Discurso durante a 20ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

REFLEXÃO SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA HUMANIDADE NO SECULO XX E AS PERSPECTIVAS PARA O SECULO XXI, DESTACANDO A DESIGUALDADE SOCIOECONOMICA ENTRE AS NAÇÕES.

Autor
Geraldo Cândido (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Geraldo Cândido da Silva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIO ECONOMICA.:
  • REFLEXÃO SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA HUMANIDADE NO SECULO XX E AS PERSPECTIVAS PARA O SECULO XXI, DESTACANDO A DESIGUALDADE SOCIOECONOMICA ENTRE AS NAÇÕES.
Publicação
Publicação no DSF de 24/03/2000 - Página 5290
Assunto
Outros > POLITICA SOCIO ECONOMICA.
Indexação
  • ANALISE, DESENVOLVIMENTO TECNOLOGICO, AUSENCIA, ACESSO, MAIORIA, POPULAÇÃO, MUNDO, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, MISERIA, VIOLENCIA, DOENÇA.
  • ANALISE, CRESCIMENTO, PRODUÇÃO AGRICOLA, PRODUTIVIDADE, INDUSTRIALIZAÇÃO, REDUÇÃO, POPULAÇÃO RURAL.
  • ANALISE, CONFLITO, POLITICA INTERNACIONAL, INICIO, SOCIALISMO, LIBERALISMO, EXCESSO, PODER, CAPITAL ESPECULATIVO.
  • COMPARAÇÃO, CAPITALISMO, SOCIALISMO, DEFESA, AUMENTO, PARTICIPAÇÃO, TRABALHADOR, GESTÃO, EMPRESA, AMPLIAÇÃO, DEMOCRACIA, DESCENTRALIZAÇÃO, DECISÃO.

O SR. GERALDO CÂNDIDO (Bloco/PT - RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, faço uma breve análise do final do século XX e das perspectivas para o século XXI. Já que estamos no limiar do terceiro milênio, é bom que se avalie que o século XX foi muito importante para a humanidade do ponto de vista dos avanços tecnológicos. Neste século, a humanidade conheceu o que existe de mais moderno, a tecnologia evoluiu, avançou, fez várias descobertas, conseguiu colocar o homem na Lua, muitos astronautas no espaço sideral, descobriu o carro, o computador, criou a automação nos meios de produção, enfim, um avanço muito grande.  

No entanto, todos esses avanços beneficiaram apenas pequena parte da população da Terra, porque a maioria dos seus habitantes não foi beneficiada. O exemplo está aí: estudos comprovam que, dos seis bilhões de habitantes do nosso planeta, um bilhão e meio vive em situação de pobreza absoluta. Isso significa que todo esse avanço tecnológico não beneficiou a humanidade, apenas uma parte dela. Aqueles que detêm o poder econômico e o capitalismo selvagem foram beneficiados, com um maior acúmulo de riqueza e aumento da pobreza e da miséria da população. O resultado é este: o aumento da violência e as doenças que proliferam por todo o globo terrestre.  

Quais são as perspectivas para o século XXI? É bom lembrar o debate que ocorreu há pouco, quando o orador que estava na tribuna, Senador José Eduardo Dutra, falava sobre o teto salarial e o chamado teto dúplex. O Governo Federal, hoje, deverá anunciar a decisão sobre o salário mínimo, que deverá ficar em torno de R$150. Serão acrescidos míseros R$14 a ele. Então, penso que toda essa discussão demagógica não vai resolver nada.  

Para se resolver o problema do Brasil, é necessário desenvolvimento econômico; para melhorar a situação do trabalhador é preciso dar-lhe emprego decente, salário melhor, acesso à saúde, à escola, à moradia e ao saneamento básico, e não as esmolas da política que está sendo proposta no Plano de Erradicação da Pobreza que foi aprovado aqui. Aliás, quero dizer que, pessoalmente, tenho as minhas discordâncias e o meu ceticismo com o resultado efetivo desse projeto, até porque o valor que está sendo destinado é R$4 bilhões, o que vai dar R$4 por pessoa. Essa é uma esmola que um cego recebe em qualquer botequim de esquina.  

Portanto, Srªs e Srs. Senadores, é bom que se analisem todas essas questões, assim como as perspectivas para o século XXI, para o terceiro milênio.  

A primeira legislatura do ano 2000 parece-me um momento bastante oportuno para abordarmos as perspectivas e alternativas que se apresentam para o futuro da humanidade.  

Não vim aqui fazer previsões sobre o futuro, pois não sou profeta e não acredito que o futuro já esteja traçado. O futuro vai depender do que os homens façam para construí-lo, vai depender de como eles enfrentarão os problemas e desafios que a realidade do presente coloca. O futuro é, assim, sempre imprevisível e, certamente, ainda mais nos dias atuais do que nos séculos passados.  

Este foi o século das mudanças. Nunca antes na História as mudanças foram tão radicais nem se sucederam num ritmo tão frenético. O principal fator que impulsionou essas mudanças foi o progresso científico e tecnológico.  

Em 1900, a indústria tinha ido pouco além do que penetrar em ramos tradicionais, como o têxtil, anteriormente atendidos pela produção artesanal. E, mesmo assim, em muitos deles ainda predominava a produção manufatureira, que não utilizava máquinas. Novos ramos surgiram em grande quantidade, e inumeráveis novos produtos apareceram. Coisas que nem se sonhava que poderiam existir em 1900, como a geladeira, a televisão, o computador e o automóvel, tornaram-se padrão básico de consumo para o ser humano moderno em 1999, muito embora não acessíveis a todos.  

A produção mundial de manufaturas quadruplicou somente no período entre o início da década de 50 e o início da década de 70. Quanto à produção agropecuária, pode-se dizer que cresceu bem acima do crescimento da população. Nos países capitalistas avançados, esse crescimento chegou a criar o problema de não se saber o que fazer com o excedente. No resto do mundo, o crescimento per capita superava em média 1% ao ano. A produção de grãos por hectare quase duplicou somente no período entre o início da década de 50 e o início da década de 80.  

Maior ainda foi o crescimento da produtividade. Graças ao emprego intensivo de tecnologia e máquinas, é necessário hoje muito menos trabalho para produzir muito mais.  

Um dado impressionante é o declínio da população rural. No início do século XX, a população rural era uma parte maciça da população global, com exceção da Grã Bretanha. Até as vésperas da Segunda Guerra, somente na Grã Bretanha e na Bélgica, a agricultura e a pesca empregavam menos de 20% da população. Na França, Suécia e Áustria, entre 35 e 40% da população. Nos países agrários atrasados, trabalhava na terra cerca de 80% da população. Já no início da década de 80, nenhum país europeu a oeste, com exceção da Irlanda, Portugal e Espanha, tinha mais de 10% de sua população na idade agrícola.  

Quanto à saúde, as mudanças também foram impressionantes. E isso não apenas no avanço científico no conhecimento do corpo humano e da medicina, tanto curativa como preventiva, mas também no saneamento e na conquista de condições de vida que permitam evitar as doenças e conservar a saúde.  

No entanto, Srªs e Srs. Senadores, nem todo esse progresso reflete a realidade completa, nem ele se deu sem crises e conflitos. Assim foi que, no começo do século, o acúmulo das tensões internacionais acabou por resultar na Primeira Guerra Mundial, que durou 4 anos. Antes do seu fim, deu-se um dos acontecimentos mais importantes e de maiores conseqüências do século XX, a Revolução de Outubro, na Rússia. A essas se seguiu um período de revoluções, incertezas e crises e culminou com a Grande Depressão de 29 - 33, que afetou o mundo inteiro. Depois veio a Segunda Guerra Mundial.  

Após esse período de guerras e catástrofes teve início o que foi chamado pelos franceses de "Trinta Anos Gloriosos" e pelos anglo-americanos de "Anos de Ouro", no qual o crescimento econômico foi o maior de toda a História da humanidade e no qual se deu grande parte dos progressos sociais dos anos 1900.  

Os Anos Dourados terminaram em meados da década de 70. Depois que as tentativas de reanimar a economia mundial, usando as armas do arsenal keynesiano fracassaram, voltou com força o velho liberalismo, agora rebatizado de neoliberalismo, que vinha predominando desde o século XIX e que tinha sido alijado da cena depois da Grande Depressão. Começou, então, um longo período de crise, que perdura até hoje. O crescimento econômico se reduziu drasticamente. O desemprego voltou a crescer. As conquistas que os trabalhadores tinham obtido durante os anos dourados começaram a ser perdidas. A miséria voltou a aparecer nos países ricos e se intensificou brutalmente nos países pobres. Os índices de violência voltaram a subir acentuadamente. O crime organizado se internacionalizou e se tornou um dos maiores ramos de negócios. As epidemias de fome fizeram sua reaparição nos noticiários.  

A derrubada do emblemático Muro de Berlim foi o marco do fim da guerra fria, que por sinal já havia anos que vinha ficando cada vez mais morna. Mas foi saudada entusiasticamente com a vitória final do capitalismo democrático contra o socialismo tirânico e deu até motivos para que fosse levada a sério a ridícula teoria do fim da História.  

O grande período de ascensão dos Anos Dourados de meados do século XX se assentava em três grandes pilares centrais: a introdução do planejamento econômico sobre os mercados interno e externo, a política de pleno emprego e a montagem de um abrangente sistema de previdência e assistência social, todos os três postos a cargo do Estado. Foi principalmente com esses três pilares que se voltou à política neoliberal.  

Hoje, a economia mundial é dominada por megaempresas com centenas de milhares de empregados espalhados pelo mundo todo. São todas – talvez haja exceções – sociedades anônimas com ações negociadas em bolsa. São dirigidas por profissionais assalariados que têm de prestar contas aos acionistas e prestar atenção às cotações de suas ações. São, em geral, controladas por conglomerados financeiros que estão a anos luz de distância dos detalhes de sua gestão e de quaisquer considerações que não sejam os números de balanço. E esses conglomerados financeiros são, ainda por cima, os grandes credores dos governos de praticamente todos os países do mundo, o que aumenta em muito o seu enorme poder de influência política. A concorrência nesse ambiente é uma luta mortal entre titãs gigantescos. Foram criados pelo homem e ninguém, nem mesmo os governos, podem controlá-los.  

A única forma de combatê-los, Srªs e Srs. Senadores, é privá-los da fonte de seu poder: a propriedade privada dos meios de produção. É o socialismo.  

É inevitável que surja aqui uma objeção aparentemente irrespondível: o socialismo fracassou, e a economia de mercado mostrou sua superioridade sobre a economia planificada.  

Se nos detivermos a pensar sobre isto – economia de mercado e economia planificada –, veremos que não passam de chavões que só nos parecem reais porque foram repetidos por décadas.  

Acaso a economia dos países capitalistas não é planificada? Quantos países no mundo não têm um ministério do planejamento ou coisa assemelhada? Em qual país do mundo não há políticas de incentivo a determinados ramos ou atividades, subvenções, etc.? Em qual país do mundo o Estado não intervém sobre a economia, visando atingir determinados fins? Em qual país do mundo o mercado é totalmente livre? Mesmo nos Estados Unidos, o campeão do mercado livre, pode, por exemplo, ser comercializado um remédio sem ter sido previamente aprovado pelo FDA? O tão falado planejamento socialista não ia muito mais longe do que isso. Mesmo os métodos usados não eram tão diferentes: estímulos e desestímulos econômicos, por um lado; punições, por outro. Tanto uns como outros visando aos dirigentes e às próprias empresas. Mais ainda. Além do planejamento estatal, as grandes corporações não fazem elas também seu planejamento? No capitalismo, dirigentes de empresas não são punidos com rebaixamentos e até demissões? E empresas não são remanejadas ou liquidadas porque não dão lucro suficiente?

 

Acaso a economia da União Soviética e seus satélites não era de mercado? Onde se poderia adquirir qualquer coisa se não fosse no mercado, e pagando por elas? E o trabalhador, não era ele, lá como aqui, obrigado a conseguir emprego para receber um salário e com ele poder comprar – no mercado – o que necessitava para viver? Não existia então, também lá como aqui, um mercado de trabalho? Acaso se imagina que, lá como aqui, o mercado não influía sobre o que era produzido?  

Livre iniciativa? Existe mesmo livre iniciativa nos países capitalistas? Ou nos países capitalistas não é necessário ter dinheiro – e muito dinheiro disponível – para poder tomar qualquer "iniciativa"?  

Burocracia? Alguém já pensou o quanto o capitalismo é burocratizado? O que são os bancos e todas as empresas financeiras senão imensas máquinas burocráticas? Alguém já pensou quanto trabalho e quantos burocratas são necessários para controlar e fazer funcionar as grandes empresas capitalistas? Que quase todos os dirigentes de todas as grandes empresas não são, no fundo, mais do que burocratas? E a imensa burocracia estatal de todos os países capitalistas?  

Empresas privadas? Não se sabe que até o fim existiam empresas e capitalistas privados nos países do campo soviético? Por outro lado, pode alguém dizer-se "dono" de uma empresa da qual não passa de acionista? Na qual, mesmo que seja acionista majoritário, tem que se curvar à vontade de outros acionistas e de credores? A situação dos dirigentes das empresas ocidentais, sejam ou não proprietários, não é ela, na essência, praticamente a mesma dos dirigentes das empresas estatais soviéticas? E afinal, a propriedade estatal não é, em qualquer lugar, uma forma de propriedade? E, mais ainda, de propriedade privada, pois a única diferença não é o detentor dessas propriedades?  

Na verdade, a diferença entre o chamado socialismo real e o capitalismo não era mais do que uma diferença de grau.  

A verdade é que a revolução socialista foi derrotada mais de 50 anos antes do desmoronamento da União Soviética. Como disse José Arbex, no Caderno Especial da Folha de S.Paulo , em 30 de dezembro de 1999:  

 

Mas, ao contrário do que desejavam Lênin e Trotsky, a revolução francesa fracassou. Fora da URSS, foi massacrada pelos exércitos e agentes do capitalismo liberal. Dentro de URSS, foi derrotada pelo isolamento da revolução, pelo atraso econômico e social herdados do czarismo, e pelo surgimento de uma poderosa casta de burocratas corruptos que se apossou dos principais cargos de comando do Partido Comunista da União Soviética (PCUS, o único que podia legalmente existir). Essa corrente tinha como líder e ícone um obscuro e sinistro ex-seminarista georgiano: Josef Stalin.  

 

É, contudo, importante assinalar que, apesar disso, a revolução russa inspirou toda uma série de revoluções que tirou diversos países da Ásia e da África do atraso, num processo que acabou por liquidar todos os antigos impérios coloniais que antes dominavam o mundo.  

O que fracassou, no mundo todo, foi a tentativa de manter o capital sob controle.  

Hoje, não basta lutar para manter o capital sob controle. É preciso lutar para acabar com ele. É preciso impedir que pessoas, por deterem propriedade de bens de produção, limitem a outras pessoas o direito de trabalhar e contribuir para a vida de toda a sociedade. É preciso substituir a competição e o trabalho forçado pela cooperação voluntária e consciente entre os seres humanos. Para isso, será por certo necessário, como um primeiro passo – mas tão-somente como um primeiro passo – estatizar as empresas monopolistas, principalmente do setor financeiro. Mas, como a experiência do chamado socialismo real mostrou, a estatização nada significará se, desde o começo, não for construída uma forma que permita a participação dos trabalhadores na gestão das empresas.  

Será preciso substituir a submissão à autoridade pelo autogoverno das pessoas, o que significará, ao final, a extinção do Estado. É claro que isso poderá ser atingido após um prolongado processo, ao longo do qual não somente sejam construídos os instrumentos que permitam que cada um possa fazer facilmente amplas consultas antes de tomar decisões que afetem mais do que a si próprio, mas também que as pessoas se eduquem e aprendam a não depender de instruções e ordens superiores. A progressiva radicalização da democracia, junto com a descentralização das decisões, serão provavelmente caminhos que deverão ser seguidos. O certo é que um processo desses não terá condições de ir muito longe enquanto o capital monopolista continuar mantendo, como mantém hoje, o controle do poder político. A tomada do poder pelos trabalhadores é, por isso, fundamental, e a estatização forma de tirar do capital monopolista a base econômica do seu poder.  

O que se pretende é construir "uma sociedade de homens livres", como foi sintetizado o comunismo por Marx. Liberdade de expressão, e crítica e de participação política são, portanto, um princípio básico e indescartável. Mas há ainda uma outra razão, esta sociedade terá que ser construída conscientemente pelos homens, que terão que experimentar e que cometerão, inevitavelmente, muitos erros. E sem liberdade não será possível avaliar as experiências nem detectar e muito menos corrigir os erros. Sem liberdade o projeto fracassará inevitavelmente.  

Parece impossível? Não é. Tanto que já existe em muitos lugares e em muitas atividades, embora ainda seja excepcional. A título de exemplos, que aconteceram inclusive no Brasil, pode-se citar comunidades que superaram as suas dificuldades por meio da cooperação e do autogoverno, bem como empresas que foram salvas da falência pelos trabalhadores que as assumiram por meio da autogestão. A cooperação voluntária e o autogoverno são possíveis em larga escala e isso é comprovado por muitas coisas que acontecem na Internet, um espaço onde não há proprietários, não há leis, não há governo e no qual se formam grupos de centenas e, às vezes, milhares de pessoas que cooperam voluntariamente para desenvolver projetos e distribui-los gratuitamente. E o fazem nas mais diversas áreas, como programas de computador, música, produção e divulgação de textos e notícias e muitas outras.  

Parece difícil? E é mesmo, e muito. Mas o que é importante é ter em vista que o início dos anos 2.000 pode ser uma boa oportunidade para se fazer uma análise do passado, rever nossas concepções arraigadas e perceber que muitas delas já estão ultrapassadas e pensar num futuro melhor. E, sobretudo, que o ano 2.000 dá um excelente marco zero para iniciar um novo e grandioso projeto.  

Muito obrigado, Sr. Presidente.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/03/2000 - Página 5290