se Deus pudesse destruí-los seria o melhor caminho, mas precisamos ler um pouco de Psicologia para ter uma visão diferente da policial. V. Exª traz uma visão não policial, que busca entender o que está acontecendo e procura respostas. Fazendo pesquisas, ele chegou ao ponto de me dizer o seguinte: pegue aqueles rapazes e os leve até à beira do morro. Lá embaixo tem uma viatura policial – não vou generalizar, estou dando apenas um exemplo. E o sujeito diz que vai pagar o "pau", que é o pedágio, para continuar o trabalho. Quem é o herói para o menino e quem é o bom? Como o policial pode ser considerado herói ou bom se ele está recebendo pagamento para permitir que o crime seja praticado? Então, esse heroísmo provêm de situações as quais teríamos que estudar com profundidade. Penso que a polícia deveria ser o alvo primeiro de qualquer governador. Dever-se-ia criar condições para devolver a dignidade da função à autoridade a fim de que o policial se sentisse herói – como diz V. Exª, alguns sentem-se heróis praticando o crime. Enfim, que o policial tivesse dedicação e amor à profissão para enfrentar o marginal em defesa real da sociedade. O policial vocacionado tem que saber que não vai ficar rico, trata-se da realização de um sonho. Então, essas coisas se confundem. E, neste instante em que V. Exª, com tanta inteligência, clareza, tranqüilidade e calma, nos traz esse tema à discussão, acredito que seria importante que, em outra oportunidade, buscássemos esses pontos relativos à juventude sem opção, sem vocação e que, às vezes, se realiza pelo próprio egoísmo no comando de uma quadrilha, de um grupo organizado e criminoso. Até ontem, as quadrilhas usavam os menores para a prática do delito mais grave, Senador, por serem inimputáveis. Hoje, toda essa garotada que está na Febem se julga herói e já chefia quadrilha. O herói é aquele que consegue matar mais e fazer mais maldade. Esse é o objetivo. Peço desculpas por ter interrompido o discurso de V. Exª.  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) – Senador Romeu Tuma, o aparte de V. Exª é excelente, como, aliás, todas as suas intervenções. V. Exª disse-o muito bem: para nós é difícil, ainda que sejamos psicólogos, porque não temos a vivência daquela comunidade. Outra vez V. Exª está com a razão ao afirmar que essa questão de heroísmo envolve muito as facções em guerra, porque, para os policiais, aqueles que morrem são heróis. E muito justamente. Agora, para os traficantes e para as comunidades que são vitimadas por isso, quem mata é que é herói. Nós que estamos de fora dessa guerra, que temos a obrigação de sobre ela meditar para saber como fazer para extingui-la, temos que compreender que os heróis são aqueles que se arriscam e perdem a vida nessa guerra infindável, Senador. Do jeito que as coisas vão, é infindável, porque o documentário mostra muito bem como os traficantes se realimentam. Há uma população gigantesca que não tem opção, porque entre ganhar um salário mínimo – que estamos discutindo se será de R$160 ou R$170 - e ganhar R$400 ou R$700 por semana, evidentemente que há uma fila de jovens querendo entrar nessa guerra, porque precisam sair da indignidade, da vida miserável dessas comunidades. Precisamos refletir sobre isso. Somos homens públicos, temos que ter a visão dessas coisas a longo prazo e não apenas a visão imediatista. Dizem que precisam reequipar a polícia. Concordo. Mas a polícia do Rio de Janeiro está razoavelmente equipada; na verdade, faltam efetivos para fazer um policiamento ostensivo nas ruas, mas os batalhões de choque, que enfrentam as guerras nas favelas, estão bem treinados e equipados. Não conseguem vencer a guerra porque a força realimentadora dos exércitos de traficantes é imensa.

 

O Sr. Ernandes Amorim (PPB - RO) – Permita-me V. Exª um aparte, Senador Roberto Saturnino?  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) – Concedo o aparte a V. Exª.  

O Sr. Ernandes Amorim (PPB - RO) – Senador Roberto Saturnino, V. Exª traz à tribuna um assunto que preocupa a todos os brasileiros, especialmente os mais pobres, que são as vítimas. Ainda ontem assistia a um programa de televisão sobre desabamentos e me perguntava que vida aquelas pessoas levam? Que futuro terão? Terão emprego? Terão escola? O que faz o Governo? Entendo que não é a polícia que vai resolver o problema. O Governo precisa fazer investimentos. Temos aí a reforma agrária, que não deve ficar no campo da ficção, que o Governo leve aquelas pessoas para o campo para que vivam dignamente. Elas precisam mais do que um salário mínimo para viver, precisam de espaço para sair daquele contexto. Se as pessoas não têm escola, não têm emprego e moram dentro da lama, debaixo de papelões, naquela miséria toda, o que iremos esperar do cidadão? Por isso, a nós, ao Governo Federal e à sociedade como um todo cabe uma grande reflexão. É com escola e educação que resolveremos o problema. Não é tanto com polícia, mas sim oferecendo educação e emprego com a presença do Governo. Obrigado.  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) – Nobre Senador Ernandes Amorim, agradeço o aparte esclarecedor de V. Exª.  

Em seguida, iremos discutir exatamente esse ponto.  

O Sr. Geraldo Melo (PSDB - RN) – Permite-me V. Exª um aparte.  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) – Pois não. Ouço, com muito prazer, o aparte de V. Exª, nobre Senador Geraldo Melo.  

O Sr. Geraldo Melo (PSDB - RN) – Nobre Senador Roberto Saturnino, sabe V. Exª que eu não poderia ter por V. Exª um respeito maior do que o que eu lhe tenho.  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) – É recíproco, nobre Senador. É de coração.  

O Sr. Geraldo Melo (PSDB - RN) – Nobre Senador, eu estou ouvindo, com muita atenção, o discurso de V. Exª. E sou um daqueles que, inclusive, se preparam para, brevemente, participar dessa discussão no Plenário do Senado, porque penso que é um assunto que, hoje, afeta toda a sociedade. Quero apenas fazer um registro em relação a essa questão do heroísmo do bandido, um heroísmo que – e, nisto, discordo de V. Exª - acho que a mídia está contribuindo para criar em relação a essas pessoas. Nobre Senador Roberto Saturnino, tenho a impressão de que se está procurando simplificar demasiadamente, não o discurso de V. Exª, mas toda a discussão do problema da violência no Brasil, simplificar demasiadamente a compreensão desse problema. Há os que simplesmente atribuem o problema da violência à miséria, à fome e à pobreza. Penso que a miséria, a fome e a pobreza fornecem aquela coleção humana onde estão as pessoas que precisam sobreviver e, por isso, são mais vulneráveis à tentação do dinheiro mais fácil na atividade criminosa, mas penso que estamos convivendo, na realidade, com alguma coisa que V. Exª já chamou de "guerra" - penso que é realmente disso que se trata. A convivência, a coexistência entre a sociedade brasileira, a sociedade dos homens sérios, dos homens de bem, dos trabalhadores honestos, das donas de casa, dos funcionários públicos, dos industriais, dos comerciantes, essa sociedade, com a qual nós, que estamos aqui, temos compromisso, essa sociedade, cuja segurança nós temos o dever de encontrar formas de facilitar e de garantir, coexiste com uma outra, que pela nossa leniência ou pela nossa incompetência, ou pelo nosso comodismo, ou exatamente por essa simplificação excessiva na compreensão do problema, é uma sociedade que prospera e se robustece à sombra de uma grande e nova indústria dos nossos tempos, que é a indústria do narcotráfico. Dentro desse universo, dessa sociedade paralela, os padrões de reconhecimento, de afirmação pessoal, não são os mesmos da sociedade, digamos, normal, da verdadeira sociedade do País. Enquanto aqui a conta bancária de uns, a promoção, a ascensão na carreira de outros são elementos de afirmação e produzem o reconhecimento social, na outra sociedade a ascensão social se dá – lá dentro – pela maior capacidade criminosa do indivíduo, pelo maior sucesso que ele tem ao enfrentar situações de perigo. E os que conseguem, aparecem no Jornal Nacional . Esta semana assisti, na TV Globo , a uma entrevista em que um marginal, que está vivendo no exterior mandava mensagens políticas dizendo como deve ser o Brasil. Essa reportagem durou de 15 a 20 minutos. Ou seja, mostrou-se um marginal ensinando ao povo brasileiro como o Brasil deve ser transformado. Na realidade, ele, que já era herói antes de sair do País, transformar-se-á em um semideus quando voltar – o que me preocupa. Estamos começando a viver uma situação em que passamos a considerar a violência algo normal na vida dos povos. Na verdade, a violência produz insegurança e incerteza na vida dos homens de bem, das famílias equilibradas, das pessoas decentes do País, que têm o direito de exigir do Estado brasileiro que lhes garanta dormir em paz, andar na rua em paz. Não podemos continuar tendo complacência com um tipo de atividade que precisa ser esmagada pela força da sociedade. Era esta a minha participação. Agradeço a V. Exª a oportunidade de aparteá-lo.  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB – RJ) – Eu é que agradeço, nobre Senador Geraldo Melo. Farei três observações sobre o aparte muito inteligente de V. Exª, muito lúcido.  

Primeiro, temos de esmagar e eliminar esse mal que brotou com tanta força dentro da nossa sociedade. Porém, o fato concreto, real, é que a sociedade brasileira não tem conseguido fazê-lo. O Senador Romeu Tuma diz que a polícia está muito infiltrada. Mas por que nenhum governador conseguiu transformar a polícia? Tudo isso é um conjunto, é um complexo do qual faz parte a polícia também. E no qual entra a conformação da sociedade, que produz isso. A miséria e a pobreza não produzem banditismo, como V. Exª disse muito bem. Não sou daqueles que dizem que o aumento da criminalidade é resultado do aumento da pobreza. Não se trata disso, mas do sentimento de indignação com a injustiça. Exatamente o contraste, a injustiça, a impunidade, a falta de valores morais – que a elite da sociedade manifesta claramente em todos os setores da vida – produzem a indignação, a revolta, a insurreição, que a sociedade agora não é capaz de controlar e de extinguir.  

A polícia não vai ganhar essa guerra, Senador Geraldo Melo. Estou absolutamente convencido disso. Cabe a nós, representantes dessa sociedade, desse povo, pensar a respeito disso e tomar as providências necessárias.  

O SR. PRESIDENTE (Carlos Patrocínio. Faz soar a campainha.)  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB – RJ) – Não demorarei, Sr. Presidente.  

O Sr. Geraldo Althoff (PFL – SC) – Senador Roberto Saturnino, V. Exª me permite um aparte também?  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB – RJ) – Pois não, Senador Geraldo Althoff. Antes, quero apenas concluir o que estava dizendo ao Senador Geraldo Melo. Não sou defensor da mídia. Na minha opinião, a mídia nacional está envolvida com a elite endinheirada e sem padrões éticos, incapaz de servir de exemplo para a conformação de uma sociedade mais justa. Naquelas comunidades, há uma mídia própria, de boca em boca; são comunidades muito densas, muito próximas. Não é o fato de o bandido aparecer na mídia que o transformará em herói. É a atitude dele, imediatamente conhecida de toda a comunidade, que o faz um representante da insurreição contra a indignidade a que todos são submetidos.  

Ouço o Senador Geraldo Althoff.  

O Sr. Geraldo Althoff (PFL – SC) - Muito obrigado, Senador Roberto Saturnino. V. Exª levanta um problema de significativa importância quando se refere à identidade do herói negativo e à influência negativa que esse indivíduo tem sobre a estruturação da personalidade das crianças e dos adolescentes. Quero fazer uma comparação. Todos nós, quando crianças ou adolescentes, íamos às matinês dos cinemas, nos domingos à tarde, para assistir aos filmes de bangue-bangue. Naqueles filmes, havia as figuras do mocinho e do bandido, representando o bem e o mal, respectivamente, sempre com a alternativa do bem sobrepujando o mal. Poder-se-ia pensar que aquela situação fosse negativa. Mas na estruturação da personalidade do ser humano, essa conotação da realidade agia de maneira positiva, porque o bem sempre sobrepujava o mal. Hoje assistimos exatamente à situação inversa: o mal sobrepujando o bem, o que interfere de maneira direta e efetiva sobre a estruturação da personalidade das crianças e dos adolescentes que vivem nesse meio. Essa era a ponderação que eu gostaria de fazer.  

O SR. ROBERTO SATURNINO (Bloco/PSB - RJ) – Ponderação, Senador Geraldo Althoff, muito justa e com a qual concordo. Porém, é preciso fazer uma indagação. Por que isso mudou? Por que os filmes apresentavam a realidade de uma forma naquela época e hoje a apresentam de maneira diferente? Não o fazem senão pelo fato de a sociedade ter mudado. A sociedade daqueles tempos tinha valores éticos, morais e tradicionais diferentes dos atuais.  

Senador Geraldo Althoff, o valor, hoje, está na eficácia financeira, no dinheiro. Na interpelação do Sr. Armínio Fraga, quando ele ia assumir o cargo de Presidente do Banco Central, lembro-me de que chamei a atenção de S. Exª para o fato de que a nossa sociedade está valorizando a eficácia de resultados financeiros em detrimento de padrões éticos e morais sobre os quais se funda a sociedade. São padrões para os quais não importam resultados a longo prazo, pois os resultados muito bons podem esfarinhar o edifício social, na medida em que negam os valores tradicionais. Naquela ocasião, a minha colocação não foi compreendida.  

Sr. Presidente, o tempo destinado ao meu pronunciamento já está esgotado. Para encerrá-lo, peço a V. Exª que me conceda alguns minutos, para que eu possa chamar a atenção dos Srs. Senadores para um fato muito importante.  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, passamos os anos 90 experimentando uma diretriz política: a de favorecer as exigências do mercado financeiro na expectativa de grandes investimentos internacionais que dinamizassem a nossa economia, gerassem emprego e possibilitassem o ataque mais profundo da questão social. Entretanto, perdemos dez anos na expectativa de que isso ocorresse. Pergunto: continuaremos esperando por mais dez anos, praticando a mesma política na expectativa de que isso mudará? Não mudará, Srs. Senadores! Ou reagimos e dizemos claramente que essa política deve ser mudada, que é preciso restabelecer o primado da produção e da justiça social sobre o interesse financeiro, ou essa situação só se agravará! Não há razão ou luz no fim do túnel que nos infunda a confiança de que essa solução de política econômica traga os resultados que o Governo vem apregoando insistentemente e cada vez mais.

 

Agora, nomeia-se o Sr. Francisco Gros presidente do BNDES, da agência desenvolvimentista. O que esperar disso senão o aprofundamento de uma linha desastrosa de política econômica e social, que vem infelicitando o País e agravando cada vez mais a guerra social que se implantou nas nossas grandes cidades e que, no Rio de Janeiro, se tornou invencível?  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a polícia do Rio não vai vencer essa guerra. Fiquei absolutamente convencido disso nos últimos tempos. Está lá a cúpula da Secretaria de Segurança completamente dividida, e o Governador tentando colocar panos quentes. O fato é que há uma divergência filosófica fundamental: enquanto um acredita que a ação armada da polícia resolverá o problema, o outro pensa o contrário, que é preciso buscar outros caminhos a fim de mudar a realidade em que vive a sociedade brasileira, a fim de que haja paz.  

Sr. Presidente, agradeço a benevolência de V. Exª.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 02/03/2000 - Página 3914