O SR. CARLOS WILSON (PPS - PE. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente Antonio Carlos Magalhães; Sr. Vice-Presidente Marco Antônio de Oliveira Maciel; Dr. Fernando Freyre, aqui representando a família de Gilberto Freyre - e em nome de quem saúdo todos os familiares -; Senador Lúdio Coelho, que compõe a Mesa; Sr. Procurador-Geral da República, o pernambucano Dr. Geraldo Brindeiro, Srªs e Srs. Senadores, cem anos atrás, quando o século XIX dava lugar ao século XX, o pensamento histórico e sociológico brasileiro estava condicionado às idéias cientificistas da época, de base eurocêntrica. Segundo essa visão, o modelo ocidental de organização política e social era considerado o padrão máximo de civilização e desenvolvimento; a raça branca, do mesmo modo, era vista como superior às outras. A idéia, que para nós é claramente absurda, pode ser exemplificada pela famosa frase do escritor britânico, nascido na Índia, Rudyard Kipling, que declarou ser a colonização dos supostos inferiores "o fardo do homem branco sobre a terra".

Particularmente, o processo de mestiçagem era muito mal visto: um pensador como o conde francês Gobineau, amigo de D. Pedro II e correspondente de vários intelectuais brasileiros da época, chegou a profetizar que o Brasil estava condenado ao atraso irremediável, justamente por estar se tornando uma nação de mulatos.

A cultura dos salões das elites letradas e ricas era artificial e pedante. Desvalorizava-se a cultura do povo, quando não se a ignorava inteiramente; toda manifestação popular ou folclórica era vista como expressão grosseira, de mau gosto, desprovida de arte. Ficou famoso, por exemplo, nesta Casa, o discurso em que Rui Barbosa teria depreciado violentamente a música popular do País.

Se tudo está mudado hoje, se a visão sobre a cultura em geral e sobre a cultura popular em especial é diametralmente oposta à que se tinha há apenas 100 anos, devemo-lo, primordialmente, aos integrantes do movimento iniciado em 1922 com a Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, que sacudiu a poeira e o sebo daquela cultura artificiosa e de importação. A um poeta como Manuel Bandeira, por exemplo, que, em seu famoso poema "Evocação do Recife", ousou dizer, em 1930:

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil...

Nossa visão da organização social brasileira como uma forma de civilização a justo título e, mais ainda, como formação histórica merecedora de consideração e estudo, no entanto, nós a devemos fundamentalmente à obra desse também ilustre pernambucano, cujo centenário de nascimento estamos comemorando - Gilberto Freyre.

Nascido de família recifense pertencente à aristocracia da cana-de-açúcar e vindo ao mundo aos 15 de março de 1900, recebeu sua educação no Colégio Americano Gilreath do Recife, hoje Colégio Americano Batista. Daí provém, talvez, a influência americana, que seria ampliada quando fez o mestrado na Universidade de Colúmbia, onde foi aluno do antropólogo Franz Boas e conviveu com o poeta Yeats. Essa influência do pensamento americano, segundos alguns estudiosos da obra de Freyre, estaria na base de sua oposição aos conceitos eurocêntricos dos intelectuais de sua geração.

Mesmo assim, nesse tempo em que residia em Nova Iorque, mostrava consciência da diferença cultural entre os Estados Unidos e o Brasil, publicando artigos no Diário de Pernambuco em que defendia a preservação dos costumes brasileiros, especialmente os do Nordeste.

Foi depois de seu retorno ao Brasil que empreendeu seu projeto de escrever o seu grande painel social, antropológico, histórico e geográfico da sociedade patriarcal brasileira. Em 1936, publicou a primeira parte desse painel num livro hoje tornado clássico dos estudos sociais brasileiros: Casa Grande & Senzala. A elaboração desse painel prosseguiria com a publicação de Sobrados e Mocambos, em 1936, e de Ordem e Progresso , em 1959, além de outras tantas obras instigantes sobre a formação social da Nação brasileira.

Obras que, além de fundadas em pesquisa extensa e cuidadosa, além de inspiradas por um espírito investigativo inigualável, são lavradas sempre em um estilo saboroso, que lhes confere a qualidade, tão rara em artigos de cientistas em geral, da legibilidade pelo público não especializado, e a peculiaridade, ainda mais rara, de seduzir a todos com o grande prazer de leitura que propiciam.

Ao concentrar suas observações em aspectos da vida cotidiana da sociedade brasileira, como a comida, o mobiliário ou a arquitetura interna das moradias, ao contrário da tendência dos historiadores e cientistas sociais daquela época, preocupados quase somente com os grandes eventos, Gilberto Freyre antecipou-se em várias décadas à corrente hoje dominante nos estudos históricos do mundo inteiro, a chamada "pequena história" ou "história das mentalidades".

Seu maior legado, indiscutivelmente, é a visão positiva da sociedade miscigenada e, especialmente, a noção de que o negro, no Brasil, aculturou o branco ao influenciá-lo na culinária, na educação informal e na fala brasileira. É clássica a descrição que Freyre faz, por exemplo, do deslocamento do pronome átono para o início da frase, que seria um legado do elemento africano à cultura nacional: "´Faça-me´ é o senhor falando, o pai, o patriarca; ´me dê´ é o escravo, a mulher, o menino, a mucama ".

Apesar desse deslocamento irreversível do pensamento oficial brasileiro em direção à valorização positiva do componente negro na formação social e racial dos brasileiros, que é conseqüência da obra de Gilberto Freyre, somos obrigados a reconhecer que a barreira do preconceito subsiste em nossa sociedade. Os negros continuam a ser mais freqüentemente pobres e miseráveis, costumam apresentar os piores índices de escolaridade, de expectativa de vida, menores salários e, nesta época de dificuldades econômicas, maiores índices de desemprego. Nesse sentido, a obra de desmitificação da cultura brasileira, que se pretende branca e européia, obra iniciada por Gilberto Freyre, ainda está por se completar.

Não se deve esquecer, porém, que, ao valorizar o negro, Freyre não desprezou o elemento indígena, talvez excessivamente valorizado pelo Romantismo e por certas vertentes do Modernismo. Ao contrário, em sua obra maior, Casa Grande & Senzala , abordou diretamente o assunto ao escrever: " O despovoamento deve ter sido enorme. Difícil precisar qual fosse a população aborígene ao verificar-se a descoberta do Brasil ". Nesse mesmo capítulo, lamenta o verdadeiro morticínio imposto aos índios ao serem obrigados a trocar o nomadismo pela sedentariedade.

Sua atividade na promoção da cultura em nosso Estado sempre foi extraordinária. Em 1924, fundou o Centro Regional do Nordeste, reunindo advogados, médicos, jornalistas e engenheiros interessados na defesa dos valores regionais. Na década de 1950, criou a Fundação Joaquim Nabuco, até hoje um dos mais importantes centros nacionais de pesquisa em ciências sociais. Pouco antes de falecer, em 1987, criou também a fundação que leva o seu nome, para ser a guardiã de seu acervo intelectual e pessoal, abrindo mais uma frente de produção de conhecimento sobre a sociedade nordestina.

É no casarão em Apipucos, onde viveu Gilberto Freyre desde 1939, que funciona a Fundação Gilberto Freyre. Para fazer jus ao pioneirismo de seu patrono, ela está lançando neste mês de março um CD-ROM com informações sobre a obra do sociólogo, poemas de sua autoria recitados por atores pernambucanos, além de trechos de sua correspondência. Além do CD, a Fundação mantém uma página na Internet para consulta por qualquer interessado. Hoje, a Fundação é dirigida, brilhantemente, pelo filho do Dr. Gilberto Freyre, Dr. Fernando Freyre.

É a obra de Gilberto Freyre entrando no século e no milênio novo, cem anos depois do nascimento de seu autor. São as idéias revolucionárias de um grande pernambucano que adentram o novo milênio, anunciando também um tempo em que, espera-se, haverá maior justiça social e em que o Brasil, país antecipador das atuais tendências de globalização cultural, por fundar uma cultura multirracial baseada na tolerância, terá um papel de destaque na condução do mundo.

Sr. Presidente Antonio Carlos, o autoconhecimento é condição necessária para o amadurecimento equilibrado, tanto dos indivíduos quanto das nações. Nada é mais enganador e mais desviante, mais desencaminhador do que uma visão distorcida de si mesmo. Por isso é que os brasileiros - e, em especial, os pernambucanos - devem celebrar a obra e o centenário de nascimento de um homem que contribuiu para o reconhecimento do Brasil como nação racial e culturalmente mestiça. Nação única no mundo, campeã na aceitação da diversidade e das diferenças.

A democracia racial universal, antevista por Gilberto Freyre, deve ser o objetivo de toda a humanidade.

Sr. Presidente, encerro, atendendo às ponderações de V. Exª, e solicito que os depoimentos de pernambucanos, intelectuais e amigos de Gilberto Freyre, que eu trouxe para ler, façam parte integrante do meu pronunciamento.

Muito obrigado. (Palmas)

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SEGUE DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR CARLOS WILSON EM SEU PRONUNCIAMENTO.

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