Discurso durante a 11ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

HOMENAGEM AO DIA DO SERINGUEIRO, COMEMORADO HOJE, NO ESTADO DO ACRE.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM AO DIA DO SERINGUEIRO, COMEMORADO HOJE, NO ESTADO DO ACRE.
Publicação
Publicação no DSF de 04/03/2000 - Página 4168
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, SERINGUEIRO, ELOGIO, EXERCICIO, ATIVIDADE, EXTRAÇÃO, BORRACHA.
  • ANALISE, HISTORIA, IMPORTANCIA, ATIVIDADE, SERINGUEIRO, ECONOMIA, PAIS, REFERENCIA, EXPORTAÇÃO, BORRACHA.
  • HOMENAGEM POSTUMA, CHICO MENDES, SINDICALISTA, ELOGIO, LUTA, BUSCA, DIREITOS, SERINGUEIRO.

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, venho à tribuna para prestar uma homenagem ao seringueiro. No meu Estado, o Dia do Seringueiro é comemorado hoje - não sei exatamente quem apresentou a lei que criou a data, mas parece-me que foi o ex-Senador Jorge Kalume, na época em que foi Governador do Estado do Acre.  

Gosto muito de trabalhar com a idéia de que o homem vive uma parte realidade e uma parte meramente simbólica. Vivendo os símbolos, as datas comemorativas têm uma importância significativa na construção da identidade dos indivíduos, seja das comunidades ou até mesmo das sociedades.  

Nesse sentido, o Dia do Seringueiro para os povos da Amazônia e, particularmente, para os do Estado do Acre – que, como um dos maiores produtores de borracha na economia brasileira, no período em que a borracha teve uma importância econômica que chegou a representar 40% das nossas exportações - é bastante significativo. Foi naquele Estado que surgiu uma das mais importantes organizações dessas comunidades no sentido de reagir ao que vinha sendo implementado como alternativa de desenvolvimento diante da falência dos antigos seringais nativos.  

Na década de 70, houve uma imensa propaganda para que se comprasse terra no Are. Dizia-se que o modelo extrativista era atrasado, ultrapassado e que, portanto, era necessário levar o progresso à Região Amazônica.  

Que tipo de progresso os grandes projetos pretendiam levar? Eu sempre digo: tão grande que a população humilde nem alcança! Tivemos, então, os projetos de exploração de madeira, de exploração de minério, a pecuária extensiva e, até mesmo, a agricultura; a tentativa de agricultura em grande escala.  

Com certeza esse modelo não substituiu, de forma adequada, a velha empresa extrativista, que, muito embora tivesse inúmeras conseqüências do ponto de vista econômico, social e até mesmo da exploração da força de trabalho dos seringueiros, conseguia incorporar imensos contigentes de pessoas. Tanto é que tínhamos um seringal com mais ou menos 200 unidades de produção. Ao passo que uma fazenda, com a mesma quantidade de hectares, pode ser tocada com apenas cinco ou seis peões.  

Com a implementação desses grandes projetos, tivemos uma saída em massa das pessoas que viviam nos seringais para as periferias das cidades, o que criou sérios problemas sociais; além dos problemas ambientais, criados com a entrada desses grandes projetos, que não preciso relatar, mas apenas dou ênfase à questão das queimadas e das derrubadas. Hoje temos cerca de 17% de área desflorestada com 25% de área com ação antrópica, se considerarmos a exploração madeireira.  

Registro na Tribuna da Imprensa a presença da minha filha, Shalon, cujo nome significa "paz", que me ouve, e dá-me muita alegria tê-la aqui.  

Em segundo lugar, devo observar que esses problemas ambientais e sociais criaram um movimento de resistência liderado, no Estado do Acre e em toda a Amazônia, pelo ambientalista, sindicalista e, com muito orgulho, petista, Chico Mendes, que, depois de São Francisco de Assis, hoje, é uma das figuras mais conhecidas em todo o mundo na questão ambiental.  

A luta dos seringueiros, esta data e os seus símbolos são muito importantes, e quero ater-me a um aspecto que considero bastante curioso e que para mim foi bastante educativo. Até mais ou menos a minha adolescência, lembro-me que ouvíamos dizer que havia alguma proibição com relação a se matarem determinadas caças, venderem-se couros de animais, mas era algo muito vago. Não havia a presença do Ibama, do Ministério do Meio Ambiente e dos fiscais para proibirem os seringueiros, os índios e os ribeirinhos de pescarem ou de caçarem de forma predatória, mas havia toda uma simbologia que era uma espécie de regulação mítica dos recursos naturais a partir do que aconteceu entre a cultura dos nordestinos, que ocuparam a Região Amazônica, e a cultura milenar dos índios, que já existiam naquela região.  

E que tipo de regulação mítica era essa? Lembro-me que, ao se caçar, não se podia matar um animal que estivesse prenhe. Todos os seringueiros, quando iam matar uma determinada caça, tinham sempre o cuidado de observar se aquele animal não estava para, digamos assim, ganhar um bebê, como chamamos, às vezes, os filhotes de veadinhos. Sempre ficávamos muito atentos a isso. E por que era importante observar isso? Porque se se matasse um animal que estivesse prenhe, ficava-se "panema", que significa ter azar; se se ficasse com azar, ficar-se-ia muitos anos e muitos meses sem se conseguir uma caça, e seria preciso todo um ritual de purificação para que se voltasse a ter sorte de caçar. Portanto, havia uma regulação mítica dos recursos naturais, no caso o recurso da caça, e não era necessária a presença do Ibama para controlar o seringueiro e o caboclo.  

Se se pescava mais que o necessário à sobrevivência, tinha que se prestar contas a uma entidade muito poderosa das águas, chamada mãe-d’água, que poderia afundar a canoa e, além de se perderem os peixes, poder-se-ia morrer afogado. Portanto, ninguém praticava a pesca predatória, com medo da mãe-d’água. Havia, ainda, outros aspectos dessa regulação mística dos recursos naturais, que era uma verdadeira potência se comparada à ineficiência do que são as instituições que regulam o acesso aos nossos recursos naturais.  

A partir da década de 70, quando surgiu um novo modelo de exploração dos recursos naturais baseado na pecuária, na mineração, na exploração de madeira e na agricultura em grande escala, todas essas forças, que antes cumpriam um papel de regulação social e cultural das populações tradicionais em relação à floresta, e que a mantiveram de pé durante séculos, foram completamente desmoralizadas, porque esse código não estava na cabeça do pecuarista que chegava do Sul e do Centro-Sul do País. Esse código não estava na cabeça de quem achava que uma árvore era apenas um suporte para, dali, extraírem-se uma mesa, uma cadeira, uma prancha para se ganhar dinheiro. Ele estava apenas na cabeça de quem tinha uma relação com a floresta, como se ela fosse quase que parte da sua própria existência. Foi isso que os seringueiros aprenderam com os índios e é por isso que essa categoria tem uma função importante quando se pensa em preservação da Amazônia e do meio ambiente.  

Chico Mendes conseguia navegar nessas duas linguagens. Era um cidadão do mundo, que dialogava em nível global para defender o interesse dos seringueiros e da Floresta Amazônica, mas que, ao mesmo tempo, tinha todo esse universo simbólico da realidade cultural da qual fazia parte.  

Lembro-me que, quando eu entrava na mata, a primeira recomendação do meu pai era: "Vocês não podem matar mais de duas pacas, porque, senão, levarão uma boa surra do caboclinho do mato". E eu e minhas irmãs tínhamos muito medo de tudo isso e obedecíamos à risca as advertências de meu pai.  

Estou trazendo este conjunto de informações sobre a realidade simbólica dos seringueiros para dizer que, no meu Estado, estamos comemorando o Dia do Seringueiro porque temos gratidão e, ao mesmo tempo, um tributo a pagar a esse segmento que construiu a economia do Acre, que foi responsável pela revolução, juntamente com Plácido de Castro, para anexar ao Brasil aquele território que, antes, era boliviano. Somos o único pedaço do Brasil que decidiu ser brasileiro. Somos brasileiros porque decidimos sê-lo, juntamente com o gaúcho Plácido de Castro - o Senador Pedro Simon já me olha, cobrando-me que diga de onde era Plácido de Castro: do Rio Grande do Sul, tchê! Pois bem, juntamente com Plácido de Castro, os acreanos decidiram que a área de maior produção gomífera deveria ser anexada ao Brasil.  

Durante muitos anos, o Brasil resistiu a fazer esse reconhecimento e somente depois é que aceitou anexar o território, que foi ganho à custa do suor, do sangue e da vida de muitos seringueiros nordestinos que viviam naquelas regiões. Mas a nossa dívida com os seringueiros não acaba aí. Eles também produziram a riqueza e toda a construção daquela região, mas foram responsáveis por um dos movimentos mais ricos e importantes da questão ambiental do nosso País, que foi a defesa da Amazônia, a partir de uma visão autóctone, local, da Amazônia.  

Antes, ouvíamos preocupações de organizações externas do Brasil, preocupações de entidades do Rio de Janeiro e de outras regiões do País, mas não tínhamos um movimento endógeno, da própria Amazônia, na defesa dos interesses da nossa cultura, da nossa floresta, dos nossos valores, da nossa condição de povos da floresta, que é como nos intitulamos. Foi do movimento dos seringueiros, com o Chico Mendes, a partir da luta dos empates e da resistência aos grandes projetos que surgiu, hoje, uma identidade de defesa da Amazônia na própria região.  

Se hoje temos, no Acre, apenas 9% de área degradada, isso se deve muito à luta dos seringueiros, à luta dos índios e dos ribeirinhos que resistiram a um modelo equivocado de derrubada de florestas para o plantio de capim, que resistiram a um modelo equivocado de queima das nossas riquezas de biodiversidade para a implementação de uma agricultura que não tem como competir com a do Centro-Sul do País.  

De sorte que se, hoje, temos 90% de floresta, com a maior biodiversidade do Planeta, no Parque da Serra do Divisor, no Município de Cruzeiro do Sul, devemos isso a essa resistência consciente dos seringueiros, que, muito embora não fossem cientistas do saber sistematizado, eram verdadeiros cientistas sob o ponto de vista do etnoconhecimento, da capacidade que têm de associar conhecimento aos recursos naturais e de, a partir daí, ter uma relação de respeito com o meio ambiente.  

Essa categoria foi sendo aviltada pela falta de preço para a borracha, falta de preço para a castanha, por não ter políticas públicas voltadas para o atendimento de necessidades básicas como saúde, educação, escoamento de produção, transporte, segurança, enfim, mas, hoje, graças a Deus, com o Governo da Floresta, como é o nosso

slogan, o Governo do Jorge Viana, todas essas políticas estão sendo levadas a cabo. Temos uma secretaria de apoio ao extrativismo, a Secretaria de Floresta, e ousamos, inclusive, criar um novo conceito para identificar os direitos fundamentais daquelas pessoas que vivem na floresta.  

Se, para o cidadão que vive na polis, que vive na cidade, o conceito de direitos básicos fundamentais atendidos chama-se cidadania, no Acre, estamos defendendo uma espécie de "florestania". A dúvida é como serão chamadas, em particular, as pessoas. Se, para cidadania, existe o cidadão, para "florestania" ainda não foi encontrado um termo.  

Advogamos que o conceito de cidadania é, de certa forma, preconceituoso com aquelas pessoas que vivem na floresta. Desde que comecei a entender conceitos, a partir dos dezesseis ou dezessete anos, quando fui alfabetizada, eu ficava sempre muito "invocada" quando ouvia a palavra "urbanidade". Havia um professor que dizia, quando alguém era um pouco mal-educado: "Esse menino não tem urbanidade." Eu ficava muito ofendida, porque o contrário de urbanidade deveria ser "ruralidade". Nós, que éramos da zona rural, deveríamos ser analfabetos, ignorantes e não polidos. Estamos, então, constituindo no Acre a florestania como a identidade cultural, os direitos sociais elementares de uma população que vive em cidades dentro de uma floresta, diversificada, cheia de símbolos.  

A diferença entre a cidade e a floresta é muito interessante de ser observada. Enquanto a cidade, de certa forma, é exibida, cheia de luzes, de prédios, de muitos "riquefiques" – como dizia a minha avó –, a floresta é cheia de mistérios, de silêncio, de um certo calar, apresentando alguns momentos de muita tranqüilidade e acolhimento e outros de um certo receio, principalmente para aqueles que não a conhecem.  

Estamos realizando hoje no Estado do Acre alguns programas de governo, como o zoneamento ecológico e econômico, o subsídio para a borracha, com a Lei Chico Mendes, as usinas de beneficiamento de castanha, as usinas de borracha. Toda a tessitura montada em temos de sindicato, de organizações, de cooperativas, de centrais de cooperativas, tudo está levando essas pessoas a uma nova visão do que é ser um elemento que vive na floresta. E tem havido um retorno das pessoas que viviam nas periferias da cidade para as suas antigas colocações de seringa, porque hoje há preço para a borracha e elas terão condições de escoar sua produção. O Governo compreende que essas pessoas cumprem um papel importante dos pontos de vista social, cultural, ambiental e econômico. A maior contribuição, com certeza, oferecida hoje é a ambiental.  

Se o Governo tivesse de pagar 20 mil fiscais do Ibama, o custo seria muito alto. No entanto, temos 20 mil seringueiros, juntamente com os ribeirinhos, que tomam conta daquela floresta sem cobrar um centavo do Governo. Isso deveria ser computado. Com apenas R$6 milhões, estamos gerando mais ou menos seis mil oportunidades de trabalho. Fico triste ao ver que, para a Ford gerar cinco mil empregos na Bahia, precisou de bilhões de reais, quando se pode ter programas que geram dignidade e oportunidade de sobrevivência às pessoas com muito menos recurso, com quantias quase insignificantes.  

Fico feliz em poder anunciar que, no meu Estado, quando se comemora o Dia do Seringueiro, não se pode esquecer das comunidades indígenas, que nos é motivo de orgulho. Temos 80% de área demarcada e 11 mil índios vivendo em 10% das terras acreanas. Temos um programa específico que queremos montar na área de saúde e de educação bilíngüe. Aliás, ontem, formou-se a primeira turma de segundo grau em educação bilíngüe no Estado do Acre. Não estou dizendo que a situação dessas comunidades é uma maravilha, até porque é o primeiro ano de governo. Mas esperamos, ao longo de quatro anos, construir a florestania para todas as pessoas que vivem na floresta do meu Estado.  

Fico feliz em prestar esta homenagem, pois ainda me sinto parte da categoria. Graças a Deus, nasci e me criei no Seringal Bagaço, com meus pais, minhas sete irmãs e meu irmão. Aprendi a fazer tudo o que se refere a essa profissão, desde cortar, defumar, partir cavaco, raspar a madeira, colher e juntar o sernambi. Fazia tudo isso com o meu pai, desde os dez anos de idade. Esta data para mim tem um simbolismo especial, como também para o Estado do Acre, porque hoje podemos ter algo a comemorar.  

Durante mais de 100 anos, essas pessoas não tinham as mínimas condições. Eram semi-escravos. Hoje, graças a Deus, podemos dizer que são trabalhadores autônomos, vivendo em reservas extrativistas, em assentamentos extrativistas ou em alguma área que podem operar sem serem tutelados a um patrão.  

Ao mesmo tempo, estamos conseguindo fazer com que alguns benefícios, que antes não aconteciam, possam chegar a essas pessoas. O Amazônia Solidária é um programa para diversificação e modernização da economia extrativista. Uma linha de crédito especial foi conseguida para os extrativistas de toda a Amazônia, graças a uma luta do Congresso junto ao Basa, defendida por mim, pelo Governador Jorge Viana e pelo Governador do Estado do Amapá. Assim, aqueles que não têm titularidade, que não têm a posse da terra também poderão pegar um crédito especial, que é o Prodex. Somente nos Municípios de Cruzeiro do Sul, de Manso Lima, de Taumaturgo e de Pôrto Valter, R$580 mil foram internalizados nessas comunidades, que podem pegar de R$400 mil a R$500 mil para comprar uma canoa, abrir sua colocação, comprar suas tigelas. Esse é um programa semelhante ao banco do povo.  

Sr. Presidente, homenageio a memória do saudoso Chico Mendes, que, com certeza, tem a sua luta e a sua história marcadas em tudo o que está acontecendo no Acre, inclusive no fato de eu estar aqui, neste momento, fazendo esta homenagem.  

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DOCUMENTOS A QUE SE REFERE A SRª MARINA SILVA EM SEU PRONUNCIAMENTO:  

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 04/03/2000 - Página 4168